23/04/2024 - Edição 540

Poder

Supremo abuso de autoridade

Publicado em 15/11/2019 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) apostam que o plenário vai restringir, na próxima semana, o compartilhamento de dados de órgãos de controle para abastecer investigações. A ideia é condicionar o uso de informações da Receita Federal e da Unidade de Inteligência Financeira (UIF), o antigo Coaf, à autorização judicial.

Nos bastidores, ministros da Corte costuram uma saída para não anular as investigações já em curso. A alternativa seria exigir decisão judicial para compartilhamentos futuros e, em relação às apurações atuais, permitir que sejam validadas se passarem pelo crivo de um juiz.

O julgamento está marcado para o dia 20. Estará em análise a liminar concedida em julho pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que paralisou investigações baseadas em dados compartilhados por órgãos de controle sem autorização prévia do Poder Judiciário. O ministro determinou que os órgãos de controle só poderiam compartilhar dados gerais, como a titularidade de contas e montantes globais movimentados, e não dados bancários detalhados.

A decisão foi tomada a pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro. A liminar interrompeu o andamento de um processo conduzido pelo Ministério Público do Rio que investiga se Flávio recorreu à chamada “rachadinha”, como é conhecida a devolução de parte dos salários dos funcionários do seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Integrantes do Ministério Público alegam que a determinação de Dias Toffoli atrapalha as investigações de lavagem de dinheiro em andamento no país.

Debate “em tese”

Embora o caso atinja o filho do presidente da República, um dos ministros consultados pelo jornal O Globo afirma que o assunto será debatido em plenário “em tese” — ou seja, sem levar em consideração um processo específico.

“É admissível que um membro do Ministério Público peça os dados bancários de alguém ao Coaf ou à Receita, sem qualquer motivação ou limitação? A Constituição Federal exige que medidas invasivas dessa natureza (como, por exemplo, a busca e apreensão em domicílio) sejam previamente autorizadas por um juiz, que fixa os seus parâmetros”, disse o ministro.

Outros dois ministros ouvidos em caráter reservado confirmam essa tendência para o julgamento da próxima semana. Se essa tese prevalecer, há membros da Corte interessados em fazer a “modulação” do resultado: a decisão judicial para o compartilhamento de dados só passaria a ser obrigatória em casos futuros. Nas investigações já iniciadas, bastaria a confirmação de um juiz.

Nessa hipótese, o processo de Flávio Bolsonaro poderia voltar a tramitar, desde que um juiz desse o aval ao compartilhamento de informações sigilosas.

Se a modulação não for aprovada — o que é menos provável —, serão vedadas as quebras de sigilo sem autorização judicial para o futuro e anuladas todas as apurações iniciadas sem esse requisito, considerando inválidas as provas obtidas.

Caso o STF restrinja o compartilhamento de informações, estará contrariando a orientação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — que, em decisões recentes, autorizou o antigo Coaf a repassar informações bancárias a autoridades com poderes de investigação, mesmo sem uma decisão judicial prévia autorizando a quebra do sigilo dos dados.

A lei que criou o Coaf determina que o órgão encaminhe dados de movimentações financeiras suspeitas a autoridades, sem necessidade de quebra judicial do sigilo. Portanto, em tese, não é ilegal o Ministério Público do Rio de Janeiro ter acesso aos dados financeiros de Flávio Bolsonaro. O MP argumenta que não houve quebra de sigilo sem decisão judicial.

Em 2016, o STJ determinou que a obtenção e o uso, para instruir investigação criminal, de dados contidos em relatório do Coaf dependem de autorização judicial. Contudo, o mesmo STJ mudou o entendimento no ano seguinte. No julgamento de outro processo, a Corte não viu ilegalidade em um pedido de informações ao Coaf feito diretamente pelo Ministério Público. O STJ também já estabeleceu que a Polícia Federal pode usar dados do Coaf em investigações, sem a necessidade de autorização judicial.

Na lei que criou o Coaf, de 1998, há uma lista de instituições que são obrigadas legalmente a enviar informações ao órgão sobre operações financeiras e transações de alto valor. Na lista estão bancos, joalherias, seguradoras, imobiliárias e administradoras financeiras. Essas informações são recebidas em um sistema eletrônico. Depois, o Coaf analisa os dados para verificar se há indícios de irregularidade na transação.

Análise

Sob pressão, uma ala do Supremo Tribunal Federal discute a adoção de uma fórmula intermediária no julgamento da liminar que travou processos fornidos com dados do antigo Coaf.

Sentindo que prevalecerá no plenário da Corte o entendimento segundo o qual movimentações bancárias suspeitas só podem ser compartilhadas depois de uma decisão judicial, o grupo tenta limitar a aplicação da regra às investigações futuras.

Nessa hipótese, seria destravado o processo aberto no Ministério Público do Rio de Janeiro contra Flávio Bolsonaro. Graças a uma decisão liminar de Dias Toffoli, presidente do Supremo, a investigação contra o Zero Um está no freezer desde julho.

O Planalto celebrou informação obtida nos bastidores do Supremo de que Toffoli já disporia de maioria para manter a trava no Coaf. Os informantes de Jair Bolsonaro não contavam com a atuação da banda do Supremo que tenta colocar água no chope do primogênito do clã Bolsonaro.

Dois caminhos

Só há dois caminhos possíveis na vida. Ou você é parte da solução ou é parte do problema. Ao requisitar ao Banco Central, em 25 de outubro, dados bancários e fiscais sigilosos de 600 mil pessoas e empresas, Toffoli revela uma disposição incontida de manter o Supremo Tribunal Federal no rol dos problemas. Sob a presidência de Toffoli, o absurdo vai adquirindo na Suprema Corte uma doce, uma persuasiva, uma admirável naturalidade.

Há quatro meses, quando impôs a trava que congelou as investigações relacionadas a Flávio Bolsonaro, Toffoli tentou passar a impressão de que não assinava uma liminar em pleno período de férias do Judiciário apenas para proteger o filho do presidente da República. Suspendeu, então, todos os processos municiados com dados detalhados do antigo Coaf. Alegou que agia "em defesa de toda a sociedade", não do primeiro-filho.

Toffoli sustenta que movimentações bancárias suspeitas só podem ser compartilhadas depois de uma decisão judicial. Com isso, transforma o velho Coaf numa espécie de arquivo morto, que só pode ser manuseado pelas togas muito vivas do Supremo. Toffoli colocou-se num posto de observação privilegiado. Pode olhar com lupa dados que proibiu procuradores e promotores de usar. Apalpa inclusive informações sobre políticos e autoridades. Vale atrasar o relógio para verificar como tudo começou.

Na origem da encrenca, está um processo que nasceu há 16 anos, em 2003. Nele, os sócios de um posto de gasolina contestaram a legalidade do compartilhamento de seus dados fiscais, repassados pela Receita ao Ministério Público. O processo chegou na mesa de Toffoli no ano passado. Em abril de 2018, o julgamento foi marcado para 21 de março de 2019. Sem pressa, Toffoli adiou a encrenca para 21 de novembro.

De repente, os advogados de Flávio Bolsonaro engancharam nesse processo o pedido de trancamento das investigações contra o Zero Um. Desde então, coisas estranhas acontecem no Supremo. Não é que a Justiça seja cega. Ela é caolha, só enxerga a metade que interessa. Nesse ritmo, Toffoli vai acabar transformando a Supremacia do Supremo num poder extremamente seletivo.

Assim fica-se combinado

Então fica combinado assim: Toffoli pediu e obteve cópias de todos os relatórios de inteligência financeira (RIFs) produzidos pelo antigo Coaf (hoje UIF) nos últimos três anos. Mas não os leu.

Pediu para quê? Isso não ficou claro até agora. Talvez tenha pedido à falta do que fazer. Ou pedido para testar se sua autoridade seria desafiada – e ela não foi. Quem se arriscaria a cair em desgraça junto ao ministro mais supremo do Supremo?

Bem, com certeza estão em algum arquivo do gabinete de Toffoli informações sigilosas que envolvem cerca de 600 mil pessoas (412,5 mil físicas e 186,2 mil jurídicas), muitas delas expostas politicamente e com prerrogativa de função. E ele não as consultou!

Toffoli havia alegado que precisava entender o procedimento de elaboração e tramitação dos relatórios. Se fosse apenas isso, bastaria que um técnico lhe passasse um e-mail contando o que ele queria saber por curiosidade ou extrema necessidade.

Imagine que não fosse o presidente do Supremo que tivesse pedido o que Toffoli pediu, recebeu, mas não acessou. Resistiu à tentação, digamos assim. Imagine que fosse o presidente da República, ou da Câmara dos Deputados, ou do Senado…

A gritaria estaria grande. Já se falaria em impeachment. Que direito teria qualquer um deles de conhecer a vida contábil de tanta gente? E assim sem mais nem menos? Por muito pouco, quem hackeou conversas entre procuradores está preso.

Qualquer cidadão no gozo dos seus direitos pode protocolar no Senado um pedido de impeachment de Toffoli. Dará em nada. Como deram em nada até hoje dezenas de pedidos contra outros ministros. Todos foram arquivados. Mas… Nunca se sabe.

Onde fica o direito ao sigilo das pessoas? Nem o ministro mais supremo do Supremo pode violá-lo a qualquer pretexto ou sem nenhum.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *