27/04/2024 - Edição 540

Poder

Imaginem se o Brasil tivesse um ministro da Educação?

Publicado em 29/11/2019 12:00 -

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Surpreende que o presidente Jair Bolsonaro tenha deixado vago o cargo de ministro da Educação, uma das principais funções de qualquer governo que pretenda se chamar como tal. Desde o início do ano, ele indicou prepostos que serviram para desperdiçar tempo do país, substituindo a busca pela melhoria da educação básica e superior e pelo aumento da produtividade da força de trabalho por debates que interessam ao passado, não ao futuro.

Tivesse ele indicado um profissional, seja de direita ou de esquerda, a tarefa estaria em curso e, neste momento, haveria discordância de linhas a serem adotadas, como em qualquer discussão democrática, mas não ojeriza e desalento. Não fez isso, preferindo se rodear de pessoas que sonham com canais de denúncias de professores como solução para a educação.  

Conversamos com fontes no ministério, na semana passada, para tentar entender como o navio está se mantendo sem um capitão ou capitã. Técnicos me explicaram que parte das rotinas continua sendo tocada pela burocracia da instituição, seguindo a legislação vigente. Infelizmente, a área responsável pela formulação de políticas públicas segue improdutiva, sem apontar reais saídas para os problemas do país, mas produzindo factoides.

Melhor seria se Bolsonaro tivesse repatriado o guru ideológico de sua família para ocupar o cargo diretamente. Correríamos o risco da implantação do terraplanismo? Sim, claro. Mas, ao menos, o mentor desse "projeto" poderia defende-lo sem intermediários à sociedade brasileira, que poderia abraça-lo ou refutá-lo.

Bolsonaro não quer uma pasta de Educação, mas algo que se alinhe à ideia de "Ministério da Verdade" – apresentado no romance "1984", de George Orwell, com a função de ressignificar os registros históricos e qualquer notícia que seja contrária ao próprio governo.

O "Ministério da Verdade", de Bolsonaro, inclui castrar a liberdade de ensino conquistada desde a redemocratização, com uma intervenção no significado e no sentido da educação pública. Ricardo Vélez e, depois, Abraham Weintraub cumprem esse papel, declarando guerra às liberdades conquistadas desde a Constituição de 1988. Afinal, para o governo, a sociedade está corrompida e degradada por conta delas, precisando de refundação.

A ausência de um ministro ou ministra tem gerado uma boa quantidade de vergonha alheia. Se o primeiro preposto havia mandado um e-mail para todas as escolas do país, pedindo que fosse lida em voz alta uma carta com forte viés de autopropaganda que terminava com o slogan de campanha de Bolsonaro ("Brasil acima de tudo. Deus acima de todos"), solicitando que crianças fossem gravadas cantando o hino nacional e que as imagens enviadas ao ministério, sem autorização dos pais; o outro preposto, com menos pudores, xinga as pessoas pelas redes sociais, ameaça estudantes e professores e inventa que as universidades federais são fábricas de drogas.

Por sorte, os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que atendem de creches ao ensino médio, seguem direto para Estados e municípios, de acordo com o número de alunos informado no censo escolar. Por enquanto, não estão sujeitos a turbulências causadas por tempestades toscas do ministério. Mas o tempo do Fundeb está acabando.

O Brasil conta com uma formação precária dos docentes e com alunos que saem do Ensino Médio analfabetos funcionais. Assiste a roubo, ausência e baixa qualidade da merenda escolar. Paga baixos salários aos professores e não fornece estrutura suficiente em todas as escolas. Mantém um teto orçamentário, aprovado no governo passado, que restringe novos investimentos em uma área que ainda está distante de um mínimo aceitável.

Mas a sensação, de acordo com as preocupações do governo, é de que o problema da Educação passa pela presença de ilustrações de pipius e xaninhas em cartilhas voltadas a explicar a adolescentes cuidados de saúde com o próprio corpo. Ou a presença de conteúdo didático destinado a combater a violência contra mulheres, homossexuais e transexuais. Ou ainda um suposta doutrinação gayzista-globalista-político-partidária por militantes comunistas travestidos de professores, que pregam o fim da família e da propriedade privada e distribuem mamadeiras de piroca aos alunos. Tomam casos esparsos como padrão nacional e usam-nos como justificativa.

Combater o fantasma de um comunismo que nunca existiu por aqui é mais fácil do que enfrentar problemas reais, como a falta de internet, de lousa, de papel higiênico nas escolas. Porque seguir os passos de quem xinga a tudo e a todos pelo YouTube, com a profundidade de um pires, é fácil. Já pesquisar e construir soluções práticas demandam uma racionalidade que assusta muita gente. Combater fantasmas serve para transformar algo insignificante em um inimigo terrível. Anima, dessa forma, a batalha da extrema direita, aliada de primeira hora do presidente, cujo engajamento é peça-chave para um governo que pretende manter a campanha eleitoral acesa até o seu último dia. Às custas da dignidade das novas gerações.

Bolsonaro pode ser lembrado, negativamente, por deixar o cargo de ministro da Educação vago. Pois, em última instância, a responsabilidade por tudo o que está acontecendo não é de Olavo, nem dos prepostos. É dele.

O problema

Em novo ataque às universidades brasileiras, Abram Weintraub insinuou numa entrevista que a autonomia universitária virou um biombo para o tráfico de drogas. Há "plantações extensivas de maconha" nas universidades federais, acusou o ministro da Educação. Laboratórios de química das universidades desenvolvem "drogas sintéticas", ele acrescentou, assim, em timbre genérico.

Ao fazer esse tipo de declaração numa entrevista sem exibir um ofício de comunicação do fato ao Ministério Público, Weintraub confessa a prática de um crime. Gestor público que deixa de tomar providências quando submetido a ilegalidades tão gritantes incorre no crime de prevaricação. Pena de três meses a um ano de cadeia, mais multa.

Há incontáveis razões para criticar Abram Weintraub. Mas não fica bem falar mal do ministro e usar luvas de renda para analisar o desempenho de Jair Bolsonaro no desastre gerencial em que se transformou o MEC. O que é pior, um ministro inepto ou um presidente que nomeia ministros incapazes? Um súdito de Olavo de Carvalho no MEC ou um seguidor de Olavo de Carvalho na Presidência da República?

Muitos pacientes se salvariam da morte se fosse obrigatório identificar o médico ao lado do nome do morto no atestado de óbito. Do mesmo modo, o presidente da República talvez selecionasse melhor os seus ministros se soubesse de antemão que suas culpas seriam mencionadas no obituário dos maus gestores que nomeou. Bolsonaro é reincidente no MEC. Antes Weintraub, nomeara outro olavista: Vélez Rodrigues, uma piada colombiana. Portanto, deve-se realçar, para que não reste dúvida: o bunker ideológico que se instalou no MEC tem as digitais de Jair Bolsonaro.

Reação

O Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás (Adufg) ingressou com ação cautelar contra o ministro no Supremo Tribunal Federal (STF). A entidade quer que Weintraub explique quais seriam as universidades a que ele se referia quando afirmou que possuem “plantações extensivas de maconha”. E também denomine que universidades estariam “desenvolvendo laboratório de droga sintética”. Na ação, a Adufg questiona ainda quais são os meios de prova pelos quais o ministro tomou ciência desses fatos e quais medidas Weintraub adotou após ciência dos supostos fatos.

“O ministro da Educação mentiu ao fazer estas declarações. É um absurdo que o responsável pela educação no país propague mentiras e falácias. Ele precisa entender que suas falas possuem consequências. Nós produzimos ciência. Isso é um desrespeito com a comunidade acadêmica”, disse, por meio de nota, o presidente da associação, Flávio Alves da Silva, referindo-se à importância da interpelação.

Para os advogados Igor Escher e Elias Menta, as reiteradas agressões do ministro ferem a autonomia universitária e a honra e moral coletiva de professores de todas as universidades e institutos federais do Brasil. Por essa razão, ingressaram com essa ação cautelar em busca de uma retratação de Weintraub. Eles também estão preparando uma ação reparatória pelos danos morais causados. Os advogados entendem que as declarações do ministro extrapolam “qualquer moralidade e probidade que um gestor do primeiro escalão do Poder Executivo deveria ter, sobretudo como Ministro da Educação, cujo papel primordial é aprimorar a educação e as universidades públicas, não depreciar sua imagem, especialmente quando não se comprova nada do que fora dito”.

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) divulgou nota, segundo a qual  Weintraub “parece nutrir ódio pelas universidades” e que “ultrapassa todas as fronteiras que devem limitar, sobretudo, os atos de um gestor público”. A entidade afirma estar tomando “as providências jurídicas cabíveis para apurar eventual cometimento de crime de responsabilidade, improbidade, difamação ou prevaricação” do ministro da Educação.

Paralisia e ineficiência em programas do MEC

Uma radiografia realizada no Ministério da Educação por uma comissão da Câmara dos Deputados indicou paralisia tanto no planejamento quanto na execução de políticas públicas por parte da pasta comandada pelo ministro Abraham Weintraub. Na lista dos problemas identificados estão desde a falta de ações concretas para o fomento da alfabetização até a alta rotatividade de funcionários comissionados. O MEC alega que programas serão lançados em breve e o descontingenciamento de recursos é recente.

É a primeira vez que um grupo assim é formado no Legislativo para averiguar o trabalho de um ministério. “O diagnóstico é assolador e mostra que a fragilidade do planejamento e da gestão do MEC afetou diretamente a formulação e a implementação das políticas educacionais”, diz o relatório da comissão.

O grupo foi criado em abril pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a partir do requerimento de 50 deputados de 12 partidos diferentes – a maioria da oposição e do Centrão. O relator do trabalho é o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES) e a coordenação está nas mãos da deputada Tabata Amaral (PDT-SP). 

A comissão foi criada logo após Tabata protagonizar um áspero bate-boca com o professor Ricardo Vélez, o primeiro escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para comandar a pasta. Na ocasião, a deputada cobrou duramente o ministro. Dez dias depois, Vélez foi demitido e Weintraub assumiu o seu lugar.

Tabata e Rigoni são os mesmos escalados por Maia para elaborar o pacote de projetos na área social, antecipado pelo Estado no mês passado. O presidente da Câmara busca protagonismo na agenda social justamente no momento em que o governo Bolsonaro se prepara para enviar ao Congresso medidas amargas, desta vez com os pacotes fiscal e administrativo.

Na prática, o trabalho dos parlamentares mostrou que a Política Nacional de Alfabetização – única meta específica do MEC nos primeiros cem dias de governo – não resultou, até o momento, na apresentação de um plano de ação detalhado. Desta forma, municípios e Estados ainda não sabem como nem quando a iniciativa chegará às escolas e quais projetos e atividades terão prioridade.

Das ações mantidas pela pasta, o Programa Mais Alfabetização – do governo de Michel Temer – só teve o seu primeiro desembolso, de R$ 149,6 milhões, em setembro. Mesmo assim houve um impasse que atrasou em alguns dias a liberação, sob a justificativa de que teria ocorrido um erro no processo. O programa prevê apoio técnico e financeiro às unidades escolares para alfabetização.

Em um ano marcado pelo contingenciamento de recursos da Educação, mesmo os valores que não sofreram bloqueio tiveram baixo índice de execução. Entre elas estão ações citadas como “apoio ao desenvolvimento da educação básica”, com repasse próximo a zero até julho. No mesmo intervalo, apenas 4,4% da verba reservada para investimentos do MEC foi executada – o relatório assinala que o montante gasto acabou sendo de “menos da metade no mesmo período de 2018 (11,7%)”. Em números absolutos foram R$ 184,06 milhões investidos em 2019, ante R$ 457,62 milhões em 2018. 

“A baixa execução orçamentária em diversos programas denota a baixa capacidade de gerenciamento dos gestores responsáveis”, aponta o relatório.

Uma das razões para a lentidão no trabalho do MEC, segundo o relatório, é a alta rotatividade nos cargos comissionados. Nos nove primeiros meses, o tempo médio de permanência no mesmo setor foi de 112 dias. Em igual período da gestão Temer, por exemplo, a média foi de 150 dias. Além disso, houve redução no número de cargos de confiança ocupados por pessoas que já haviam atuado na área educacional, quando o número é comparado às gestões Temer e Dilma.

Para fazer o diagnóstico, o grupo afirma ter usado informações do MEC, além de ter feito visitas técnicas e obtido dados no Portal da Transparência. A comissão diz ter pedido audiência com Weintraub para discutir a avaliação, mas o ministro teria ignorado.

O MEC informou que “lançará em breve programas e materiais sobre a Política Nacional de Alfabetização”.  “Quanto à execução orçamentária da pasta, é preciso esclarecer que o descontingenciamento total dos recursos só foi realizado há três dias. Mesmo assim, o MEC já empenhou mais de 80% dos gastos discricionários e trabalha para executar todo o orçamento.”

Proposta para alfabetização divide setor

Única meta do Ministério da Educação (MEC) incluída no plano de cem dias de governo federal, a Política Nacional de Alfabetização (PNA) só estará completamente detalhada em abril de 2020, quando o presidente Jair Bolsonaro completa um terço de seu mandato. O programa divide especialistas, por dar ênfase ao método fônico de alfabetização – modelo de ensino que privilegia a associação entre letras e fonemas. 

Para Anna Helena Altenfelder, do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), a PNA é “polêmica” e não dialoga com experiências bem-sucedidas em Estados e municípios nem com a produção acadêmica no País. Além disso, ela critica projetos “diversionistas” do MEC. “Causam polêmica, mas são pouco efetivos e não têm base empírica e teórica que se sustente”, diz, citando como exemplo as escolas cívico-militares. 

A área, segundo ela, tem urgências maiores, como aprovar o novo Fundeb, principal mecanismo de financiamento da educação básica, que vence em 2020 e tramita no Congresso. 

Já a consultora em educação Ilona Becskehazy, que participou em agosto da Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (Conabe), painel de especialistas na área organizado pelo ministério, afirma que o decreto da PNA “é o melhor que já tivemos para tratar da alfabetização”. Ela será responsável pela análise sobre currículos a ser considerada no Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências do MEC, previsto para abril de 2020. “É preciso fazer o documento. É um instrumento legal que pautará outras ações.”

A possibilidade de o relatório ser publicado após um ano e quatro meses de gestão é minimizada. “Temos 500 anos e chegamos a 2019 não alfabetizando nem a metade das crianças até o 3.º ano (do fundamental).” 

Para ela, “da noite para o dia” não dá para resolver tudo. “Até porque o governo federal não tem escola. Pode, no máximo, induzir Estados e municípios a proceder de outras formas por uma série de mecanismos. O mais poderoso deles, o livro didático, o MEC não pode mexer porque o edital já foi feito.”

Reação atabalhoada

O MEC se tornou um caos depois da divulgação do relatório. A ordem do ministro é gastar para demonstrar que algo está sendo feito, segundo fontes. Todas as secretarias do MEC estão sendo consultadas para saber onde é possível colocar dinheiro. A dificuldade de investimento existe porque não foram desenvolvidos programas novos e os gestores têm pouco conhecimento dos antigos.

Segundo fontes, milhões de reais devem ser gastos até o fim do ano. O dinheiro foi liberado diretamente pela secretaria executiva do MEC.

No último dia 27, em evento em São Paulo, governadores e secretários de educação falaram em “ano perdido” para a área por causa da atual gestão do MEC. “Os cargos mudam a toda hora, começamos a conversar com uma pessoa, de repente não está mais no ministério, não há continuidade”, disse o governador Paulo Camara, do Pernambuco. “O Brasil vai pagar um preço alto por essa inoperância.”

Secretários também contaram à reportagem que não houve qualquer planejamento do MEC com os Estados ou diálogo entre os entes.  O governo federal tem a função indutora de políticas. O conselho de secretários de educação (Consed) é quem tem ajudado os Estados a pensar e direcionar políticas.


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