25/04/2024 - Edição 540

Poder

Reuniões com religiosos e conservadores marcam agenda de Damares Alves no Ministério de Direitos Humanos

Publicado em 15/11/2019 12:00 -

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Autointitulada como “terrivelmente cristã”, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, se reuniu com dezenas de lideranças religiosas e conservadoras nos dez primeiros meses do governo Jair Bolsonaro, incluindo defensores da “cura gay” e movimentos contra a legalização do aborto. A agenda ideológica abrange eventos internacionais, incluindo encontro com representantes da União Conservadora Americana, responsável por organizar, nos Estados Unidos, a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC). 

O site HuffPost Brasil fez um levantamento dos compromissos da integrante do primeiro escalão do governo Bolsonaro a partir de informações no site do ministério e também obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI), uma vez que os dados disponíveis publicamente estavam incompletos, na contramão da previsão legal de promoção da transparência.

Em outubro, a ministra e pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular foi uma das participantes da primeira versão brasileira da CPAC. Ela iniciou seu discurso, um dos mais aplaudidos, com a frase “estou aqui há 24 horas e ninguém me ofereceu ainda um cigarro de maconha e nenhuma menina introduziu um crucifixo na vagina”. 

Meses antes, em 19 de julho, Damares se reuniu com integrantes da União Conservadora Americana em Washington (EUA). Na mesma viagem, ela se encontrou, dois dias antes, com integrantes da Heritage Foundation, um think tank conservador norte-americano com sede na capital americana. Em 10 de outubro, a pastora recebeu James Roberts, diretor do índice global de liberdade econômica da fundação, dessa vez no Brasil.

Foi também nessa estadia nos Estados Unidos que a ministra participou de reunião, em 15 de julho, na South Florida Bible College, em Miami. O local reúne cursos de carreiras religiosas, como “estudos bíblicos”, “aconselhamento cristão”, “aconselhamento pastoral”, “divindade” e teologia.

A agenda internacional também inclui uma audiência com parlamentares do partido argentino Celeste Provida, em 30 de maio, em Buenos Aires. A legenda se considera a primeira no país cujo objetivo principal é “impulsionar a promoção da defesa da vida humana desde a concepção” e a única que “não permite a seus integrantes se omitir diante de proposta que possam atentar contra a vida”.

Azul celeste era a cor usada pelos manifestantes contrários ao aborto legal na Argentina, em oposição aos lenços verdes, pró-legalização. Em 2018, o Senado argentino votou contra proposta que permitia a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação, mas a campanha pelos direitos reprodutivos continua a pressionar parlamentares neste ano por meio de protestos.

Na visita ao país vizinho, Damares mostrou alinhamento com o partido Celeste. “Este governo defende a vida desde a concepção”, disse no encontro que teve como objetivo firmar parcerias entre os dois países contra a legalização do aborto. “Nós, pró-vida, acreditamos que, no continente, precisamos de estar mais juntos porque entendemos que o aborto não é solução para nenhum problema. Como pró-vida, podemos apresentar sugestões de políticas públicas de planejamento familiar”, completou.

Já em setembro, a ministra brasileira se reuniu, em Budapeste (Hungria), com integrantes de governos de extrema direita, incluindo a ministra da Família, Trabalho e Política Social da Polônia, Bożena Borys-Szop, e a secretária da Família e Assuntos da Juventude da Hungria, Katalin Novák.

Na chamada “Cúpula da Demografia”, Damares anunciou que o Brasil “voltou a ser um país da família” e convocou líderes internacionais a formar uma aliança na ONU (Organização das Nações Unidas) por esses valores. Integrantes de governos do Leste Europeu indicaram que iriam coordenar essa agenda, de acordo com reportagem do UOL.

Na ocasião, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, afirmou que “toda criança tem o direito de ter um pai e uma mãe” e chegou a defender uma mudança na Constituição húngara para “proteger as famílias” e impedir que cortes judiciais tomem decisões “anti-família”.

Lideranças religiosas

Em Brasília, constam na agenda oficial da ex-pastora ao menos 20 compromissos com religiosos de janeiro a outubro, incluindo acompanhar o presidente Jair Bolsonaro em culto em 10 de julho. Fora da agenda, a ministra também acompanhou o ex-deputado em ida ao cinema em 26 de março, para assistir ao filme Superação, o milagre da fé.

Entre os eventos cujas informações não estão detalhadas, está o “encontro com líderes religiosos do Brasil”, em 3 de abril. De acordo com dados obtidos por meio da LAI, a ministra fez uma breve fala “sobre os direitos humanos no Brasil” no Encontro Intercessão pela Nação. Damares também “recebeu oração dos líderes religiosos” na ocasião, em que estavam presentes outros integrantes do primeiro escalão do governo, como Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e André Mendonça (Advocacia-Geral da União), ambos evangélicos.

Já em 8 de abril, a ministra se reuniu com Antônio Carlos, fundador da Comunidade Jesus Menino. Segundo informações obtidas via LAI, na ocasião, foi discutida a possibilidade de se realizar um convênio entre a referida comunidade católica, que acolhe crianças com necessidades especiais, e a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, parte do Ministério de Direitos Humanos. No dia 18 do mesmo mês, Damares participou de reunião sobre atividades da Igreja Videira do Brasil. 

Dois meses depois, em 18 de junho, o bispo Edir Macedo, proprietário do Grupo Record, era um dos 12 participantes de uma reunião com lideranças religiosas em que Damares debateu com eles “acerca de obras sociais e interiorização de imigrantes venezuelanos no Brasil”, segundo informações obtidas via LAI.

Em 6 de setembro, o bispo foi recebido pelo presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Cinco dias antes, Edir Macedo abençoou o ex-deputado, de formação católica, na frente de quase 10 mil fiéis no Templo de Salomão, sede da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo.

As reuniões da ministra de Direitos Humanos também incluem parlamentares da bancada evangélica, por vezes, acompanhados de lideranças religiosas. Foi o caso, por exemplo, da reunião com o senador Luiz Carlos do Carmo (MDB-GO), em 14 de maio, junto com o irmão do parlamentar, Eurípedes do Carmo, presidente da Assembleia de Deus em Goiás. De acordo com a agenda da ministra, o tema foi um convite para o Seminário da Família da Assembleia de Deus de Goiás. Segundo a assessoria de imprensa do senador, o seminário tratava de violência doméstica contra mulheres.

Antes do convite para integrar o governo, Damares era assessora, desde 2015, do então senador Magno Malta (PR-ES), um dos maiores apoiadores de Bolsonaro, que negou ser responsável pela indicação dela.

O presidente da Frente Parlamentar Evangélica, nome oficial da “bancada da Bíblia”, deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), foi recebido ao menos três vezes no ministério neste ano, segundo a agenda oficial. De acordo com ele, o diálogo com a ex-pastora é constante, e a expectativa é de que em 2020 haja um avanço de “matérias de direitos humanos, família, vida, idosos, crianças e adolescentes”.

Questionado sobre restrições ao aborto legal — hoje permitido em casos de estupro, risco de vida da mulher e feto anencéfalo —, Câmara acredita que haverá um “aperfeiçoamento da lei natural do comportamento de direita e conservador que tem no governo”, mas não detalhou que tipo de medida pode vir.

De acordo com o deputado, há uma intenção de avançar com a criminalização da lgbtfobia ainda em 2019. “Temos um acordo com o [presidente da Câmara], Rodrigo Maia, de neste ano ainda reunir todas proposições e fazer um substitutivo que acomode todos interesses nessa matéria”, afirmou ao HuffPost. Ainda não há consenso sobre como será o texto. “Um acordo hoje sobre homofobia passa por pelo menos 30 proposições diferentes, inclusive de oposição”, completou Câmara.

A equiparação da lgbtfobia ao crime de racismo, decidida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em junho provocou uma reação de setores conservadores no Congresso. Deputados como Marco Feliciano (Podemos-SP) e Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) defendem que a punição para esse tipo de discriminação seja por meio de um agravante nos casos de homicídio e lesão corporal, o que excluiria situações de injúria (ofensa), por exemplo.

A prioridade dada por Rodrigo Maia e pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, à agenda econômica, centrada das reformas previdenciária, tributária e administrativa, por sua vez, fez que a agenda de costumes perdesse espaço nesta legislatura.

Cura gay e agenda pró-vida

Além da ala religiosa, Damares dedicou seu tempo a organizações ligadas a pautas conservadoras em geral. Em 26 de abril, recebeu Adriano Vieira, presidente do do Movimento Endireita Fortaleza. O grupo se define como suprapartidário e defensor da “conservação e a permanência de valores familiares, cristãos e da reconstrução cultural”, além de listar como referências Jair Bolsonaro, o ministro da Justiça, Sergio Moro e o escritor Olavo de Carvalho.

Em 5 de agosto, foi a vez de representantes do então recém-criado Movimento dos Ex-Gays do Brasil, incluindo sua fundadora, a pastora da igreja Manancial Palavra Viva, Miriam Fróes. Em entrevistas à imprensa, à época, Fróes disse que foi procurar no ministério um reconhecimento do grupo e que havia um receio de que suas atividades pudessem ser enquadradas na decisão do STF de criminalizar a lgbtfobia. O tribunal, contudo, excluiu manifestações religiosas desse tipo de punição.

Na mesma reunião também estava presente a psicóloga Rozangela Alves, defensora da terapia de reversão sexual, popularmente conhecida como “cura gay”. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) proíbe esse tipo de prática desde 1999. Nove anos antes, em 1990, a OMS (Organização Mundial de Saúde) deixou de classificar a homossexualidade como patologia e a retirou da Classificação Internacional de Doenças.  Na ocasião, o ministério negou que esse assunto tenha sido discutido no encontro.

Já a agenda pró-vida de Damares inclui compromissos fora de Brasília. Em 2 de maio, ela participou da abertura do Congresso Internacional em Defesa à Vida e Família, em Aracaju (SE), evento que contou também com a presença da secretária da Família, Angela Gandra, já conhecida em eventos promovidos, no Congresso, por parlamentares contrários à legalização do aborto, antes de assumir o cargo no Executivo.

Um dos temas discutidos em Aracaju foi uma ação em tramitação no STF que pede a descriminalização do aborto no caso de mães infectadas pelo Zika vírus. O caso seria julgado pelo plenário da corte naquele mês, mas foi retirado de pauta pelo presidente, ministro Dias Toffoli.

No mesmo mês, em 6 de maio, a ex-pastora participou de sessão solene em comemoração aos 12 anos do Comitê Goiano em Defesa da Vida, em Goiânia (GO). Também em maio, a ministra falou contra a interrupção da gravidez em casos de mães infectadas pelo Zika, em evento da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família na Câmara dos Deputados. “Estamos vivendo uma nova nação, um novo momento. Deus está levantando um exército no Brasil”, disse. 

A ex-pastora afirmou que essa posição do governo brasileiro foi apresentada à ONU. Em 2016, a organização pediu que os países atingidos pelo Zika vírus permitissem o acesso de mulheres à contracepção e ao aborto seguro.

Além das questões ligadas a direitos reprodutivos, fazem parte da nova posição brasileira em fóruns internos e internacionais o veto à palavra “gênero” e o destaque à promoção da família. Diplomatas receberam instruções oficiais do comando do Itamaraty para reiterar o entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino.

A decisão vai ao encontro do posicionamento do presidente Jair Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo sobre questões relacionadas ao que chamam “ideologia de gênero”. O termo foi cunhado por católicos e não é reconhecido no universo acadêmico. Ele é usado por grupos conservadores que se opõem às discussões sobre diversidade sexual e de identidade de gênero.

Já a teoria de gênero, reconhecida pela academia, aponta que gênero e orientação sexual são construções sociais e, por isso, não podem ser determinadas por fatores biológicos.

As instruções dadas ao Itamaraty levaram a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo) a denunciar o governo brasileiro ao STF, mas ainda não houve resposta.

Na ação, a ABGLT argumenta que a ordem ao Itamaraty é inconstitucional e viola direitos das pessoas LGBT já reconhecidos pela corte. Um dos julgamentos citados pelos advogados da organização é o da ação direta de inconstitucionalidade 4275/DF. Em março de 2018, o Supremo decidiu que, para alterar nome e gênero de registro em documentos, não é necessário autorização judicial, laudo médico ou mudança de sexo.

Na decisão, a maioria dos ministros invocou o princípio da dignidade humana para assegurar o direito à adequação das informações de identificação civil à identidade autopercebida pelas pessoas trans, valorizando a definição de gênero como uma construção social.

O que diz o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos

Questionado pela reportagem sobre o objetivo dessa agenda religiosa e conservadora na elaboração de políticas públicas, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, afirmou, em nota, que a ministra Damares Alves “tem buscado um intenso diálogo com membros da sociedade civil e de outros governos em busca de parcerias e investimentos, tanto na defesa de direitos, quanto em atividades que exijam maior envolvimento de trabalho voluntário”. Todas as agendas citadas, portanto, foram pautadas na defesa do interesse público e em atividades inerentes às competências da pasta, diz o texto.

De acordo com o ministério, o encontro na South Bible College, instituição educacional administrada por entidade religiosa em Miami, “foi realizado com o intuito de promover conversas com brasileiros residentes na região e que não tinham, necessariamente, qualquer ligação com entidades ligadas a igrejas”. 

O ministério também negou que haja incompatibilidade entre a atuação da ministra e o princípio da laicidade do Estado democrático brasileiro. “Apesar de laico, o Estado não é laicista. Ou seja, não há qualquer comando constitucional ou legal que proíba agendas com entidades religiosas, especialmente quando estas tiverem interesse em apoiar ou conhecer as atividades desenvolvidas pela administração pública federal”, diz a nota. O Ministério da Mulher destaca ainda que historicamente as igrejas realizam atividades sociais e, portanto, buscar uma atuação conjunta com o governo é “estratégico”.

Minorias em perigo

Pesquisadoras ouvidas pela reportagem apontam Damares como uma das responsáveis pela aliança entre católicos e evangélicos que resultou no fortalecimento do discurso contra a chamada “ideologia de gênero”. A retórica ligada à moralidade e contra o “kit gay”, do presidente Jair Bolsonaro, quando ainda era deputado, por sua vez, é tida como fator de aproximação entre ele e parlamentares da bancada evangélica.

A atuação do Executivo é vista como parte do fenômeno de uma ascensão neoconservadora em diversos espaços de poder tanto no Brasil como no mundo. Além das bandeiras ligadas à moral, esse avanço tem se refletido em um fortalecimento institucional de organizações religiosas iniciado antes de Bolsonaro assumir o Palácio do Planalto, por meio de ações como concessões de rádio e TV ligadas a grupos católicos e evangélicos e de recursos do governo para comunidades terapêuticas ligadas a esses setores.

Como parte de sua Política Nacional de Drogas, com o ministro Osmar Terra (Cidadania) à frente, o governo federal decidiu destinar R$ 153,7 milhões para 496 comunidades terapêuticas para dependentes químicos, contratadas sem licitação, em março de 2019. Em 2018, o governo de Michel Temer anunciou a liberação de R$ 90 milhões para o mesmo tipo de iniciativa. Na época, 412 dessas instituições foram selecionadas para receber as verbas.

As comunidades terapêuticas acolhem, de forma voluntária, dependentes de substâncias psicoativas. Elas representam uma alternativa ao tratamento nos Caps (Centros de Atenção Psicossocial), onde há uma equipe com psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde. Há cerca de 2 mil comunidades, de acordo com levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Desse total, 82% estão vinculadas a igrejas e organizações religiosas, segundo o estudo. 

O fortalecimento da bancada evangélica

Pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), a socióloga Christina Vital aponta que as principais conquistas de religiosos na esfera pública nos últimos anos têm ocorrido por medidas como essas, de fortalecimento de instituições católicas ou evangélicas, muito mais do que em temas ligados a direitos humanos, pelo Legislativo.

“Nessas pautas morais apresentadas por esses legisladores cristãos, evangélicos e católicos, o sucesso é pequeno. Nas pautas ocultas, eles têm sucesso. Ocultas da maior parte da população, que não está observando mais diretamente a atuação deles. Quando a gente olha minuciosamente, vê esses sucessos situados, que fortalecem institucionalidades, do que sucessos legislativos”, afirma.

A professora destaca que o Executivo tem poder de estabelecer normas por um trâmite mais ágil que o Congresso. Ela lembra que o Estatuto da Família, por exemplo, não chegou a ser aprovado.

“Até aqui, os evangélicos e católicos tiveram mais sucesso em torno de pautar a agenda pública, de envolver a mídia e a sociedade em certos debates, de levar uma outra narrativa do que aquela que vinha conduzindo as políticas públicas naquele período. Tiveram mais sucesso em pautar a agenda do que um sucesso legislativo. Há uma lacuna entre os que eles efetivamente conseguem e o que eles anunciam como elemento do poder desse coletivo”, destaca.

A professora Maria das Dores Campos Machado, da UFRJ, chama atenção para um deslocamento nessa influência em 2019. Um dos principais nomes conservadores no Legislativo, o deputado Marco Feliciano (Podemos-SP) é um dos mais próximos do presidente Jair Bolsonaro. ”É uma ocupação de espaços para ganhar maior projeção ou interferência no próprio poder Executivo e não no Legislativo propriamente dito”, diz.

Machado também destaca o avanço da presença de religiosos em diferentes organizações profissionais, como a Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos). “Você tem um movimento muito grande nos últimos anos de uma certa ascensão econômica e política desses grupos. É um conjunto de interesses não só morais, de ideias e valores. São interesses que se conjugam, por exemplo, o Edir Macedo se tornou um grande empresário e têm um conglomerado midiático que disputa com a Globo e com o SBT. São interesses que se articulam e são usados por esses setores para ganhar reconhecimento na sociedade”, afirma.

Proprietário do Grupo Record, o bispo Edir Macedo, era um dos 12 integrantes de uma reunião com lideranças religiosa com a ministra Damares em 18 de junho. Entre janeiro e outubro, constam na agenda da ex-pastora ao menos 22 compromissos com religiosos, de acordo com levantamento feito pelo HuffPost Brasil.

A disseminação do termo ‘ideologia de gênero’ 

De acordo com a professora da UFRJ, Damares foi uma das responsáveis pela aliança com os grupos católicos que propiciou uma apropriação pelos evangélicos do discurso da ideologia de gênero. O termo não é reconhecido no universo acadêmico e é usado por grupos conservadores que se opõem às discussões sobre diversidade sexual e de identidade de gênero. Já a teoria de gênero, reconhecida por estudos acadêmicos, entende que gênero e orientação sexual são construções sociais e, por isso, não podem ser determinadas por fatores biológicos.

Machado destaca o momento de tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional como determinante na difusão dessa expressão que, apesar da origem católica, ganhou força pela forma de atuação dos evangélicos. “Eles conseguem mobilizar os sujeitos para essas campanhas, para sair no meio da rua, para ir a assembleias legislativas, para as votações”, afirma.

Dessa forma, o discurso sobre gênero possibilitou que os evangélicos “fugissem daquela grande acusação de homofobia”, segundo a pesquisadora. “O debate sobre ideologia de gênero torna mais difícil aquela reprimenda. Se tornam mais difíceis de ser combatidos e ao mesmo tempo não estão falando da homossexualidade. Estão falando de gênero. É algo que tirou eles da posição incômoda que estavam, acusados de discurso de ódio”, completa.

Desmonte de políticas públicas

Parte do setor evangélico também apoiou governos petistas, mas na avaliação de Machado, houve um descontentamento desses grupos com políticas como Programa Nacional de Combate à Homofobia e o Plano Nacional de Direitos Humanos, somada a decisões do Judiciário, como o casamento entre pessoas do mesmo gênero, vistas como um “ativismo judicial”.

Em paralelo, ocorre uma aproximação desses setores com Bolsonaro. “Esses processos no campo da orientação sexual geraram um grande descontentamento no grupo evangélico, que foi se deslocando da base política do PT e se aproximando de Jair Bolsonaro. Os evangélicos constituíam o baixo clero no Congresso Nacional, assim como Bolsonaro. Ele teve um papel importante principalmente na questão do kit gay, com um discurso muito acirrado, muito agressivo, ele assumiu também o embate com os movimentos LGBT e isso, de certa forma, foi criando uma ponte extra entre os evangélicos e Bolsonaro”, afirma a professora da UFRJ.

É uma mulher que está à frente do desmonte das políticas de gênero. É muito simbólico. É uma mulher falando de questões de mulheres e de questões de igrejas, lésbicas e tudo mais. Maria das Dores Campos Machado, da UFRJ

O “kit gay” é, na verdade, o material Escola sem Homofobia, elaborado pelo Ministério da Educação no governo de Dilma Rousseff e composto por três vídeos e um guia de orientação aos professores como forma de reconhecer a diversidade sexual entre os jovens e alertar sobre o preconceito.

À frente o Executivo, atores desse neoconservadorismo têm promovido um desmonte das políticas públicas ligadas a minorias, na avaliação de especialistas. Desde o início do ano, o ministério de Damares tem promovido um enfraquecimento de colegiados ligados a direitos humanos, dentre outras medidas.  

Combate ao racismo

Christina Vital, pesquisadora da UFF, chama atenção para uma mudança de agenda que estabelece como prioridade o combate ao suicídio, por exemplo, e deixa de lado pautas como o enfrentamento ao racismo, em um país em que 75% das vítimas dos 180 homicídio diários são negras. “A gente viu sumir da pauta do Ministério dos Direitos Humanos o combate à morte da juventude negra. A gente acompanhou sistematicamente a agenda da ministra e, nos primeiros seis meses, essa pauta tinha sido suspensa”, afirma. 

Evidentemente que a agenda da mutilação e do suicídio é importante no Brasil e no mundo, mas ela não pode assumir um centralidade quando a gente tem uma questão da juventude, dos moradores de periferia, dos negros no Brasil, que é absolutamente gritante.Christina Vital, da UFF

A pesquisadora destaca que, uma das características do pensamento neoconservador é a afirmação da identidade a partir de uma perspectiva universal que deixa de valorizar essas diferenças. “É como se a afirmação da identidade cristã se desse a despeito da identificação e do reconhecimento dessa diversidade do cristão negro, do cristão LGBT porque também existem pessoas que professam essa fé e são gays, lésbicas, transexuais”, afirma.

Para Vital, da perspectiva religiosa, essa visão pode fazer sentido, mas é incompatível com o processo de elaboração de políticas públicas. “Do ponto de vista da legalidade, a laicidade está sendo mantida. O que a gente tem que discutir é que o viés religioso não pode servir ao vilipêndio público e à precarização de grupos já precarizados por diferentes arranjos sociais. Não podem ser precarizados negros, mulheres, grupos outros vulneráveis, como LGBTs. Políticas públicas devem atender às demandas desses grupos e não reforçar o vilipêndio a partir de valores religiosos que venham a produzir e acentuar desigualdades”, afirma.

No entendimento de Machado, da UFRJ, a atuação do governo Bolsonaro se diferencia das gestões petistas porque as ações direitos humanos implementadas anteriormente não eram pautadas na exclusão. “Em nenhum momento feministas ou LGBTs estavam fazendo políticas que fossem excluir os religiosos. Tem um caráter diferenciador. A política que Damares e Bolsonaro estão implementando é muito baseada na exclusão e na intolerância com relação à diferença. Isso é um perigo muito grande. A Damares fala muito em guerra contra a ideologia de gênero. É um discurso de pouco diálogo com a diferença e de imposição de uma moralidade”, afirma a pesquisadora.

Agenda internacional

Em um alinhamento com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, Damares Alves também tem atuado como protagonista da agenda conservadora no âmbito internacional, inclusive na ONU (Organização das Nações Unidas). “O Brasil sempre teve posição muito respeitada na discussão internacional e estão colocando o Brasil numa posição muito ruim porque está se alinhando com países extremamente autoritários”, critica Maria das Dores Campos Machado.

Diplomatas receberam instruções oficiais do comando do Itamaraty para reiterar o entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino. Na Cúpula da Demografia, em Budapeste, Damares anunciou que o Brasil “voltou a ser um país da família” e convocou líderes internacionais a formar uma aliança por esses valores. 

A agenda ideológica da ministra inclui encontros com representantes da União Conservadora Americana, responsável por organizar, nos Estados Unidos, a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), e a participação na primeira versão brasileira do evento, em outubro, a convite do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente.

A professora da UFF lembra que Damares já atuava nessas redes conservadoras antes de chegar ao poder, mas que agora há uma “integração e visibilidade” desses movimento e que esse grupo passa a ter um capital político e social. “Até décadas atrás ser conservador não era algo público, não se falava sobre isso. Era aquela noção de que a direita era silenciosa e a esquerda era estridente”, lembra Vital.

Sobre a agenda da ministra, ao HuffPost Brasil, o ministério negou que haja incompatibilidade entre a atuação de Damares e o princípio da laicidade do Estado democrático brasileiro. “Apesar de laico, o Estado não é laicista. Ou seja, não há qualquer comando constitucional ou legal que proíba agendas com entidades religiosas, especialmente quando estas tiverem interesse em apoiar ou conhecer as atividades desenvolvidas pela administração pública federal”, diz a nota. O Ministério da Mulher destaca ainda que historicamente as igrejas realizam atividades sociais e, portanto, buscar uma atuação conjunta com o governo é “estratégico”.


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