24/04/2024 - Edição 540

Brasil

Alter do Chão: a tramoia para agradar o bolsonarismo

Publicado em 28/11/2019 12:00 -

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Documentos, vídeos, interceptações telefônicas, uma investigação de dois meses. Policiais de óculos escuros, mídia devidamente avisada e pautada, fotografias de divulgação, coletiva de imprensa marcada. Tudo pronto para a notícia: polícia prendeu quatro brigadistas ligados à ONGs acusados de atearem fogo na mata em Alter do Chão para receber dinheiro. Saiu em todos os jornais. No dia seguinte, Bolsonaro pisaria pela primeira vez na Amazônia desde a crise internacional provocada pelas queimadas na região. Um roteiro estranhamente sincronizado.

Os presos são Daniel Gutierrez Govino, João Victor Pereira Romano, Gustavo de Almeida Fernandes e Marcelo Aron Cwerner, membros da Brigada de Incêndio de Alter do Chão, no Pará. Eles foram detidos ontem sob a acusação de terem provocado um incêndio criminoso na Área de Proteção Ambiental da região – levados à cadeia, tiveram os cabelos raspados. A polícia também apreendeu equipamentos na ONG Saúde e Alegria, que atua na região, e na qual um dos brigadistas trabalha.

Segundo a Polícia Civil, responsável pela investigação, os brigadistas, ligados à ONG, teriam elaborado plano de colocar fogo na floresta para escandalizar o planeta e receber doações de ONGs internacionais para combater o incêndio que eles mesmos teriam iniciado. “A pessoa jurídica deles conseguiu um contrato com a WWF, venderam 40 imagens para a WWF para uso exclusivo por R$ 70 mil, e a WWF conseguiu doações como do ator Leonardo DiCaprio no valor de US$ 500 mil para auxiliar as ONGs no combate às queimadas na Amazônia”, disse o delegado José Humberto Melo Jr. na coletiva de imprensa.

Melo Jr. falou à Globonews que a polícia investigava a possibilidade de o incêndio ter sido criminoso quando desconfiou de um grupo que, segundo ele, tinha “vantagens financeiras” com os incêndios. Grampearam os brigadistas e usaram os diálogos para fundamentar a acusação. Enquanto ele dava entrevista, a Globonews cravou no letreiro na tela: “brigadistas desviavam as doações para combate a incêndios”.

Como provas, a polícia divulgou gravações de conversas dos brigadistas. Também mencionou um vídeo divulgado pelo próprio grupo. “Eles gravaram o início de um fogo, de uma queimada. Só que só estavam eles”, disse o delegado. “Ali não teria como começar um fogo se não fosse por eles”. Esse é um dos vídeos que os brigadistas divulgaram na época:

A defesa dos brigadistas diz que eles são inocentes e que não teve acesso aos vídeos usados como evidências pela polícia e que, por isso, tem duas hipóteses. A primeira é de que “as imagens sejam de treinamento de voluntários da Brigada, em que focos de fogo controlados são criados para exercícios práticos”, feitas com apoio dos bombeiros e com licenças emitidas pelos órgãos responsáveis. A outra é de que a ação mostre uma tática conhecida como “fogo contra fogo”, também realizada em conjunto com os bombeiros para proteger áreas.

As conversas do grupo também foram divulgadas com pirotecnia. A mídia noticiou frases ditas pelos brigadistas que, segundo a polícia, comprovariam a intenção deles de provocar incêndio para ganhar dinheiro. “A vaquinha deu R$ 100 mil pra galera. Vaquinha nossa. Tá maravilhoso!”, diz um dos brigadistas em uma conversa. “Tirem suas próprias conclusões”, tuitou o ministro Ricardo Salles:

Mas o blog Ambiência, da Folha, teve acesso aos diálogos completos. E eles mostram que, de fato, os brigadistas falaram sobre dinheiro de doações — mas discutiam quais exatamente seriam as contrapartidas para ele. “Com dúvidas básicas que mostram inexperiência e preocupação com a correção, um dos brigadistas chega a perguntar se precisaria devolver o equipamento após o contrato, ao que o representante da WWF responde ‘não, é de vocês’”, diz o texto. Essas partes da conversa, é claro, não foram divulgadas.

A brigada, criada em 2018, faz parte da ONG Instituto Aquífero Alter do Chão, criada para articular ações de combate a incêndios na região. Em nota, a defesa dos brigadistas afirma que fez a declaração dos valores recebidos no fim de setembro e que as doações posteriores ainda estão sendo consolidadas em um relatório. Segundo os brigadistas, o valor recebido da WWF foi uma parceria com o instituto para aquisição de equipamentos para a brigada, e as contas serão prestadas no dia 10 de dezembro.

Uma ONG para chamar de culpada

Nesta manhã, a justiça do Pará decidiu manter os quatro brigadistas — todos sem antecedentes criminais — presos. “Mantive as prisões porque as acusações são muito graves de uma possível prática reiterada de incêndios criminosos. O que não significa que eles sejam culpados”, disse o juiz Alexandre Rizzi.

Hoje, o presidente Jair Bolsonaro chega à Amazônia. É a primeira vez que ele pisa na região depois da crise internacional provocada pelos incêndios e pelo desmatamento na área, que chegaram a alimentar, até mesmo, a paranóia de militares e do governo sobre a internacionalização da Amazônia.

Entre agosto e setembro deste ano, o mundo assistiu estarrecido às imagens de queimadas e a divulgação de números do aumento do desmatamento na região. Uma das primeiras reações do presidente foi acusar ONGs que atuam na região de provocarem os incêndios para “chamar a atenção” e conseguir dinheiro. Bolsonaro, como de hábito, não apresentou provas da sua acusação.

“O crime existe, e isso aí nós temos que fazer o possível para que esse crime não aumente, mas nós tiramos dinheiros de ONGs. Dos repasses de fora, 40% ia para ONGs. Não tem mais. Acabamos também com o repasse de dinheiro público. De forma que esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro”, ele disse.

Não foi a única vez: o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também insinuou que o Greenpeace seria responsável pelo derramamento de óleo na costa do Nordeste, outro desastre ambiental deste governo.

Com a midiática operação policial que prendeu os brigadistas, Bolsonaro e Salles podem agora justificar a acusação contra as supostas ONGs criminosas. A prisão se encaixa perfeitamente na estratégia do governo de demonizar e enfraquecer organizações não governamentais, um estágio fundamental para implantar o plano do Governo Bolsonaro para a floresta: abrir espaço para mais monocultura, pecuária e mineração. E a polícia civil do Pará deu o que eles precisavam para mostrar serviço na primeira visita do presidente à região depois da crise.

Há uma investigação paralela que corre no Pará para encontrar os responsáveis pelo Dia do Fogo, ação de fazendeiros da região para provocar incêndios ao longo da BR-163. Tocada pela Polícia Federal, ela mostrou que os responsáveis articularam a queimada via WhatsApp — em um grupo que tinha, inclusive, um delegado da Polícia Civil — para dificultar a fiscalização. O grupo é apoiador das políticas de Bolsonaro para a região. Até agora, ninguém foi preso e nenhum acusado foi exibido como troféu na mídia.

As prisões dos brigadistas são suspeitas. Não há nada nos diálogos que configurem provas robustas contra eles. O que existe é apenas interpretação de trechos de diálogos que, dependendo da inclinação ideológica do leitor, pode significar uma coisa ou outra. O material, que é dúbio, não deveria ser suficiente para um juiz privar um cidadão da liberdade sem condenação.

Mas as prisões criam lastro para uma acusação rocambolesca que favorece o presidente – um presidente que tinha viagem marcada para a região em poucos dias. Até que a polícia apresente provas mais fortes, o que temos é uma tentativa da polícia e do juiz de mostrar serviço para agradar Bolsonaro e justificar a ideologia de criminalização de ONGs, uma tese estranhamente popular entre autoridades das profundezas da Amazônia. Uma tese que, enquanto não for provada, é simplesmente falsa.

Polícia levou tudo sem explicar o porquê, diz diretor de ONG na Amazônia

"Fomos surpreendidos por agentes da Polícia Civil armados até os dentes com metralhadoras, assustando as pessoas que estavam no escritório da organização. Não tivemos acesso a nenhum documento de decisão judicial que explicasse o que eles vieram fazer e o mandado de busca era genérico. Acabaram levando tudo, computadores, servidor, documentos."

O desabafo foi feito por Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria, uma das mais importantes organizações de defesa dos direitos dos ribeirinhos e do meio ambiente da Amazônia. Fundada em 1987, atende a mais de 30 mil pessoas, atuando na saúde básica e da família, em projetos de desenvolvimento sustentável, na educação e inclusão digital, no manejo agroecológico, entre outras atividades na região de Alter do Chão – ponto turístico de águas cristalinas no rio Tapajós, próximo à Santarém (PA). Ele afirma que estão colaborando com as investigações, mas espera que tudo seja esclarecido o quanto antes.

A ONG foi um dos alvos de uma operação de busca e apreensão na manhã desta terça (26). De acordo com a Polícia Civil, uma investigação conduzida por eles apontou indícios de que a Brigada de Incêndio de Alter do Chão teria colocado fogo na mata para apagar incêndios e ganhar mais doações. Quatro membros da Brigada foram presos. Para a polícia, o Saúde e Alegria teria servido para captação de recursos. Organizações ambientalistas reclamam de perseguição.

Nilto Tatto, coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara dos Deputados, divulgou nota repudiando a operação. "Dessa vez, a tentativa de criminalização visa envolver, além da Brigada de Alter do Chão, fundamental no combate aos incêndios florestais na região, a ONG Projeto Saúde e Alegria, que sofreu busca e apreensão de documentos institucionais em um inquérito onde sequer tomaram conhecimento, e o WWF, organização com um longo histórico de trabalho e luta contra a degradação ambiental."

Tatto afirmou que o episódio se soma a "tentativas do governo Bolsonaro de criminalizar, sem provas, como quando sugeriu participação do Greenpeace nos vazamentos de óleo no Nordeste, a fala maldosa de que as ONGs seriam autoras dos maiores incêndios florestais promovidos por criminosos ambientais na Amazônia, e a tentativa de criação de uma CPI das ONGs".

Em nota, o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social conclamou as companhias "que atuam pela sustentabilidade da região amazônica em parceria com ONGs a se fazerem ouvir e a se posicionarem sobre este grave ataque as organizações da sociedade civil". De acordo com a organização, "o que nos choca é a forma como essa investigação foi conduzida e as conclusões que chegou, visto que, até o momento, as provas apresentadas não são plausíveis. Não houve transparência nem mesmo no momento das apreensões".

"O que a gente lamenta é que o país caminha para uma inversão de valores – o 'cidadão de bem' é o que comete o crime ambiental e o 'cidadão do mal' é quem denuncia o crime. Uma situação como essa fere a democracia de um país", afirma Scannavino. 

Leia a entrevista com o coordenador do Saúde e Alegria.

Nos bastidores da PF, a tramoia desvendada

A investigação em que a Polícia Federal trabalha desde o final de agosto para descobrir os responsáveis pelo “Dia do Fogo” na Amazônia não tem nenhuma organização não-governamental entre os suspeitos. Nem a Brigada de Incêndio de Alter do Chão nem a ONG Saúde e Alegria são investigadas ou consideradas suspeitas pela PF.

Nos bastidores, fontes ouvidas pelo Intercept descartam a participação desse tipo de entidade e seguem investigando fazendeiros locais como principais responsáveis pelos incêndios que impressionaram o mundo.

Há dois inquéritos abertos pela PF, tocados nas delegacias de Altamira e Santarém. Esse segundo deu origem à operação Pacto de Fogo, realizada em Novo Progresso em outubro.

Os alvos dos mandados de busca foram empresários, produtores rurais e fazendeiros, que tiveram notebooks, HDs e celulares apreendidos. A PF aguarda o resultado da perícia nesse material, mas não há suspeitas que recaiam sobre ONGs.

Quer dizer – a investigação federal vai no caminho oposto ao da espalhafatosa e esquisita operação da polícia civil do Pará, que prendeu voluntários e colocou a Brigada e a ONG Saúde e Alegria como suspeitas de provocarem incêndios na região de Altamira.

O que levou a polícia paraense a prender ambientalistas, a bem da verdade, é um mistério para fontes com quem conversamos – porque, apesar de insistentes pedidos, inclusive formais, as autoridades do Pará se recusaram a compartilhar sua investigação com os policiais federais.

A PF também foi atacada na região. Um carro descaracterizado no qual policiais federais viajavam pela rodovia transamazônica foi alvejado por um tiro disparado de uma viatura da polícia militar local. O caso foi relatado à cúpula da corporação, segundo apuramos.

No último dia 27, o Ministério Público Federal pediu acesso ao inquérito da polícia civil do Pará. Procuradores estranharam as prisões de ongueiros dessa semana e disseram que, desde 2015, investigações federais “apontam para o assédio de grileiros, ocupação desordenada e para a especulação imobiliária como causas da degradação ambiental em Alter do Chão”.

Suspeitos, os de sempre: ruralistas

O foco principal da investigação da PF é Novo Progresso, perto da fronteira com o Mato Grosso, onde começou o “Dia do Fogo” – dois dias de incêndios criminosos na região, em 10 e 11 de agosto. Altamira fica 900 quilômetros ao norte de Novo Progresso. São 13 horas de viagem de carro por uma estrada em boa parte coalhada de buracos.

A Polícia Federal participou também da operação de Garantia da Lei e da Ordem na Amazônia, no final de agosto, e em nenhum momento teve motivos para suspeitar que ONGs estivessem por trás dos incêndios na região.

Ao contrário, os suspeitos da PF são óbvios – madeireiros e, principalmente, fazendeiros locais. A investigação parte de conversas trocadas num grupo de WhatsApp em que eles combinaram as queimadas. Dele, fazia parte o delegado Vicente Gomes, superintendência da polícia civil do Pará na região do Tapajós, em que fica Novo Progresso. É a provável razão para a falta de empenho das autoridades locais em compartilhar informações com as federais.

É, ainda, um motivo possível para o empenho da polícia do Pará em atrair as atenções noutra direção, longe de Novo Progresso, verdadeiro foco dos crimes. Se as investigações concluírem que as queimadas de fato foram executadas a partir de um grupo incluindo o delegado Gomes, ele terá cometido pelo menos crime de prevaricação – quando um servidor público deixa de cumprir seu dever em troca de vantagem pessoal.

Moradores de Novo Progresso ouvidos pela PF apontaram Gomes como homem ligado a madeireiros da região. Já integrantes do grupo de WhatsApp, os principais suspeitos dos incêndios criminosos, ouvidos na investigação, apontaram o dedo para – quem diria – organizações ambientalistas, seguindo as acusações do presidente Jair Bolsonaro, que jamais apresentou provas.

Gomes, flagrado no grupo de zap onde as queimadas foram combinadas, não goza de prestígio junto ao secretário de Segurança Pública do Pará, Ualame Machado, um delegado federal licenciado. Mas, nós apuramos, Machado não recebeu autonomia do governador Helder Barbalho, filho do velho cacique local Jáder Barbalho, atualmente senador, para montar sua equipe (ambos são do MDB). Há, na polícia civil paraense, um conflito entre policiais mais jovens – alinhados ao secretário – e a “velha guarda”, de que Gomes faz parte.

Culpar ONGs por crimes ambientais é um álibi que pareceu surpreendente até a investigadores experientes na área. Usualmente, ruralistas e madeireiros tinham nos assentados sem-terra seu bode expiatório preferido. Quando acusados de crimes, costumavam culpar os assentados. Mas as falas do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro parecem ter criado uma nova tendência. Na dúvida, a culpa agora é das ONGs.

“Numa coisa o presidente está certo: a mata é úmida, não queima. Quando está de pé. Derrubada, é outra história. O Dia do Fogo é tradicional na região. Este ano o incêndio foi maior porque tinha muito mais árvore no chão”, ouvi de uma fonte familiarizada com a investigação da PF.

A culpa, aí, parece recair em Bolsonaro – que, naturalmente, fez uso político das suspeitas contra ambientalistas. Em recente visita à Arábia Saudita, Bolsonaro disse inclusive que “potencializou” o movimento de destruição da mata. Ele não esconde. As palavras de incentivo do político alimentaram a sanha dos desmatadores da região de Novo Progresso, localizado na nova fronteira agrícola da Amazônia.

Um episódio espantou os policiais federais: em certo momento, logo no início do ano, faltou combustível na cidade, tal o ritmo de trabalho das motosserras movidas a gasolina.

Inépcia a toda prova

O inquérito da polícia do Pará que levou quatro ambientalistas à prisão – por considerá-los responsáveis por incêndios florestais na região de Alter do Chão – é recheado de conclusões estapafúrdias sem embasamento em provas e, em vários pontos, traz correlações que a própria investigação desmente. A peça parece apenas um ato de ficção com destino certo: movimentar as turbas pró-Bolsonaro nas redes, incendiadas por personagens irresponsáveis como a deputada Carla Zambelli e o próprio presidente da República.

O inquérito parece destinado à lata do lixo: não há nele qualquer prova material que comprove a autoria dos incêndios. Mas causou estragos na vida dos ambientalistas e na imagem das ONGs que combatem incêndios na Amazônia. Por sorte, a farsa durou pouco mais de 48 horas: os acusados foram soltos da prisão e o delegado responsável pela investigação está afastado. Os cães do bolsonarismo que estavam comemorando a “prova” de sua tese estapafúrdia – “as ONGs atearam fogo na Amazônia” – seguirão latindo? É provável. Mas nós recebemos o inquérito e vamos mostrar suas inconsistências.

São 111 páginas. Num dos trechos que mais chamam a atenção, a polícia se baseia num grampo telefônico para afirmar que dois dos presos, João Victor Pereira Romano e Gustavo de Almeida Fernandes, “se declararam, peremptoriamente, os responsáveis pela vasta queimada ocorrida em Alter do Chão, não restando dúvidas serem os prováveis autores do fato criminoso”.

É uma conclusão altamente criativa, uma vez que a única menção a fogo é a seguinte – o grifo é dos próprios policiais:

Para a polícia paraense, no entanto, indícios como esse são suficientes para afirmar que “fica plenamente comprovado (sic) os indícios veementes de autoria dos crimes ora em tela pelos membros da Brigada Alter do Chão (…) como seus prováveis mentores e executores com o fito de promoverem-se (sic) e em razão disto angariar recursos financeiros de grande monta, caracterizando-se numa grande e rentável associação criminosa”.

Após tomar depoimentos, a polícia paraense achou que havia “imperiosa necessidade de prosseguimento das investigações”. O motivo? Fatos como “os integrantes da Brigada [Alter do Chão] serem os primeiros a chegar ao local das queimadas” e “toda a divulgação exagerada feita por estes em relação ao evento, ficando presumida a intenção de promoção” do grupo.

Parece inacreditável, mas isso foi suficiente para a justiça autorizar grampos em telefones dos brigadistas e ambientalistas. Entre 26 de setembro e 20 de novembro, as escutas produziram cerca de seis horas de gravações. A conclusão delas, segundo a polícia: os ambientalistas estavam “agindo dolosamente no intuito de auferir vantagens financeiras por meio de doações e contrato firmado com a gigantesca ONG WWF”. Ou seja: eles incendiavam a mata para ganhar dinheiro. Provas? Nenhuma. Caso existam, precisam vir à tona antes que pessoas sejam presas com base em achismos e torcida.

Nos trechos incluídos no inquérito, em nenhum momento há diálogos que mostrem intenção clara de atear fogo à mata. Em vez disso, leem-se coisas como isso:

Para a polícia do Pará, não foi a imensa repercussão mundial dos incêndios na Amazônia que levou ongs como a WWF a mandar dinheiro a grupos dispostos a combatê-los – neste caso, formado por pessoas que já moravam no local e já trabalhavam com apagamentos de focos de incêndio há anos. Pelo contrário: nas conclusões dos investigadores e do delegado que comandou o inquérito e agora está afastado, José Humberto Melo Júnior, foram uns jovens de Alter do Chão que bolaram um plano para queimar a floresta e com isso encher os bolsos de dinheiro.

O nonsense continua:

Na Amazônia, agosto e setembro são historicamente marcados pela queima do que foi desmatado nos meses anteriores. A ong Saúde e Alegria atua há 30 anos na região. A Brigada de Alter do Chão foi formada em 2018 e conta com apoio e orientação de bombeiros profissionais. Ou seja – ambas têm experiência no assunto.

Mais: não há muitos caminhos que levem a Alter do Chão. O principal acesso é pela rodovia PA-457, que liga o município a Santarém, ou pelos rios Tapajós ou Amazonas. Da rodovia, se viam as matas queimando e havia farto material na imprensa atestado isso – o que torna a conversa absolutamente banal. Não para a polícia civil do Pará. Se trabalhassem no Rio, os delegados Melo Júnior, Sílvio Birro Duarty Neto e Fábio Amaral Barbosa poderiam prender quem avisa parentes que a cidade alaga com as chuvas de verão – seriam acusados de encomendar as chuvas.

Adiante, os policiais afirmam o seguinte:

Culpar os autores das imagens dos incêndios pela existência dos mesmos incêndios. É mais ou menos como culpar emissoras de televisão ou jornais que noticiam um desastre aéreo por derrubar o avião. Mas foi o que fizeram os policiais.

Repare que, na parte a seguir, os próprios policiais grifam um trecho em que os brigadistas lembram que a WWF gostaria de ter imagens deles combatendo incêndios na Amazônia com o material comprado com dinheiro da ONG. Mas a própria WWF diz que não seria necessário fazer propaganda da ONG e que as fotos poderiam ser feitas em eventuais incêndios “no ano que vem”:

Ao longo de várias páginas, o inquérito se atém a minúcias de conversas entre os membros da Brigada a respeito do contrato com a WWF – em que não há qualquer indício de crime.

Provavelmente percebendo que não têm elementos para falar em crimes ambientais, os policiais se aproveitam que, num dos grampos, um deles fala sobre fumar um baseado:

A droga – cujo porte para consumo não é crime, e que já é legalizada em rincões mais civilizados do planeta – não é objeto da investigação e nem mesmo do pedido de prisão. Mas é tema de páginas e páginas do inquérito, em que os policiais – sem prova alguma – acusam os ambientalistas de serem traficantes de drogas organizados em uma quadrilha. Não há notícia de que um grama sequer de maconha tenha sido apreendido com os brigadistas.

O primeiro ponto que chama atenção para uma possível irregularidade cometida pelos brigadistas só aparece na página 42 do inquérito. Ali, aparece uma discussão sobre uma prestação de contas exigida pelo corpo de bombeiros de Alter do Chão.

Em seguida, a polícia diz o seguinte:

O curioso, aqui, é que o tema não é explorado pela polícia no dia em que a operação foi deflagrada e anunciada com fanfarra. Se os policiais tinha dúvidas sobre a gestão do dinheiro recebido pela ONG, por que não deram luz a isso? O advogado Wlandre Gomes Leal, que defende Marcelo Aron e o João Victor, disse ao Intercept que não há qualquer previsão legal para essa investigação, já que o dinheiro não é público, e que os brigadistas entregaram discos rígidos aos delegados que incluem todas as contas da organização.

É só na página 44 do inquérito que a polícia finalmente chega ao que deveria ser o objeto da investigação:

Os “indícios sobejos” – fartos, imensos, extraordinários –, se existem, não aparecem no inquérito. A “prova”, para os policiais, é que o grupo filmava suas ações. Logo a seguir, retorna a obsessão com o dinheiro que a WWF entregou aos brigadistas:

A seguir, vem o momento mais constrangedor do inquérito: os policiais tomam uma referência a “queimar o mato” – gíria corrente entre quem fuma maconha – por colocar fogo na floresta:

Como se pode ver, a investigação é de uma inépcia espantosa, um retrato triste dos nossos dias. Nesse meio tempo, no entanto, quatro pessoas ficaram presas e as hordas bolsonaristas espalharam por suas redes a tese de que as ONGs são responsáveis pelos incêndios criminosos na Amazônia. Não são. O circo midiático foi montado e parte grande da imprensa noticiou sem questionar. O incêndio no debate público, mesmo depois de controlado, deixou suas cinzas para trás mais uma vez.


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