25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Proposta do governo para o SUS desampara ainda mais as cidades

Publicado em 28/11/2019 12:00 -

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Criado há 30 anos, o Sistema Único de Saúde nunca esteve tão ameaçado. O governo Bolsonaro apressa a tramitação de um projeto que vai mudar substancialmente a maneira como a verba para a atenção básica é repassada aos municípios. É o Previne Brasil. A universalidade, grande pilar do sistema, dará lugar a uma estranha meritocracia. O repasse será feito não mais conforme a população de cada cidade, mas pelo número de cadastros nas unidades públicas de saúde. Outro mote é premiar as localidades que atinjam os “melhores resultados”: tenham unidades informatizadas, horários expandidos, profissionais especializados. Falta combinar com a realidade.

“Como avaliar desempenho, se o governo tirou oito dos meus médicos e não repôs?”, pergunta Maria Dalva Amim dos Santos, secretária de Saúde de Embu-Guaçu, na Região Metropolitana de São Paulo. Em julho, CartaCapital esteve na cidade para falar do apagão do Mais Médicos nas periferias. Com o abrupto fim do programa, a cidade perdeu 16 doutores cubanos de uma só vez. Entre idas e vindas de profissionais brasileiros, a prefeitura conseguiu recompor metade da equipe. Quatro meses depois, Embu-Guaçu é de novo espelho dos dramas da saúde pública no Brasil. A cidade tem 68,2 mil habitantes e está distante apenas 47 quilômetros da capital paulista. Vive basicamente do comércio e dos repasses do governo federal – recebe, por exemplo, uma verba extra para preservar os mananciais. Com o repasse unificado, tende a perder verba. Maria Dalva Amim resume de forma categórica: “Estamos desesperados”.

Talvez inspirado pelo miraculoso trilhão prometido por Paulo Guedes com a Previdência, o Previne Brasil garante incluir 50 milhões de brasileiros no SUS. O economista Francisco Funcia, ex-diretor da Associação Brasileira de Economia em Saúde, desconfia desse número. Vários estudos, aponta ele, mostram que as cidades tendem a subnotificar os atendimentos. Na letra da lei, todo o brasileiro precisa apresentar o cartão do SUS para dar entrada em hospitais ou postos de saúde, mas falta a muitos municípios a tecnologia necessária para repassá-los à base universal do sistema. “Não foi apresentado pelo governo nenhum estudo técnico que dê base a esse cálculo. Sem isso, nem sequer podemos afirmar que haverá perdas ou ganhos.” A mudança saiu com o aval dos gestores municipais, estaduais e federais, mas sem a aprovação do Conselho Nacional de Saúde. A proposta será discutida pela entidade em dezembro e, pela lei, não pode ser efetivada sem essa análise prévia.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva e outras 11 entidades do setor alertam, em nota, para o endosso do governo a um “SUS para pobres”. Um dos pontos mais controversos, segundo essas organizações, é que o novo programa deixa de priorizar o Estratégia Saúde da Família, cujo contato direto com a população contribuiu enormemente para a redução da mortalidade infantil. Cálculos da Abrasco indicam que, a cada aumento de 10% na cobertura do programa, cai 4,6% a morte de crianças de até 1 ano de idade. 

O número de indicadores monitorados cairá de 720 para 21. Eles precisarão ser informados regularmente para que os municípios possam receber recursos federais. Entre eles estão a realização de consultas pré-natais e vacinação em crianças. As entidades contestam. “Considerando que o SUS é subfinanciado e por isso sua gestão encontra dificuldade para se aperfeiçoar. Apesar da política de austeridade fiscal, não se pode pensar em diminuição de recursos, seja o ano que for e em qualquer área do Ministério da Saúde.”

Um dos únicos estudos a calcular eventuais prejuízos é o do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo. E os resultados não são nada animadores. Para evitar perdas em pleno ano eleitoral, o governo vai repassar 2 bilhões de reais aos municípios. O dinheiro não está garantido no ano seguinte. Sob essa premissa, a entidade prevê que, em 2021, as cidades paulistas perderão, em média, 732 milhões de reais por conta do novo modelo. Segundo a entidade, só 36% da população do estado mais rico do Brasil é cadastrada nos postos de saúde.

A gestão não é, nem de longe, o maior problema

O SUS sempre recebeu menos dinheiro que o necessário. O gasto médio mensal das três esferas com a saúde de cada brasileiro é de 104 reais, pouco mais da metade da média mundial (6,8% contra 11,7%), segundo a OMS. O baixo crescimento leva a baixa receita. Que leva à menor capacidade de investimento em políticas públicas. “Tivemos dois anos de recessão a partir de 2014, depois o PIB cresceu perto de 1%, insuficiente para cobrir o rombo dos anos anteriores. Se você tem uma unidade de saúde aberta para atender a população, você não vai fechá-la”, explica Funcia.

Desde 2014, o orçamento federal para saúde, para o SUS, não repõe o valor da inflação, girando em torno de 220 bilhões de reais. Os gastos com a saúde não respeitam, porém, os limites inflacionários. “As despesas aumentam porque o PIB está caindo, e não porque estão de fato subindo”, completa. O Sistema Único de Saúde está espremido pelo teto de gastos e pelo desalento de um cenário econômico que só entusiasma a Avenida Faria Lima. 

Além disso, os custos com saúde são altamente dolarizados. Seringas, luvas, equipamentos, remédios… Tudo varia conforme o sobe e desce da moeda americana. Conforme a população fica mais velha e mais pobre, mais sobrecarregada se torna a saúde pública. Os efeitos começam a aparecer. Mesmo alcançando a meta de cobertura vacinal do sarampo de 2019, com 95% das crianças de 1 ano de idade imunizadas, o Brasil ainda enfrenta um surto da doença. Também há risco de uma nova epidemia de poliomielite. Os casos de sífilis explodiram: são 4.000% maiores do que oito anos atrás. Aumentou ainda a incidência de dengue, 600% de 2018 para cá. “Cortar despesas, neste cenário, é tirar direitos”, acrescenta Funcia.

Uma solução de longo prazo é nacionalizar a produção desses insumos. Mas os investimentos em produção local brecaram. Em julho, o Ministério da Saúde suspendeu os contratos para a compra de 19 medicamentos nacionais, por suspeitas de irregularidades e má qualidade de produtos. Este cenário tem se repetido também nos estados. Em São Paulo, o governo corre para desmontar o maior laboratório público de medicamentos do País. E o Instituto Butantan, o principal produtor nacional de vacinas, tem crescido e ampliado recursos para se tornar um dos grandes da big pharma, nem sempre compatíveis com as demandas da saúde pública nacional.

O programa promete incluir 50 milhões de brasileiros no SUS. Só não explica como

Agora, o SUS vive um processo de desfinanciamento. Uma das promessas do minguado plano de governo de Bolsonaro era, justamente, “fazer mais com menos”. Especialistas da área apontam, porém, que a gestão não é, nem de longe, o principal problemas do SUS. “Aprimorar a administração é sempre necessário, mas não dá para dizer que a saúde tem dinheiro”, diz Funcia. Outra investida recente do governo ao caixa da Saúde é a extinção do DPVAT, o seguro universal contra mortes e acidentes de trânsito. Só no ano passado, a entidade arrecadou quase 4,7 bilhões de reais. Quase metade desse total foi repassada ao SUS. Mesmo sem esse dinheiro, o sistema seguirá obrigado a lidar com as tragédias no trânsito do Brasil, que, em nove estados brasileiros, mata mais que os crimes violentos.

Noutra ponta, parece haver por parte do governo um esforço para compensar eventuais perdas estimulando planos de saúde “populares”. O ministro Luiz Henrique Mandetta defende afrouxar as regras para o setor. É um erro, diz Funcia: “Primeiro, não se pode falar em rede de atenção de saúde privada no Brasil. Segundo, porque os casos de complexidade vão ser repassados, mais uma vez, ao SUS”.

Hoje, sete em cada dez brasileiros dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde. O sistema também oferece assistência integral e gratuita a soropositivos, pacientes renais crônicos e com câncer, tuberculose e hanseníase. E opera o maior modelo público de transplantes de órgãos do mundo. Mais de 90% dessas cirurgias realizadas no País foram financiadas pelo SUS. E ainda há gargalos. A cobertura média é de 65%. E mais da metade dos gastos (53,9%) de um paciente com a saúde ainda sai de suas próprias economias, seja por meio de planos privados, seja com o desembolso em consultas e operações. Em 2000, essa taxa chegava a quase 60%. A média mundial é de 39%. Sem dinheiro, não há, no entanto, como o SUS se expandir.

É possível interromper essa trajetória? O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, hoje deputado federal, pediu a realização de uma audiência pública e de seminários estaduais para debater o Previne Brasil. A audiência está marcada para a quarta-feira 27. Ao menos três projetos de decreto legislativo tentam cancelar a portaria. Dois tramitam na Câmara e um no Senado.

Médicos pelo Brasil

Em cima do laço, os senadores aprovaram no último dia 27 a MP do Médicos pelo Brasil, mantendo o texto que passou na véspera pela Câmara. A medida perderia a validade se não fosse votada até quarta. Agora, segue para sanção presidencial.

A promessa é que sejam contratados 18 mil médicos, sendo a grande maioria –  13 mil – nos municípios mais distantes ou pequenos (o tal “Brasil profundo” que Luiz Henrique Mandetta gosta de mencionar). Os outros cinco mil devem atuar em “equipes de Saúde da Família que tem parcela significativa de pessoas que recebem benefícios sociais ou ganham até dois salários mínimos de aposentadoria, inclusive em grandes centros urbanos”, segundo a Pasta. O primeiro edital deve ser lançado em janeiro e os primeiros médicos chegarão aos locais de trabalho em abril, prevê Mandetta.

Como no dia anterior, ele também esteve no Congresso pedindo votos, dessa vez para senadores. Uma das negociações para acelerar a votação foi, de acordo com O Globo, a retirada de um destaque do PT para retomar as avaliações nos cursos de Medicina nos 2º, 4º e 6º anos. O governo aceitou tratar disso em um PL separado. Se a MP fosse alterada no Senado, teria de retornar à Câmara e caducaria. A aliados, Mandetta confidenciava que a relação do governo com os parlamentares “está tóxica”. De acordo com O Globo, o ministro reclamou de ter mais votos no PT, PDT, PCdoB do que no Centrão.

O governo perdeu anéis na negociação para a votação que até semana passada parecia improvável. Isso porque durante os debates na comissão especial criada para analisar a MP, os parlamentares acrescentaram no texto a previsão de aumento de aproximadamente R$ 1,5 mil na gratificação de servidores médicos da carreira da Previdência, da Saúde e do Trabalho. O destaque do PSL que derrubava o acréscimo foi rejeitado ontem. A mudança deve significar um impacto de R$ 1 bilhão por ano no orçamento da União.  

O projeto de lei estabelece pela primeira vez a periodicidade de aplicação do exame: de seis em seis meses. E permite que universidades privadas participem do Revalida, desde que tenham notas 4 e 5 (as mais altas) no Sinaes, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. O critério também serve para universidades públicas, que já aplicavam o exame. Também estabeleceu o envolvimento do Conselho Federal de Medicina no exame. Mas tudo isso também precisa ser aprovado pelos senadores.

Uma comitiva do CFM, aliás, acompanhou a votação. Conforme resumo no site do Conselho, o grupo quis “sensibilizar os parlamentares, especialmente as lideranças partidárias” para que o texto fosse “satisfatório para a classe médica”. Como se sabe, as entidades médicas são contrárias à mudança feita pela comissão especial da MP, que introduziu no texto a previsão de que os cubanos que participaram do Mais Médicos e permaneceram no país sejam absorvidos pelo Médicos pelo Brasil. A alteração beneficiaria cerca de 1,7 mil profissionais, que poderiam atuar no novo programa por até dois anos sem a necessidade de revalidação dos diplomas. Depois desse prazo, para continuar atuando, precisam ser aprovados no Revalida. Tudo isso foi aprovado ontem pelos deputados em plenário.

Outro ponto extremamente delicado da MP, este originalmente previsto pelo governo federal, é a criação de uma Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps) nos moldes de serviço social autônomo para gerir o programa. Trata-se do debate central para as entidades da Reforma Sanitária e deputados da oposição, que analisam que a Adaps será um poderoso motor de privatização do SUS, uma espécie de novo Inamps. O temor é que a agência contrate, por exemplo, empresas privadas como a Unimed para atuar nas unidades básicas de saúde. Um destaque do PSOL, que pedia alteração desse trecho para que a gestão do Médicos pelo Brasil ficasse sob a responsabilidade do próprio Ministério da Saúde, foi rejeitado por 303 votos a 103. 

Mandetta valeu-se de um argumento para convencer parlamentares a votarem pela MP: a ameaça de que milhares de cidades brasileiras fiquem a maior parte de 2020 sem médicos. “Fui muitos anos oposição aqui dentro, fiz muita obstrução. Mas todas as vezes que eu quis fazer maldade com o governo, eu tinha o cuidado de não atirar no meu próprio pé. Se caducar, e eu tiver de mandar (um projeto de lei), só vota depois do Carnaval e não posso fazer o processo seletivo de contratação de médicos em meio às eleições”, explicou.

O novo Revalida é muito mais excludente

O Ministério da Educação detalhou as mudanças no Revalida. Na verdade, as alterações já tinham sido anunciadas em julho – mas aguardavam uma definição do Congresso, que primeiro as incluiu na MP do Médicos pelo Brasil e depois em um projeto de lei separado, que foi aprovado na quarta-feira pelo Senado e seguiu para sanção presidencial.

Além da participação de faculdades privadas na aplicação do exame de revalidação de diplomas e da aplicação da prova duas vezes por ano, o MEC prevê que a primeira etapa do Revalida, composta por questões objetivas teóricas, possa ser feita de forma digital, em datas e locais predeterminados. A segunda etapa é a prova prática – e caso o médico não seja aprovado, na próxima vez pode pular direto para essa fase final, sem fazer a prova teórica de novo.

A estimativa da Pasta é que 15 mil formados no exterior participem das provas em 2020. E os preços do exame serão bem mais caros. A primeira etapa até que não aumentou tanto assim: foi de R$ 150 para R$ 330. Mas a segunda etapa deu um salto e tanto, indo de R$ 450 para R$ 3,3 mil. A justificativa do governo é que, assim, o Revalida passa a ser custeado pelos próprios interessados.

A confecção das provas, que até hoje era feita pelo Inep, passará a ser realizada por meio de um convênio que o MEC vai assinar com a Universidade Federal de São Paulo, a Universidade Federal do Ceará e o hospital Sírio-Libanês, em conjunto com o National Board Medical Examiners, órgão dos Estados Unidos que aplica exames a estudantes de medicina. O Conselho Federal de Medicina acompanhará o processo.

A Folha destaca ainda que o MEC estuda suspender a portaria do ano passado que declarou uma moratória de cinco anos na abertura de novos cursos de Medicina.


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