16/04/2024 - Edição 540

Poder

Governo Bolsonaro vai taxar as grandes… fortunas? Não, as grandes pobrezas

Publicado em 29/11/2019 12:00 -

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O título desta reportagem não tenta ser uma provocação, e sim a descrição de uma dura realidade. A feliz frase sobre “taxar as grandes pobrezas” foi uma lúcida análise de Eliane Cantanhêde no jornal O Estado de S. Paulo. As reformas que o governo de extrema direita está realizando deveriam, de fato, ter começado com os olhos postos nas franjas mais frágeis da sociedade, e não ao contrário. Assim, em vez de ter começado, por exemplo, taxando as grandes fortunas, os grandes bancos, os grandes dividendos, as grandes heranças, os escandalosos privilégios dos políticos e das corporações, que levaram a política no mundo todo a se arrastar desprestigiada pelo chão, decidiram ampliar ainda mais as grandes pobrezas, cobrando imposto até sobre o seguro-desemprego. Esquecendo-se de que só uma política social assegura o exercício pleno da democracia, com a soberania do povo. O contrário conduz aos tempos sombrios da escravidão.

Sim, o governo Jair Bolsonaro está levando a cabo reformas que, começando pela previdenciária e continuando com mudanças trabalhistas —carteira verde-amarela ou taxar o seguro-desemprego—, castiga os grandes bolsões de pobreza e miséria que juntos representam a maioria dos 210 milhões de brasileiros. O novo projeto das aposentadorias deveria ter começado por levar em conta aqueles milhões de trabalhadores que durante toda uma vida realizaram os trabalhos mais duros, nas fábricas, no campo, em todos os setores menos remunerados. Justamente esses milhões que trabalharam duro durante mais de 30 anos e que, quando chegar sua vez de um justo descanso, terão que sobreviver com uma pensão de fome; eles que, ganhando um salário mínimo, não conseguiram economizar nem acumular capital, porque mal tinham como chegar ao fim do mês sem se endividar.

Ao contrário, quem já ao longo da vida goza de um trabalho bem remunerado chega à aposentadoria com um acúmulo de bens que dá e sobra para poder viver sem aposentadoria e com tranquilidade. Sim, são as grandes pobrezas que estão sendo castigadas e humilhadas para que os privilegiados de sempre possam continuar desfrutando e sem apertos na hora da aposentadoria.

A quem culpar por essa tragédia social em que os mais frágeis serão novamente os bodes expiatórios do capitalismo brutal que vai deixando rios de dor e injustiças pelo caminho? Ao governo ultraliberal de Bolsonaro? Não. Antes da sua chegada, uma esquerda distraída e culpada, que passou 13 anos no poder e com o consenso de até 80% da população em alguns momentos, teve a oportunidade de realizar essas mesmas reformas, mas com o coração voltado para os mais frágeis. Reformas com forte conteúdo social, começando pela base de uma pirâmide de trabalhadores que cada vez se amplia mais, enquanto continua enriquecendo as grandes fortunas que são a minoria da população.

Essa esquerda que neste momento só soube dizer não às reformas da ultradireita, sem apresentar alternativas sociais, não foi capaz de realizar as grandes reforma com forte conteúdo social. Nem a trabalhista nem a política nem a do Estado, ainda que tenha feito algumas mudanças na Previdência. E não porque faltasse a esses governos consenso popular ou força no Congresso, já que governou com os partidos mais fortes. Foi, entretanto, incapaz de instaurar governos social-democratas, de centro-esquerda, em vez de sair de braços dados com a grande direita do dinheiro. Ainda me lembro de ter escutado o então presidente Lula dizer numa reunião com banqueiros em São Paulo: “Vocês nunca antes tinham ganhado tanto como comigo”. Triste recorde que humilha os pobres que devem pagar juros absurdos para poder sobreviver.

Agora, quando essa direita tomou o poder e é ela que faz essas reformas com o coração posto naqueles que menos precisam delas, de pouco serve derramar lágrimas de carpideira. Já é tarde. A esquerda não terá mais força para suscitar um movimento de rebeldia. Perdeu o trem, adormecida que estava sobre os louros de um consenso impressionante, que não soube aproveitar.

Em um período semelhante de 14 anos, na Espanha, o governo socialista de Felipe González, com apoio do rei Juan Carlos, teve tempo de transformar um país arruinado, despedaçado após 40 anos de dura ditadura franquista. Encontraram um país que precisava ser reconstruído política, jurídica e socialmente após décadas de pobreza material e cultural, em que tinham sido abolidas todas as liberdades modernas e os direitos mais elementares. E o fizeram com as grandes reforma progressistas que devolveram ao país os direitos sindicais, de liberdade de expressão, de divórcio, de gênero e do aborto. Essas grandes reformas que colocam um país na rota da modernidade e que a esquerda brasileira não soube concluir quando tinha força para isso.

Vivemos tempos duros, nos quais uma onda mundial tenta reverter as grandes reformas democráticas que tornaram o mundo menos desigual e lhe permitiram viver os ares de uma democracia séria e segura, sem a qual não existem reformas possíveis. E nestes momentos quem mais sofrerá com essa tentativa de volta à escuridão política e social serão sem dúvida os párias de sempre, que, por sua vez, sustentam com seu trabalho as colunas do mundo.

Se os políticos de esquerda e de direita encasquetarem em não querer olhar para essas massas de trabalhadores que a sociedade do consumo abandonou na pobreza; se não forem capazes de abrir os olhos a essas tremendas injustiças sociais que aumentam com os problemas dos milhões de migrantes que percorrem o mundo como uma sombra e um alarme, então é possível que pela primeira vez o mundo, que sempre foi melhor em seu presente que em seu passado, porque as conquistas da ciência e a tecnologia lhe abriam espaços novos de liberdade, acabe nos fazendo suspirar pelo passado, numa grave miragem perversa.

O Brasil se reduz cada vez mais a essa nova trindade apresentada simbolicamente pelo novo partido criado por Bolsonaro, de Deus, violência e caça às bruxas comunistas, que já não existem mais porque, além de tudo, se aburguesaram. A esses milhões que se entregaram nas mãos de Bolsonaro agitando a bandeira de Jesus com a Bíblia na mão seria preciso recordar a dura passagem do evangelho em que Jesus grita: “Atam cargas pesadas e as colocam sobre os ombros dos mais fracos que sois incapazes de suportar” (Mt, 23, 4ss).

Que leiam, sim, os evangelhos, mas para entender que o cristianismo foi, em seus primórdios, revolucionário e em defesa dos mais necessitados. Que o profeta de Nazaré, perante as multidões famintas, necessitadas e sem poder que lhe seguiam, exclamou: “Tenho compaixão por esta gente”. E é essa compaixão por quem é abandonado no caminho por ser diferente é a única coisa que pode mais uma vez salvar este mundo atormentado e cada dia mais injusto. Quem se atreverá a apostar nessa utopia sem a qual a realidade nos levará ao inferno da violência e do desprezo pelos valores do único humanismo que pode nos salvar? Todo o resto são inúteis atalhos sem saída.

Cabe aqui um recado ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que justificou a alusão feita ao famigerado decreto AI-5 por temer protestos como o que sacodem o resto da América Latina. Ministro, troque o medo pela compaixão proposta por Nazaré. Deixe-se guiar pelas vozes e os sentimentos certos. Pode valorizar os mascarados agressivos dos protestos do Chile, ou prestar atenção na música do cantor Victor Jara que os jovens chilenos têm cantado durante os atos: “o direito de viver em paz”, buscando dignidade por um novo pacto social que corrija as mesmas injustiças de taxar a grande pobreza, herdada de Pinochet.

Quem pagará a conta?

Guedes afirmou que é possível criar milhões de empregos se os "encargos trabalhistas" forem "zerados", em um evento empresarial no último dia 22. Considerando que os encargos trabalhistas sustentam parte da Seguridade Social no Brasil, creio que é válida a pergunta: de onde sairia o dindim para sustentar as aposentadorias e pensões, a assistência social a pessoas com deficiência e a idosos miseráveis e o sistema de saúde pública? Taxar o BPC da mesma forma que o governo quer taxar o seguro-desemprego?

No recém-apresentado programa "Verde e Amarelo", Guedes sugeriu medidas para reduzir os custos de contratação de jovens entre 18 e 29 anos para vagas que paguem até 1,5 salário mínimo durante dois anos. Essa desoneração, com a retirada da contribuição patronal de 20% ao INSS, será bancada com uma taxa de 7,5% a ser cobrada das parcelas de quem recebe seguro-desemprego.

Ou seja, para a conta fechar, alguém precisará dar sua cota de sacrifício. No caso do programa de empregos do governo Bolsonaro, serão os pobres desempregados que vão contribuir para facilitar a vida dos empregadores.

Guedes, ao fazer discursos como esse, deveria dizer sempre quem vai pagar pelos encargos zerados. Seu plano A era compensar criando algo como a antiga CPMF, transferindo o custo para toda sociedade, afetando mais ainda o consumo e a produção. A ideia acabou derrubando o secretário da Receita Federal e recebeu veto do próprio Bolsonaro, que sentiu o cheiro de queimado.

O projeto de Reforma Tributária, apresentado pelos partidos de oposição na Câmara dos Deputados, prevê a desoneração da folha aumentando-se a tributação sobre renda e patrimônio de quem teve (muita) sorte na vida. O governo afirma que pretende dar progressividade ao sistema tributário, mas é difícil imaginar que chegará ao ponto de incomodar o andar de cima.

A equipe econômica já citou a possibilidade de voltar a taxar dividendos (isenção que, hoje, privilegia os super ricos) e usar os recursos para zerar encargos. O próprio Guedes disse, nesta sexta, que quem está isento de impostos faria essa contribuição, tateando o terreno. Críticos à proposta afirmam que o retorno da cobrança é importante, mas seu montante é bem menor do que o valor que não será mais arrecadado.

Vale lembrar que a redução da folha de pagamento para os empresários não gerou o resultado esperado durante o governo Dilma Rousseff. Muitos simplesmente embolsaram a economia como lucro.

No início do governo, Paulo Guedes contava com a proposta de implementar uma "Carteira de trabalho Verde e Amarela", apenas com direitos básicos negociados com o patrão e baseada em um sistema de capitalização, em que cada pessoa faria uma poupança para a sua própria aposentadoria, sem a contribuição de empregadores. Isso substituiria paulatinamente a carteira de trabalho azul.

O sistema público vigente no Brasil hoje é o de repartição, em que os trabalhadores da ativa garantem a remuneração dos que se aposentaram. Caso queiram uma pensão maior, podem fazer uma capitalização complementar.

O ministro da Economia acabou amargando uma derrota durante o trâmite da Reforma das Previdência, com a queda da previsão da capitalização. Pesou para os deputados a comparação com o sistema de aposentadorias chileno, referência para Guedes, que levou ao empobrecimento dos idosos naquele país. Mesmo prometendo que o padrão brasileiro não seria igual, com a garantia de um salário mínimo para todos, a sugestão foi chutada para a linha de fundo.  

Mas não esquecida por Guedes. Com isso, o projeto que ela representa – de substituição do sistema de proteção social previsto na Constituição Federal de 1988 pelo "cada um por si e Deus por todos" – segue reaparecendo de tempos em tempos, em discursos e propostas que tentam convencer que "emprego formal com direitos" é bobagem.

Confortável mesmo é ter uma MEI para vender bolo na rua, que nem a Maria da Paz, ou sofrer acidente pelo cansaço de tanto entregar comida de bicicleta alugada.

Salário mínimo

Pra finalizar: o secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, anunciou que o salário mínimo de 2020 terá uma redução de R$ 8, ficando em R$ 1.031. Essa é a segunda vez que Bolsonaro reduz a previsão do salário mínimo para o ano que vem. Em abril, a estimativa era de R$ 1.040.

Na divulgação inicial do Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa), em agosto, estimava era de R$ 1.039. Segundo Rodrigues, a queda da projeção se justifica pela redução das estimativas da inflação pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) para o próximo ano. O secretário afirmou, no entanto, que a nova política para o salário mínimo só será decidida nas próximas semanas por Bolsonaro. O secretário de Fazenda, no entanto, diz que o valor servirá de referência para o Palácio do Planalto.

Na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) aprovada por Bolsonaro para o ano que vem, já constava o fim da política de valorização do salário mínimo, estabelecendo que o valor ficaria sem aumento real acima da inflação. Tal medida representa uma mudança em relação ao modelo de reajuste adotado por lei a partir de 2007, nos governos do PT. Ele determinava que a revisão do salário mínimo levasse em conta o resultado do PIB de dois anos antes mais a inflação do ano anterior, medida pelo INPC. Na prática, essa regra garantia o ganho real do mínimo sempre que houvesse crescimento da economia.

A presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann, comentou a redução e disse que medida faz parte de mais um ataque do governo contra o povo brasileiro. “Depois de dar fim à política de valorização do salário mínimo com ganho real para os trabalhadores, governo Bolsonaro reduz pela segunda vez o valor para o ano que vem. Já querem taxar o desempregado, reonerar a cesta básica… a lista de medidas contra o povo só cresce”, disse a deputada.


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