19/03/2024 - Edição 540

Especial

A escravidão tem cor

Publicado em 25/11/2019 12:00 -

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"Esse problema da escravidão aqui no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar, até hoje. O índio preferia morrer do que cavar mina, do que plantar pros portugueses. O índio preferia morrer. Foi por causa disso que eles foram buscar pessoas nas tribos na África, para vir substituir a mão de obra do índio. Isso tem que ficar claro, ora! Me desculpa você aí, mas se na minha família não tem nenhuma pessoa que tenha ido buscar um navio negreiro lá na África, como é que eu vou ter dívida com negócio de zumbi, esse pessoal."

A declaração é de Ricardo Albuquerque, procurador e ouvidor-geral do Ministério Público do Pará em uma palestra para estudantes no último dia 26. O MP-PA afirmou que repudia o áudio que está circulando nas redes. E ele diz que a fala está fora de contexto.

"Temos uma certa herança da indolência [vagabundagem, preguiça], que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, Edson Rosa [vereador negro, presente na mesa], nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso caldinho cultural."

Já a declaração acima é do general da reserva Antônio Hamilton Mourão, então candidato à vice-presidência na chapa de Jair Bolsonaro (PSL), e foi divulgada pelo site da revista Veja, em agosto de 2018, durante a campanha eleitoral. Na época, Mourão confirmou, ao jornal o Globo, o que havia dito em um evento em Caxias do Sul (RS). E à Folha de S.Paulo, reclamou que as frases foram tiradas de contexto.

"Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida."

A frase acima é de Jair Bolsonaro, então candidato à Presidência da República, em julho do ano passado, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Ele havia sido questionado sobre a forma que pretendia reparar a dívida histórica da escravidão. E disse que as políticas de cotas é que dividem brancos e negros no Brasil e não um histórico racismo – que só não é percebido por quem está profundamente imerso nele.

O Brasil é um país cujas fundações estão assentadas na escravização, tortura e morte de outros povos. E autoridades vomitando preconceitos como se fossem a coisa mais normal do mundo não são novidade. Mas o governo Bolsonaro inovou: ao trazer preconceito para dentro do discurso oficial, ele faz com que o naco violento da sociedade, antes reprimido pela coletividade, sinta-se à vontade de dizer e fazer o que quiser.

No momento em que o ministro da Economia enche a boca para falar de um novo AI-5 em contraponto a possíveis manifestações contra suas reformas, vale lembrar de uma história que entrou no anedotário nacional, apesar da falta de comprovação de que realmente ocorreu. Conta-se que na reunião que se decidiu pelo referido Ato Institucional, em 13 de dezembro de 1968, o vice-presidente de Costa e Silva, Pedro Aleixo, colocou-se contra a decisão. Teria dito que o problema não era a cúpula da ditadura, mas o "guarda da esquina". O AI-5 cassou direitos, restringiu liberdades e abriu caminho para a violência a opositores do regime.

Atos e exemplos das cúpulas de governos estimulam outras autoridades ao longo da cadeia alimentar do poder. Quando o presidente defende que agentes de segurança pública não sejam punidos ao cometerem excessos, claro que isso empodera o policial que age em uma comunidade pobre e que já não concordava com as regras que restringem seu trabalho.

Declarações violentas contra indígenas e negros, como as de Bolsonaro e Mourão, não geraram a do procurador Ricardo Albuquerque, no Pará. Mas os primeiros fazem parte de um grupo que estimulou a mudança do contexto social, no qual o segundo pode falar livremente. Num país em que o filho do presidente da República diz que a Suprema Corte pode ser fechada usando apenas um cabo e um soldado, o o cabo e o soldado devem pensar que isto é a Casa da Mãe Joana.

Agora, sobre a questão da escravidão em si. O branco começou um genocídio contra a população indígena há cinco séculos e não há sinalização de que vá terminar tão cedo. No Mato Grosso do Sul, em Roraima ou em outros estados que são ponta de lança da expansão agropecuária e extrativista, povos são perseguidos, maltratados e escravizados (sim, ainda escravizados) em fazendas por uma população que aprendeu que eles representam a "indolência". Crianças passam fome, jovens suicidam-se, adultos são bombardeados com agrotóxicos ou assassinados enquanto é negada a eles a terra que é deles por direito.

Vivemos um racismo estrutural após uma abolição malfeita, que apenas mudou a metodologia de exploração sem ter garantido cidadania de fato aos libertos e seus descendentes, criou uma multidão marginal em direitos, desempregada, subempregada, precarizada. Tendo sido forçados por mais de 300 anos a gerar riqueza ao país, os africanos passaram a serem associados ao trabalho duro. Perseguições a essa população pela justificativa de vadiagem continuam até hoje nas periferias das grandes cidades brasileiras, criminalizando uma cor de pele e atribuindo a ela atributos para que sejam mantidas eternamente sob controle.

"Malandragem", na verdade, foi o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, negócio de portugueses, que controlaram parte da África. "Malandragem" foi terem trazido 4,9 milhões de pessoas para o Brasil a fim de trabalharem e morrerem de graça. "Malandragem" é encararmos, ainda hoje, negros e negras como cidadãos de segunda classe e ferramentas descartáveis de trabalho em nome da manutenção de nossos privilégios.

"Malandragem" é um presidente achar que não tem uma dívida histórica com os negros enquanto não-negros superexploram negros. Ou a grita geral diante de leis que garantem isonomia de direitos trabalhistas a empregadas domésticas (cuja esmagadora maioria é negra) significa o quê? 

Alburquerque pediu afastamento do cargo. Um processo administrativo foi aberto após decisão unânime do Colégio de Procuradores de Justiça do MP do Pará. O grupo vai avaliar se a conduta foi compatível com o exercício do cargo de ouvidor-geral. Enquanto não a decisão não sai, ele ficará afastado.

“A resposta do Ministério Público foi rápida e imediata, pois no dia seguinte ao fato foi instaurado o procedimento administrativo disciplinar pelo CNMP e hoje ocorreu a abertura do processo administrativo e a homologação do afastamento pelo Colégio de Procuradores. E nós vamos zelar para que também a resposta definitiva venha o mais rápido possível”, alegou o procurador-geral de Justiça, Gilberto Valente Martins.

Representantes quilombolas e indígenas estiveram na sede da instituição e foram recebidos por Gilberto Martins. Eles deram entrada no protocolo geral do Ministério Público em uma Notícia Crime em desfavor do procurador de Justiça Ricardo Albuquerque.

Negação

Sob Jair Bolsonaro, há um adorador da ditadura na Presidência, um antiambientalista no Ministério do Meio Ambiente, um antidiplomata no Itamaraty, um deseducado na pasta da Educação e um inimigo dos artistas na Secretaria de Cultura. Quando se imaginava que o governo já havia atingido o ápice do contrassenso, sobreveio o escárnio: um negro racista no comando de uma entidade criada para zelar pelos interesses da comunidade afrodescendente.

Chama-se Sérgio Camargo. Jornalista, foi acomodado na presidência da Fundação Palmares, que tem entre os seus objetivos: promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes. Os pensamentos vadios do personagem estão disponíveis na vitrine das redes sociais.

Sérgio Camargo avalia que "não há salvação para o movimento negro. Precisa ser extinto! Fortalecê-lo é fortalecer a esquerda". Espanto! Para ele, "a escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes". Pasmo! Sustenta que "os negros do Brasil vivem melhor que os negros da África". Estupefação!

Uma das metas do novo presidente da Fundação Palmares é abolir o Dia da Consciência Negra, que "celebra a escravização de mentes negras pela esquerda." Procurado, absteve-se de esmiuçar sua antiplataforma numa entrevista. Mas a Secretaria da Cultura, que abriga em seu organograma a Fundação Palmares, parece dar-lhe carta branca.

Sobrou até para Martinho das Vila. Chamado por Camargo de um "vagabundo" que "deveria ser mandado para o Congo", o compositor reagiu com indignação e citando Noel Rosa: "Quem é você que não sabe o que diz?". Em entrevista ao jornal O Globo, o sambista de 81 anos, um dos maiores nomes da música brasileira, falou sobre a escolha do governo, os ataques pessoais feitos a ele e o movimento negro no país. “Ele é um ignorante, sequer sabe que a Fundação Palmares é uma conquista do movimento negro no governo Sarney. Ele só conseguiu essa nomeação por causa do movimento negro. Se ele não fosse uma pessoa desprezível, cantaria para ele o samba do Noel: ‘Quem é você que não sabe o que diz/ Meu Deus do céu que palpite infeliz’".

Em nota, a secretaria esclareceu que Sérgio Camargo defende que o negro não precisa ser vítima. Tampouco precisa ser de esquerda. Trabalha para alcançar a libertação da mentalidade que escraviza ideologicamente os negros. Uma de suas prioridades é desaparelhar a Fundação Palmares.

O Hino à República, aquele que pede à liberdade que "abra as asas sobre nós", diz a certa altura: "Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre país…" Alguns versos adiante, proclama: "Somos todos iguais". O hino foi escrito pelo poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque em 1890.

Dois anos antes, ainda havia escravos no Brasil. Decorridos 129 anos, eles continuam existindo. Sergio Camargo, por exemplo, está acorrentado à mesma mentalidade que faz do governo Bolsonaro não um fenômeno conservador, mas um flagelo arcaico. Instado a comentar a nomeação de Sérgio Camargo, o presidente da República economizou palavras: "Não conheço pessoalmente".

É uma pena que Jair Bolsonaro não conheça Sérgio Camargo. Vivo, o grego Sócrates, de passagem por estas anacrônicas ágoras tropicais, repetiria para o capitão um de seus célebres ensinamentos: "Conhece-te a ti mesmo". Um encontro de Bolsonaro com o presidente da Fundação Palmares será como uma espiada no espelho.

Se prezasse seu ofício de jornalista, Sérgio Camargo talvez percebesse que o melhor engajamento político é o de retratar a estupidez humana, usando a habilidade verbal para produzir um testemunho contra. Mas ele parece ter optado por denunciar a estupidez praticando-a.

Desde que foi criada, em 1988, a Fundação Cultural Palmares teve nove presidentes. Três já faleceram. Cinco deles assinam manifesto de repúdio às falas do novo ocupante do cargo. Um dos organizadores dessa manifestação, Zulu Araújo, que presidiu a fundação entre 2007 e 2010, no governo Lula, está indignado. “Nosso manifesto é uma mobilização contra as opiniões do novo presidente. O movimento negro é um símbolo de conquistas, de uma luta que gerou a Fundação Palmares, nascida no ano do centenário da abolição da escravatura, em 1988. Foi um reconhecimento por parte do Estado da importância da comunidade negra, que seus valores e manifestações culturais sejam respeitados. Foram 300 anos de escravidão e temos ainda sequelas graves. O combate ao racismo está assegurado em decisão da ONU, de sua conferência de 2001”, disse Zulu Araújo.

Ele criticou as declarações de Sérgio Camargo. “A declaração de negar o racismo no Brasil, negar a descriminação, negar as conquistas alcançadas ela comunidade negra vai de encontro aos princípios civilizatórios. Contraria os princípios elementares dos direitos humanos. Não é uma mobilização contra a nomeação. Não cabe a nós indicar, mas ao presidente Bolsonaro, que indica quem quiser. Mas temos que brigar para que as conquistas alcançadas sejam consolidadas”.

Uma história de escravidão

Uma família de homens e mulheres negras. Nenhum dos quatro filhos conseguiu terminar o ensino médio. Cresceram na roça e começaram a trabalhar ainda crianças. João (nome fictício), de 26 anos, deixou a escola na sexta série, por volta dos 12 anos. Desde então, trabalha cortando cana ou colhendo café.  Em agosto de 2018, foi um dos 18 trabalhadores resgatados em situação análoga à de escravo em uma fazenda de café em Minas Gerais. 

João é parte dos números que, para especialistas, comprovam a marginalização das populações negras. A cada cinco trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão entre 2016 e 2018, quatro são negros. Pretos e pardos representam 82% dos 2,4 mil trabalhadores que receberam seguro-desemprego após resgate. Entre os negros resgatados estão principalmente homens (91%), jovens de 15 a 29 anos (40%) e nascidos em estados do Nordeste (46%). O levantamento foi feito pela Repórter Brasil, com base em dados obtidos da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, por meio da Lei de Acesso à Informação.

O chamado “seguro-desemprego trabalhador resgatado” é um auxílio temporário destinado às vítimas de trabalho escravo. Entre 2016 e 2018, de 2.570 trabalhadores resgatados, 2.481 receberam auxílio (96%), sendo que 343 se autodeclararam brancos e 2.043 negros (soma de pretos e pardos). Os demais se autodeclararam amarelos (18), indígenas (66) ou não fizeram declaração de raça.  

“Ser negro é igual a estar sujeito a situações diversas em que sua vida é desvalorizada, você é um ser desqualificado socialmente e sua cultura é deslegitimada”, afirma Sérgio Luiz de Souza, professor da Universidade Federal de Rondônia e pesquisador de História Afro-brasileira e Africana, mostrando como os números são sintomas da realidade vivida pelos negros ainda hoje. “As populações negras, que são metade da população brasileira, não têm acesso ao ensino superior, ao Parlamento, têm menos acesso à saúde, à educação, são os mais pobres, vivem menos.” 

Oportunidade para quem?

Os dados também revelam que a maioria dos resgatados, assim como João, não concluíram o ensino fundamental: 56%. Entre o total havia ainda 14% de analfabetos.

“Sinal gritante da desigualdade”, na avaliação de Gildásio Silva Meireles, agente do Centro de Defesa da Vida de Açailândia, no Maranhão, onde auxilia trabalhadores explorados, após ser resgatado 12 anos atrás. “É uma questão de sobrevivência. A maioria de nós [negros] não tem estudo e se sujeita a qualquer situação para tirar o sustento da família”, afirma. 

Do total de negros resgatados, 62% eram trabalhadores rurais, florestais e da pesca; 29% atuavam na indústria. O estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça”, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgado no último dia 12, mostrou que a população negra representa 64% dos desempregados e 66% dos subutilizados, além de ganhar menos do que os brancos. 

“O dinheiro que sobra é só para comer. Queria estudar melhor para não ficar passando por isso. Mas não tive oportunidade”, diz João. 

Mas educação é a solução? Para Jorge Ferreira dos Santos, coordenador da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere-MG), não nos moldes atuais. “Qual modelo de educação ajuda a libertar nosso povo? Esse modelo que está aí nos prepara para sermos escravos do sistema. As oportunidades que temos hoje são o trabalho doméstico, a roça, a construção civil”, afirma Santos. “Continuamos acorrentados, senão pela corrente física, pela lei que mais exclui do que inclui.”

Desigualdade naturalizada

João continuou trabalhando na colheita do café, mesmo depois do resgate feito pelos auditores fiscais do então Ministério do Trabalho, atual Ministério da Economia. Diz que a situação em que foi resgatado em Minas foi a pior pela qual já passou. A casa onde dormia estava cheia de ratos; a caixa d´água, infestada de morcegos; o pagamento não era adequado. “Mas é sempre sofrido.”

A fazenda de onde ele foi resgatado exibia certificações internacionais renomadas, entre elas a C.A.F.E. Practices, selo da Starbucks em parceria com SCS Global Services, e a certificação da UTZ, a maior da indústria cafeeira. 

Para o professor Souza, há uma naturalização da desigualdade. “Escravizar um negro, tomar a terra de um indígena ou de um quilombola, matar uma negra, é irrelevante e socialmente aceitável. São seres invisibilizados.”

Em 2007, quando foi resgatado, Meireles conheceu o Centro de Defesa da Vida de Açailândia (MA). Passara cinco meses e meio trabalhando em uma fazenda, na roçada de pastos, sem receber um real. Fazia parte de um grupo de 18 trabalhadores que contraía dívidas ao chegar na propriedade, passava o dia vigiados e vivia em condições insalubres: sem água potável, sem banheiro, dormindo com os animais da propriedade. Meireles conseguiu fugir, buscou ajuda e voltou para resgatar os demais. Após cinco meses sem notícias suas, a esposa quis o divórcio. Sem ter para onde voltar após o resgate, ficou em Açailândia e decidiu trabalhar na causa. Hoje, atua em Monção (MA). “Os casos existem, mas são mais camuflados do que antigamente.”

O caminho para um país com equidade e voltado para a diversidade social, étnica, racial e de gênero passa, segundo o professor Souza, por ações do Estado e da sociedade. Para ele, o governo deve implementar políticas como ampliação de universidades e instituições de pesquisas, cotas e leis pró-diversidade, mas a sociedade civil e grupos que conseguem chegar ao governo também precisam agir.  “Não existe a implementação de políticas públicas e de instrumentos do Estado sem luta social. A sociedade é dinâmica”, afirma.

Voz da liberdade

Após o resgate do trabalho escravo, a maioria das vozes dos trabalhadores não é ouvida pelo restante da sociedade. O caso de Marinaldo Soares Santos, no entanto, foge à regra. O maranhense, libertado três vezes do trabalho escravo em fazendas, é hoje uma liderança comunitária, que atua na prevenção ao aliciamento de trabalhadores, junto ao Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) Carmen Bascarán, entidade da sociedade civil sediada em Açailândia e dedicada ao atendimento a trabalhadores resgatados e famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

O protagonismo de Marinaldo é resultado do processo formativo que o trabalhador recebeu por parte do CDVDH. A organização também foi responsável pelo atendimento de sua família, apoiando estratégias de geração de renda e de garantia de acesso a direitos básicos.

Em 2016, Marinaldo recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria “Combate e Erradicação do Trabalho Escravo”, em função de sua atuação social no Maranhão.

O site Escravo, nem pensar! gravou o depoimento de Marinaldo durante o VI Encontro de trabalhadores(as) resgatados(as) do trabalho escravo, realizando em maio em Pindaré-Mirim. O evento, organizado pelo CDVDH, ocorre anualmente desde 2014. Seu objetivo é promover compartilhamento de experiências e discutir políticas públicas de enfrentamento ao trabalho escravo.

Bois, madeira e terra

"Parte do desmatamento da Amazônia foi feito com trabalho escravo." A declaração da procuradora Lys Sobral Cardoso, chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, remete à lembrança algo fundamental, mas quase sempre esquecido: árvores saudáveis não tombam sozinhas. Muitas vezes tocam o chão por mãos cativas.

A informação ganha especial relevo nesta semana, quando o governo federal divulgou um salto de 29,5% na área desmatada da Amazônia Legal na comparação entre agosto de 2018 e julho de 2019 e o período anterior. Os dados são do sistema Prodes (inventário de perda de floresta feito anualmente), mais preciso que o Deter (sistema que produz alertas diários de alteração na cobertura vegetal) – ambos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

De acordo com Cardoso, foram flagrados trabalhadores escravizados em atividades ligadas ao desmatamento em todos os nove estados da Amazônia Legal, mas em especial no Pará, no Mato Grosso e no Amazonas. "Os resultados das fiscalizações mostram uma evidente e intensa relação entre trabalho escravo e desmatamento, principalmente na pecuária bovina", afirma a procuradora.

Xavier Plassat, cientista político pela Sciences Po, de Paris, frei dominicano e coordenador da área de combate à escravidão da Comissão Pastoral da Terra, concorda. Para ele, existe uma conexão intrínseca entre destruição da floresta e trabalho escravo e dá como exemplo o município de São Félix do Xingu, no Pará, um dos campeões em área desmatada de Amazônia. E, ao mesmo tempo, campeão nacional em trabalho escravo – com 1650 libertados em 183 casos registrados desde 1995.

"Seja no desmatamento raso para a abertura de pastos, seja no saque madeireiro, em que o desmate seletivo é orientado pelo altíssimo valor de determinadas árvores, o ponto de partida é quase sempre carregado de ilegalidade. A terra é geralmente grilada ou uma área de proteção invadida e as autorizações de corte e transporte são fraudulentas", afirma Plassat. "Para se sustentar, essa ilegalidade originária requer uma ilegalidade estrutural que garanta visibilidade mínima e rapidez na execução e dificulte a detecção pelo olhar indiscreto do satélite. Isso nunca combina com as exigências de um trabalho em condições minimamente decentes."

Em outras palavras, as vítimas são obrigadas – sob ameaças e violência – a trabalhar rapidamente para cumprir as necessidades do empregador. E como tudo deve ser rápido e discreto, não há instalações adequadas, alimentação e água próprias para o consumo, equipamentos de proteção. "Isso fomenta condições degradantes e jornadas exaustivas, não raro em áreas isoladas, onde o trabalhador, aliciado fora ou não, vive confinado e submisso ao bem querer de um capataz."

Mais de 54 mil pessoas foram resgatadas dessas condições pelo governo brasileiro desde 1995, de acordo com o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

Imagens de operações do grupo móvel de fiscalização, formado por auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho, policiais e defensores públicos, entre outros servidores, têm reforçado que trabalho escravo e desmatamento andam de mãos juntas. E matam. 

Perdeu o filho e seguiu trabalhando

No início de setembro, uma ação resgatou 17 trabalhadores de condições análogas às de escravo que atuavam na derrubada de mata nativa e carregamento de toras em caminhões, em Pimenta Bueno (RO). O grupo, contudo, estava lá meses antes. A equipe chegou a eles por causa da denúncia da morte de um trabalhador atingido por uma árvore durante o desmatamento. De acordo com a auditora Andrea Donin, coordenadora da operação, os 17 estavam em condições degradantes de trabalho e atuavam sob grave risco para sua segurança e vida.

A mãe e o irmão do trabalhador foram dois dos 17 resgatados na frente de trabalho. Ela – que atuava como cozinheira do grupo – afirmou que precisava do serviço e, por isso, continuou ali mesmo após a morte de seu filho. Como ninguém era registrado como empregados da fazenda, a esposa teve que entrar na Justiça pelo direito a receber pensão pelo INSS.

Outra operação, iniciada no final de agosto, resgatou 12 trabalhadores que atuavam na derrubada de mata nativa e em uma serraria, montada no local para pré-beneficiar a madeira, na ilha de Marajó, no Pará. Os trabalhadores também haviam começado a trabalhar meses antes, como no caso acima, e, portanto, dentro do período monitorado pelo Prodes.

O coordenador da ação, o auditor fiscal do trabalho Homero Tarrago Neto, explicou ao blog que as condições em que as pessoas foram encontradas eram péssimas. Os alojamentos não contavam com condições básicas de higiene, privacidade e conforto e não havia instalações sanitárias ou água potável nas frentes de trabalho ou local para preparo e consumo das refeições. Recipientes destinados ao armazenamento de óleo para motor eram reutilizados para o consumo de água e o pagamento era feito de forma irregular.

Além da abertura de novas áreas para a pecuária e o desmatamento direto, há também escravização de seres humanos em outras atividades de retirada de floresta nativa na Amazônia, por exemplo, na produção de carvão vegetal. De acordo com dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia, uma operação em Santa Rita do Tocantins, em outubro de 2018, libertou nove trabalhadores de condições análogas às de escravo. Outra, em abril, em Tucuruí (PA), resgatou 11 pessoas. Em ambas, produzia-se carvão.

"Há relação entre o desmatamento, especialmente aquele destinado à abertura de novas pastagens para pecuária, e o trabalho escravo, de acordo com informações constantes no Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho", afirmou ao Alberto Bastos Balazeiro, procurador-geral do Ministério Público do Trabalho, pouco depois de ser empossado em agosto.  

"Os municípios paraenses de Altamira e Novo Progresso [onde ocorreu o chamado "Dia do Fogo", com convocações de produtores rurais para a realização de queimadas], na Amazônia Legal, por exemplo, concentram elevado número de resgates de trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea. Não há números exatos da incidência do trabalho escravo no desmatamento, pois o registro é feito pela principal atividade econômica do empregador", afirma.

Críticas ao governo

Desde o início do ano, Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, são acusados de enfraquecer os órgãos e sistemas de controle e monitoramento. Garimpeiros e madeireiros fecharam rodovias para chamar a atenção do presidente diante de tentativas dos órgãos de fiscalização de combaterem o aumento nas queimadas – etapa seguinte ao desmatamento. Foram defendidos por Bolsonaro, enquanto fiscais eram criticados.

Bolsonaro chegou a dizer, em uma de suas lives semanais, que "quem quer atrapalhar o progresso, vai atrapalhar na Ponta da Praia". Ele se referia a servidores públicos que estariam demorando para conceder licenças para um empreendimento na região Sul. Disse que não mandava neles, mas se pudesse, "cortaria a cabeça". "Ponta da Praia" se refere à base da Marinha na Restinga de Marambaia, no Rio, que teria sido usada como centro de interrogatório, tortura e execução durante a ditadura.

No dia 30 de julho, o presidente criticou o combate ao trabalho escravo, tanto o conceito utilizado para definir esse crime quanto a fiscalização. Demonstrando desconhecimento quanto ao tema, ele bateu a emenda 81/2014 da Constituição Federal, que prevê o confisco da propriedade rural ou urbana de quem utilizou trabalho escravo. A emenda é a principal legislação aprovada, nos últimos anos, para o combate à escravidão contemporânea no país. Ironicamente, o presidente votou a favor dessa emenda em 2004, quando era deputado federal, no primeiro turno de votação.


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