29/03/2024 - Edição 540

Poder

Lei de Segurança Nacional, um resquício da ditadura

Publicado em 22/11/2019 12:00 -

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No início de novembro, três dias após o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sair da prisão e fazer discursos críticos ao governo, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: "Temos uma Lei de Segurança Nacional que está aí para ser usada", argumentando que "alguns" acham que as falas do petista poderiam ser enquadradas na norma.

Bolsonaro se referia a uma lei decretada na ditadura militar que pune com prisão condutas com componente político, como fazer propaganda de processos violentos para alterar a ordem social, incitar a subversão da ordem política ou difamar o presidente da República.

A fala se aproxima de outras declarações recentes do presidente que ameaçam usar a força contra opositores ou na hipótese de protestos. No final de outubro, Bolsonaro definiu as manifestações que ocorriam no Chile como "atos terroristas" e disse que as Forças Armadas brasileiras deveriam estar "preparadas" para manter a lei a ordem caso processos semelhantes ocorressem no país.

A Lei de Segurança Nacional (LSN) era uma norma utilizada na ditadura (1964-1985) para enquadrar opositores e tratar divergências políticas como crime. Em 1983, quando o regime militar já caminhava para o fim, essa lei ganhou uma nova versão, mas seguiu tratando condutas amplas como crime, que poderiam ser usadas contra adversários do governo.

Desuso e reabilitação no período democrático

Após a promulgação da Constituição de 1988, que garante o pluralismo político e busca acomodar as divergências de opinião dentro do espaço democrático, a LSN entrou em desuso, segundo Janaína Penalva, professora de direito constitucional da Universidade de Brasília (UnB).

"Havia uma sensação de que essa lei tinha caído por si só, pois era usada para reprimir manifestações políticas, e que nem fazia sentido entrar com uma ação para que o Supremo declarasse sua inconstitucionalidade", diz.

Contudo, cerca de uma década depois, passado o calor dos debates sobre a redemocratização, a LSN voltou a aparecer em indiciamentos e ações penais contra movimentos sociais, especialmente ligados à reforma agrária e de esquerda, segundo Penalva.

Os primeiros alvos célebres da norma no período democrático foram integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), indiciados em 2000 com base na Lei de Segurança Nacional após invadirem prédios públicos. Seis anos depois, um coordenador do movimento, João Pedro Stédile, também foi denunciado com base na norma, por supostamente ter coordenado um ato que destruiu mudas de eucalipto da Aracruz Celulose.

Em 2012, policiais militares que se engajaram em uma greve na Bahia foram enquadrados na lei, e em 2013 um casal que participava de um protesto no centro de São Paulo também foi preso e indiciado com base na norma, acusados de provocar danos a uma viatura da polícia.

Esses casos continuam a ocorrer. De 2014 a 2018, pelo menos 156 pessoas foram processadas com base nessa lei em todo o país, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgado pelo portal UOL.

Um exemplo recente é o de Adélio Bispo, que esfaqueou Bolsonaro em setembro de 2018 durante ato de campanha em Juiz de Fora (MG) e foi indiciado por um crime estipulado na LSN, o de cometer atentado por inconformismo político. Ao final do processo, ele foi absolvido por ter transtorno mental e internado compulsoriamente.

Tentativas de revogar a lei falharam

Hugo Leonardo, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), afirma que a Lei de Segurança Nacional tem conteúdo "autoritário" e que alguns de seus trechos violam a liberdade de manifestação do pensamento. "Ela prega uma situação que não é típica da convivência democrática", diz.

Para ele, no caso dos discursos de Lula aos quais Bolsonaro se referia, essa lei "jamais poderia ser aplicada" devido às garantias da Constituição. "É uma especificidade brasileira, muitos comandos legais ficam existentes porque não sofrem revogação expressa até o Supremo ser provocado. Mas é uma lei tão absurda que poderia ser revogada sumariamente", afirma.

Diversas iniciativas para revogar a LSN foram encaminhadas ao Congresso, sem sucesso. Em 1991, o então deputado Hélio Bicudo (1922-2018), então filiado ao PT, propôs um projeto de lei para revogar a norma e incluir, no Código Penal, crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Em 2002, último ano da gestão Fernando Henrique Cardoso, o então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, também enviou uma proposta ao Congresso para revogar a norma. Em sua justificativa, ele defendeu a necessidade de abandonar o uso da terminologia "segurança nacional", típica da ditadura.

Em 2012, uma comissão de juristas criada pelo Senado para elaborar uma proposta de reforma do Código Penal sugeriu a revogação da Lei de Segurança Nacional, e em abril de 2014 entidades da sociedade civil pressionaram o Palácio do Planalto, então presidido por Dilma Rousseff, a rever a lei, mas o governo decidiu não se envolver diretamente no tema.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, publicado em dezembro de 2014, também recomendou revogar a norma, que segundo o colegiado refletia "as concepções doutrinárias que prevaleceram no período de 1964 a 1985".

Em 2017, a Procuradoria-Geral da República foi provocada a mover uma ação no Supremo Tribunal Federal para que a Corte declarasse a inconstitucionalidade da lei, mas o órgão decidiu não agir nesse sentido.

Segundo a professora Penalva, da UnB, a permanência da norma no ordenamento jurídico e a referência recente feita por Bolsonaro "é fruto de uma aberturapara um discurso autoritário, como se estivéssemos usando sentidos simbólicos da ditadura. É a ausência de uma justiça de transição adequada nos rondando", diz.

A discussão no Supremo

Levantamento realizado em 2018 por Laura Mastroianni Kirsztajn, na Sociedade Brasileira de Direito Público, analisouos 29 acórdãos do Supremo que até aquele momento que se referiam à Lei de Segurança Nacional. A pesquisa concluiu que, em nenhum deles, o conjunto da Corte discutiu em abstrato a constitucionalidade da norma. Os processos tratavam de casos individuais, e ministros fizeram apenas observações pontuais sobre a validade da lei.

Em 2016, ao julgar um dos casos, o ministro Luís Roberto Barroso, que participou da formulação da proposta de revogação da norma apresentada em 2002 por Miguel Reale Júnior, afirmou: "Já passou a hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira".

A posição dos membros da Corte sobre a validade da norma, porém, não é unânime. Em setembro, o ministro Alexandre de Moraes determinou busca e apreensão em endereços do ex-procurador-geral de Justiça, Rodrigo Janot, após ele relatar em entrevista ter ido ao Supremo armado com a intenção de matar o ministro Gilmar Mendes. Em sua ordem, Moraes citou como justificativa um artigo da Lei de Segurança Nacional.

Licença para matar

O presidente Jair Bolsonaro disse na quinta-feira (21) que enviou ao Congresso um projeto de lei que amplia o conceito do chamado excludente de ilicitude, para isentar de punição policiais ou militares que cometerem excessos durante operações de garantia da lei e da ordem. Exemplos recentes são as atuações que aconteceram no Rio de Janeiro, Roraima e Amazonas.  

O projeto é uma promessa de campanha de Bolsonaro e, segundo o presidente, deverá representar uma "guinada" no combate à violência no país. "Não adianta alguém estar muito bem de vida se está preocupado com medo de sair na rua com medo de ladrão de celular. Ladrão de celular tem que ir para o pau", frisou Bolsonaro.

O presidente fez uma referência a uma fala do ex-presidente Lula que, na semana passada, afirmou que "não aguenta mais um jovem ser morto porque roubou um celular".

De acordo com Bolsonaro, o objetivo do projeto é que agentes não sejam punidos por eventuais excessos cometidos em serviço, sob "escusável medo, surpresa ou violenta emoção", e poderia ser aplicado a mortes provocadas por policiais.

Além de militares, as regras do projeto do Planalto também poderão se aplicar a membros da Força Nacional de Segurança Pública e integrantes de órgãos como Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, policiais civis, militares e bombeiros, sempre que apoiarem operações de garantia da lei e da ordem.

Essas operações são acionadas, por tempo limitado, nos casos em que há "esgotamento das forças tradicionais de segurança pública", em "graves perturbações da ordem". Eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 também fazem parte dessas atuações.

"Há um imprevisto, é justo eu submetê-lo [o policial] a uma auditoria militar e entre 12 a 30 anos de cadeia? Ele ou um soldado com 20 anos de idade, ou um cabo ou sargento ou coronel, é justo?", questionou Bolsonaro, mais cedo, ao deixar o Palácio da Alvorada. "Tem que ter um responsável. O responsável sou eu, eu assumo minha responsabilidade."

Quando o excludente de ilicitude fazia parte do pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, especialistas e entidades que atuam na área dos direitos humanos criticaram o item, afirmando que ele pode dar imunidade para policiais e militares ao matarem pessoas em serviço e, consequentemente, aumentar a letalidade de agentes de segurança.

Eles ainda apontaram que o enfraquecimento do controle sobre a ação da forças de segurança está fadado ao fracasso e significa, na prática, uma apologia ao crime, pois, além de favorecer as mortes de policiais e de moradores nas periferias, a proposta fortalece a ação de milicianos e grupos de extermínio.

Segundo Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança Pública, na Universidade Cândido Mendes, “o excludente de ilicitude flexibiliza ainda mais o que o Brasil já tem, o uso excessivo da força por parte de policiais sem que eles temam que a Justiça os julgue”

Já a antropóloga Alba Zaluar, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), disse que a proposta vai aumentar o número já elevado de mortes cometidas por policiais sem nenhuma consequência posterior.

"Ao dar apoio jurídico, Bolsonaro incentiva uma situação extrajudicial. Bastará alguém andar com algo parecido com um fuzil, como o jovem que carregava um guarda-chuva e foi recentemente fuzilado", diz. "É obvio que isso não vai nos ajudar a resolver essa questão. Pelo contrário, temo que isso termine numa guerra civil, com o aumento de mortes de policiais e de moradores das favelas."

Em 2018, 6.220 pessoas foram mortas por agentes de segurança civis e militares. A série histórica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSBP) mostra que a letalidade policial vem crescendo constantemente desde 2013.

Para Alberto Kopittke – Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – o PL de Jair Bolsonaro não tem nenhuma preocupação com o problema da criminalidade do país. “Ele tem como alvo a possibilidade de um aumento das mobilizações de rua no país, como está ocorrendo em todo o continente, autorizando policiais e as forças armadas a fazerem uso da força letal contra pessoas envolvidas em manifestações sociais. O Projeto é uma preparação para a possibilidade do Brasil viver um processo de mobilização social e segue a sugestão dada pelo filho 03 do Presidente, Eduardo Bolsonaro, há poucos dias atrás, sobre a necessidade de se tomar medidas duras, como um novo AI5 no país”, afirma.

"Legítima defesa e injusta agressão"

O Planalto informou por meio de um comunicado que o projeto "define situações em que a legítima defesa e a injusta agressão são presumidas, e pune o excesso quando o militar ou agente exorbite dolosamente dos limites da exclusão de ilicitude".

De acordo com o projeto, "injusta agressão" são atos de terrorismo, bem como condutas que possam gerar morte ou lesão corporal, restringir liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça. Pessoas que portem ou usem ostensivamente arma de fogo também entram na classificação.

Se houver excesso doloso, o agente deverá responder somente por esse excesso. O juiz também pode chegar a atenuar a pena. O processo penal previsto é de crimes militares, com possibilidade de prisão preventiva. O militar ou policial que se enquadrar em casos de excludente por injusta agressão não poderá ser preso em flagrante.

O Código Penal Brasileiro já prevê a exclusão de ilicitude em três casos: no estrito cumprimento do dever legal; em casos de legítima defesa e em estado de necessidade. Dependendo do caso, o dispositivo pode ser usado por agentes de segurança e por qualquer cidadão.


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