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Fernández é empossado presidente da Argentina: “Temos que superar os muros da fome”

Publicado em 11/12/2019 12:00 -

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O novo presidente da Argentina, Alberto Fernández, que tomou posse no último dia 10, afirmou em seu primeiro discurso como mandatário do país que a prioridade de seu governo será o combate à pobreza para que sejam superados “os muros do ódio e da fome”.

“Precisamos de um novo contrato social, fraterno e solidário, porque chegou a hora de abraçar o diferente. Este é o espírito do tempo que inauguramos hoje, para colocar a Argentina de pé, temos que superar o muro do rancor e do ódio, o muro da fome que afasta os homens”, disse.

Em cerimônia realizada no Congresso Nacional, em Buenos Aires, o peronista recebeu a faixa do agora ex-presidente Mauricio Macri. A vice-presidente Cristina Kirchner assumiu o cargo na mesma cerimônia, e se tornou a número dois do país.

Fernández ainda prometeu que a primeira reunião que realizará como presidente argentino com seus ministros será para tratar do “plano argentino contra a fome” e destacou que “sem pão, não há presente, nem futuro, nem democracia”.

“Uma em cada duas crianças são pobres em nosso país. As economias dos lares estão asfixiadas pelo endividamento, pedindo crédito para comprar remédios e comida. Os marginais e excluídos não precisam apenas de pão, mas também precisam ser parte integrante desta grande nação, nossa casa comum”, afirmou.

'Agenda ambiciosa' com o Brasil

Fernández ainda disse que quer uma “agenda ambiciosa” com o Brasil, para além de “qualquer diferença regional de quem governe na conjuntura”.

“Com a República Federativa do Brasil, particularmente, teremos que construir uma agenda ambiciosa, criativa […], que é respaldada pela irmandade histórica entre os dois países, e que vai além de qualquer diferença regional de quem governe na conjuntura", disse.

A menção ao Brasil é um recado direto ao presidente Jair Bolsonaro, que tem assumido uma posição de antagonismo com o novo mandatário argentino, sobre o qual já chegou a dizer que os eleitores do país vizinho haviam “votado mal”.

Bolsonaro não foi à posse, quebrando uma tradição de quase três décadas. Chegou a decidir não mandar ninguém – a ideia era que o ministro da Cidadania, Osmar Terra, representasse o Brasil na cerimônia – mas voltou atrás e enviou o vice-presidente, Hamilton Mourão.

Morde e assopra

Bolsonaro e Alberto Fernández têm trocado provocações desde meados deste ano.

Quando a crise na Argentina apertou e a possibilidade de reeleição de Macri, que era dada praticamente como certa até 2018, foi colocada em dúvida, o presidente brasileiro chegou a dizer que um eventual retorno de Cristina Kirchner ao poder poderia transformar o país "em uma Venezuela".

Em julho, por sua vez, Alberto Fernández visitou o ex-presidente Lula na prisão em Curitiba e, em agosto, após a vitória de sua chapa nas primárias, ressaltou que o Brasil continuaria sendo o principal parceiro comercial do país, para depois emendar que Bolsonaro era "um elemento da conjuntura na vida do Brasil" e alguém "misógino, racista e violento".

Dias depois, o presidente brasileiro também causou polêmica ao dizer que avalizava as declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, que afirmara que, se o peronismo vencesse e Fernández impusesse restrições à abertura comercial do Mercosul, o Brasil poderia deixar o bloco.

No dia em que os argentinos foram às urnas, durante a apuração dos votos, Fernández postou no Twitter uma foto parabenizando Lula.

"Faz aniversário hoje o meu amigo Lula, um homem extraordinário que está preso injustamente", escreveu.

No mesmo dia, Bolsonaro afirmou que o Brasil pretendia ampliar o comércio com o vizinho, mesmo que o favoritismo da chapa de Fernández e Cristina se confirmasse.

No dia seguinte, após a confirmação, declarou que os argentinos haviam "escolhido mal" e disse que não parabenizaria o colega.

Em entrevista ao jornal Clarín, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, comparou o argentino a uma matrioska, brinquedo russo que reúne diversas bonecas de tamanhos variados colocadas uma dentro das outras. “Há Alberto Fernández. Você o abre e encontra Cristina Kirchner, a abre e encontra Lula, e depois Chávez”, disse, em agosto.

Em novembro, a Comissão de Relações Exteriores (CRE) da Câmara dos Deputados, comandada por Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, aprovou uma moção de repúdio a Fernández. O argumento era de que a defesa da soltura de Lula feita pelo argentino questionava a lisura do sistema judicial brasileiro. 

Finalmente, na semana passada, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, visitou o presidente eleito em Buenos Aires e levou um recado de Bolsonaro, de que esperava que se construísse uma "boa relação" entre os dois governos.

"Se nos respeitamos, fica mais fácil conviver", disse Fernández. "Transmitam ao presidente Jair Bolsonaro meu respeito e apreço por trabalharmos juntos."

Pragmatismo

Vale destacar que, na América Latina, a Argentina é o principal aliado comercial do Brasil. As exportações para lá somaram um total de US$ 14,9 bilhões em 2018.

A Argentina é a maior compradora de industrializados brasileiros. Os números caíram com a crise, mas continuam a representar uma fatia importante do setor. Mais de 60% dos carros comprados na Argentina são brasileiros, segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e do Ministério da Indústria e Comércio Exterior brasileiro.

Devido à relevância nas trocas comerciais, a situação econômica argentina tem impacto relevante no cenário doméstico. A exportação de veículos para lá caiu 41% de janeiro a julho deste ano, segundo a Anfavea.

O argumento para enviar o vice-presidente mostra que é exatamente o cenário econômico que deve prevalecer para ditar os rumos das relações entre os dois países. Na visão do historiador e professor da USP (Universidade de São Paulo) Everaldo de Oliveira Andrade, esse fator tem levado o presidente brasileiro a tentar amenizar o discurso.

“Essas declarações [mais duras] de Bolsonaro se chocam com interesses dos negócios de fato. Com certeza ele foi chamado atenção pelo núcleo mais pragmático que apoia as políticas ultraliberais do governo Bolsonaro”, afirmou à reportagem.

Na avaliação de Andrade, a postura do país vizinho também deve ditar o ritmo, diante das fragilidade do ministro Ernesto Araújo na condução da política externa. “Todas questões que ele levanta são mais discursos ideológicos vinculados a uma visão de mundo de uma minoria do que aos interesses reais dos negócios brasileiros. É uma política externa que não corresponde à realidade do papel econômico que o Brasil desfruta no mundo. É uma política que está levando ao isolamento e prejudicando alguns setores econômicos”, afirmou.

Por outro lado, Fernández não tem adotado uma postura extremista. “O novo governo argentino não é de ruptura. Não tem o alinhamento do Macri com os Estados Unidos, mas o Fernández já disse que vai continuar negociações com FMI [Fundo Monetário Internacional], assistiu a uma missa com o [presidente Maurício] Macri, sinalizando que vai dar continuidade, com perfil um pouco diferente. Essa sinalização do Fernández talvez tenha mais importância do que a do Bolsonaro”, destacou Andrade.

O que o Brasil teria a perder?

Quais consequências práticas que um eventual afastamento da Argentina teria para o Brasil?

Complementaridade produtiva

O setor que mais sofreria caso houvesse um estremecimento das relações bilaterais seria a indústria.

A Argentina é o principal destino das exportações de produtos manufaturados brasileiros e o terceiro se contabilizados todos os produtos.

Enquanto o Brasil exporta muita soja e minério para a China e para os EUA, por exemplo, vende para o vizinho itens de maior valor agregado, que vão desde calçados e automóveis a máquinas e peças.

Ele é o principal parceiro comercial da Argentina, respondendo por 27% de todas as importações do país (dados de 2017). A China fica em segundo lugar, com 19%.

Desde a criação do Mercosul, em 1991, a indústria dos dois países tem ficado mais integrada. Isso fica mais claro quando se olha no detalhe a composição das exportações brasileiras para a Argentina.

Um estudo conduzido pelas economistas Mayara Santiago e Luana Miranda, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), mostrou que 58% de tudo o que é vendido para o parceiro são bens intermediários.

Ou seja, são motores, peças e outros manufaturados que são usados pela indústria argentina, que vão compor produtos acabados feitos no país.

Assim, em um cenário de distanciamento entre os dois países, a Argentina também seria prejudicada, já que poderia perder fornecedores importantes para sua indústria.

"Manter uma boa relação é benéfico para os dois lados", pondera Mayara Santiago.

O impacto da atual crise argentina sobre o setor no Brasil também dá dimensão dessa interdependência. Ainda de acordo com o estudo das economistas do Ibre-FGV, a recessão da Argentina tirou 0,2 ponto percentual do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2018.

Ou seja, sem o "choque argentino", a economia brasileira teria crescido 1,3% em vez de 1,1% (o estudo foi feito antes da revisão do PIB de 2018 pelo IBGE, que alterou o dado do ano passado para 1,3%).

Para 2019, a projeção é de que esse impacto negativo seja ainda pior, de 0,5 ponto percentual.

Este será, aliás, o primeiro ano desde 2003 que a balança comercial do Brasil com a Argentina vai ficar no vermelho. Entre janeiro e novembro, o saldo é negativo em US$ 641,8 milhões.

A redução das exportações para o vizinho, acrescenta a economista, tem ainda um "efeito transbordamento" importante, que vai além da indústria e afeta o comércio e os serviços. Uma máquina que deixa de ser exportada, por exemplo, significa menos um frete, menos volume de trabalho no escritório de representação comercial e por aí vai.

A recuperação da demanda interna pode atenuar o "efeito Argentina" em 2020, afirma Mayara, e compensar a queda nas vendas para o vizinho.

Ainda assim, a manutenção da boa relação do Brasil com seus parceiros comerciais se mantém uma variável importante, já que a indústria como um todo vem perdendo espaço na economia. Para o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), o país passa por um dos mais graves casos de "desindustrialização prematura" do mundo.

Um estudo divulgado pela entidade em agosto mostrou que, enquanto o setor industrial perdeu 36,1% de peso no PIB global entre 1980 e 2018, no Brasil o recuo foi de 58,6% no mesmo período.  


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