25/04/2024 - Edição 540

Poder

Subiu no telhado a blindagem de Flávio Bolsonaro

Publicado em 22/11/2019 12:00 -

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O plenário do Supremo Tribunal Federal passou a exalar um aroma de reversão de expectativas. Apontados por Dias Toffoli como fornecedores de material para "investigações de gaveta, que servem apenas para assassinar reputações", o ex-Coaf e o Fisco ainda não enxergam no fim do túnel um clarão nítido de luz. Mas deixaram de vislumbrar apenas o pus.

A nova atmosfera empurrou para cima do telhado a perspectiva de conversão da blindagem temporária oferecida por Toffoli a Flávio Bolsonaro em anulação do inquérito que o Ministério Público move contra o filho Zero Um do presidente da República no Rio de Janeiro. Há nos subterrâneos do Supremo uma percepção de que Toffoli exorbitou, esqueceu de maneirar.

No célebre voto de mais de quatro horas, cujo teor ninguém entendeu direito, Toffoli passou a impressão de que procurava ideias desesperadamente. Mal comparando, o ministro ficou em situação análoga à de um cachorro que escondeu o osso e esqueceu a localização do esconderijo.

Após desperdiçar o tempo do país durante toda a sessão de quarta-feira (20), Toffoli torrou um pouco mais da paciência nacional explicando na abertura da sessão de quinta (21) o que não conseguira esclarecer na véspera. As explicações evidenciaram a razão de tanta dificuldade de expressão. Toffoli protagonizou mais um vexame. E tem dificuldade para se reposicionar em cena.

Depois de congelar o inquérito contra Flávio Bolsonaro e outras 935 investigações, depois de enfiar o ex-Coaf num processo que tratava exclusivamente da Receita Federal, depois de requisitar os dados sigilosos de 600 mil pessoas e empresas, depois de tudo isso, Toffoli deu o braço a torcer.

O presidente do Supremo reconheceu que é absolutamente "constitucional" o compartilhamento de dados do Coaf com o Ministério Público e a Polícia Federal sem autorização judicial. Ou seja: a pretexto de socorrer o primogênito de Jair Bolsonaro, Toffoli paralisou desnecessariamente durante quatro meses investigações que deveriam estar em franco andamento. Isso tem nome. Chama-se lambança.

Segundo ministro a votar, Alexandre de Moraes reforçou a constitucionalidade da atuação do ex-Coaf, agora chamado de UIF. Moraes sustentou que também a Receita Federal tem o dever de compartilhar com o Ministério Público o resultado da apuração de delitos tributários, algo que Toffoli ensaiara limitar, em contradição com a jurisprudência do próprio Supremo.

Antes que a sessão de quinta terminasse, alguns ministros manifestaram desconforto por discutir a atuação do Coaf num julgamento sobre a Receita. Esboçaram desconforto Rosa Weber, Edson Fachin, Marco Aurélio e até Ricardo Lewandowski.

Impossível antecipar os veredictos do Supremo. Mas há no plenário da Corte um jeitão de virada. A certa altura, Fachin como que constrangeu Toffoli a reconhecer que, prevalecendo o seu voto ou o de Moraes, a liminar que enviou ao freezer os casos do Zero Um e outros 925 iria para o beleleu.

Confirmando-se a derrubada da liminar, Toffoli deveria se autoincluir, na condição de réu, no processo secreto que abriu para investigar ataques contra o Supremo Tribunal Federal. No momento, ninguém desmoraliza mais a Corte do que seu presidente.

Fim do pacto

Era uma vez o pacto firmado pelos três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) que o presidente do Supremo Tribunal Federal propôs e liderou para que o país atravessasse em paz os anos Bolsonaro.

Fazia parte do acordo a redução da beligerância dos seguidores do presidente Jair Bolsonaro e dos seus filhos contra a Justiça e o Congresso. Em troca, o Congresso aprovaria as reformas do interesse do governo e a Justiça as garantiria.

Outros pontos seriam negociados à parte. A libertação de Lula, por exemplo. Deu trabalho, mas ficou tudo okey. Ainda tem militar reclamando por aí, mas é jogo jogado. Em compensação, na medida do possível, a Justiça protegeria os Bolsonaro.

Foi visto como um ato de proteção a liminar concedida por Toffoli que suspendeu todos os inquéritos abertos pelo Ministério Público com base em informações sigilosas fornecidas por órgãos do governo sem prévia autorização judicial.

Nos últimos quatro meses, pelo menos cerca de 950 inquéritos foram paralisados – entre eles, por mera coincidência, o que apurava os negócios suspeitos da dupla Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz. Foi um duro golpe no combate à corrupção.

Nesse caso, o jogo que parecia jogado não está mais. Diante da desaprovação geral, Toffoli recuou e no julgamento em curso no Supremo passou a admitir com algumas restrições que o Ministério Público toque em frente o que havia parado.

Sinal amarelo para Flávio – e, por tabela para a família dele. Sinal que poderá se tornar vermelho se ao fim do julgamento, o que só ocorrerá na próxima semana, a maioria dos votos for a favor da pura e simples revogação da liminar concedida por Toffoli.

Por ora, o placar está empatado: 1 voto pelo compartilhamento de dados sigilosos com o Ministério Público, porém com restrições; 1 voto (o do ministro Alexandre de Moraes) pelo compartilhamento sem restrições, como sempre foi. Até a próxima quarta-feira.

Xereta

Tancredo Neves, raposa das mais felpudas da política brasileira, deixou para a eternidade preciosos ensinamentos. Dias Toffoli aprendeu da pior maneira o valor de uma das lições de Tancredo: "A esperteza, quando é muita, come o dono." O doutor tornou-se protagonista de um recuo muito parecido com um cavalo de pau.

Com a curiosidade de um voyeur, Toffoli planejara observar a silhueta bancária de autoridades e políticos fisgados pelo antigo Coaf em movimentações suspeitas. Faria isso no escurinho do sigilo processual. De repente, reportagem da Folha acendeu a luz. E Toffoli meteu-se numa coreografia de maluco, que espantou até alguns de seus colegas de toga.

Ao congelar o processo que inferniza Flávio Bolsonaro, Toffoli travou 935 investigações turbinadas pelo Coaf. Alegando que precisava livrar a sociedade de abusos dos órgãos de controle, requisitou sem justa causa dados sigilosos colecionados nos últimos três anos. De posse da senha que daria acesso aos segredos de 600 mil pessoas e empresas, o mandachuva do Supremo absteve-se de usá-la.

No último dia 15, o procurador-geral da República Augusto Aras pediu a revogação da ordem que escancarou para Toffoli os arquivos que o Ministério Público está impedido de usar desde julho. Além de indeferir o pedido, Toffoli dobrou a aposta, requisitando novas informações. No dia 18, após receber os dados que poderia ter solicitado bem antes, decidiu dar meia-volta.

Eis o que escreveu Toffoli em novo despacho: "Diante das informações satisfatoriamente prestadas pela UIF [novo nome do Coaf], em atendimento ao pedido dessa Corte, em 15/11/19, torno sem efeito a decisão na parte em que foram solicitadas, em 25/10/19, cópia dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs), expedidos nos últimos três anos".

Ministros do Supremo costumam falar uma língua que ninguém entende, salvo nos instantes em que se insultam diante das câmeras da TV Justiça. No português das ruas, deu-se o seguinte: Toffoli saiu de fininho porque o uso da senha fornecida pelo Coaf deixaria gravado no sistema um rastro que denunciaria os objetos do seu desejo.

A essa altura talvez já tenha ficado claro para Toffoli e seus pares que as duas coisas mais perigosas de uma democracia são a imprensa livre e a afeição das autoridades pelo escurinho. Juntas, elas levam fatalmente a estes clarões repentinos que tornam poderosos impotentes.


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