19/03/2024 - Edição 540

Poder

Cúpula dos Brics expôs falta de coesão do bloco e indiferença com crise da região

Publicado em 15/11/2019 12:00 -

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Os Brics, o bloco formado pelas principais economias emergentes, definha no mesmo passo da desaceleração econômica e da disparidade entre os interesses de seus cinco membros. As conclusões da cúpula que reuniu em Brasília por dois dias o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, o chinês Xi Jinping, o russo Vladimir Putin, o sul-africano Cyril Ramaphosa e o indiano Narendra Modi mostram a falta de coesão de um grupo nascido sob sua força econômica na época, há dez anos, de modo que o mundo não ocidental tivesse poder nos organismos multilaterais de acordo com seu peso real.

À perda de impulso do bloco nos últimos tempos, soma-se o seu anfitrião. Bolsonaro, que se afastou da tradicional diplomacia multilateral brasileira para selar uma aliança nacional-populista com Donald Trump, não mostrou interesse em transformar essa cúpula em uma plataforma de liderança regional. Discrepâncias sobre a Venezuela e, se ela deve ser representada ou por quem, resultou na não convocação da cúpula de líderes regionais que geralmente acompanha as reuniões do Brics. Esse governo brasileiro prefere as relações bilaterais, como o presidente Bolsonaro deixou claro no dia anterior, quando ele cortejou abertamente a China e queria distingui-la do resto dos emergentes. Para o bolsonarismo, os Brics são da época do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seu grande antagonista.

Bolsonaro recebeu na capital brasileira outros quatro homens com quem ele compartilha sua posição, gênero e idade. Todos sexagenários. O brasileiro definiu a primeira grande cúpula internacional que está organizando como uma espécie de "encontro de velhos amigos". Juntos, eles governam países que representam um terço da economia mundial e cerca de 40% da população. Mas em poucas questões relevantes, eles concordam ou têm aspirações comuns. Além dos apelos genéricos para fortalecer a cooperação comercial entre os Brics e defender o multilateralismo, os discursos dos líderes refletiram as urgências de cada um deles.

A declaração final não incluiu nenhuma referência à crise que tem agitado o continente americano. Os negociadores preferiram evitar assuntos em que as divergências são maiores que as convergências. Não houve nenhuma palavra sobre Venezuela, cujo regime, de Nicolás Maduro, é apoiado por China e Rússia, enquanto o Brasil quer vê-lo substituído por Juan Guaidó. Tampouco mencionam a incerta situação na Bolívia, ainda que Putin tenha se somado a Bolsonaro no reconhecimento da nova presidenta interina, nem aparecem Chile ou diretamente a questão ambiental da Amazônia.

O documento menciona, por outro lado, os conflitos na Síria e no Afeganistão, a crise humanitária no Sudão, a guerra no Iêmen e a ameaça nuclear da Coreia do Norte. Os negociadores brasileiros explicaram que obedeceram porque esses são “conflitos de envergadura global”, ignorando as consequências regionais e globais, por exemplo, do êxodo venezuelano com seus quatro milhões de refugiados espalhados por grande parte do planeta. A situação na embaixada da Venezuela em Brasília, invadida na véspera por militantes aliados a Guaidó, voltou ao normal na noite de quarta-feira, quando eles deixaram o prédio após um incidente que pegou o governo de surpresa.

Na capital brasileira, Xi criticou o crescente protecionismo que está levando à desaceleração da economia mundial. O mandatário se referia à batalha que trava com os Estados Unidos e na qual Bolsonaro também não quer se posicionar. “Eu não estou envolvido nessa guerra comercial. O Brasil negocia com todos”, disse ele na quarta-feira. Mas no próximo ano, quando ocorrerá um novo encontro do G5, ele deve se posicionar.

Putin se referiu repetidamente à necessidade de a economia decolar "para melhorar a qualidade de vida de nossas sociedades", talvez ansioso pelas imagens que chegam do Chile, onde o descontentamento com a desigualdade resultou em um surto inesperado de protestos violentos. Apenas o primeiro-ministro Narendra Modi conclamou os seus parceiros a se envolverem plenamente com os Brics e, em um discurso que mais parecia um líder de negócios, os incentivou a estabelecer "metas mais ambiciosas, identificar prioridades" e definir prazos e objetivos a serem cumpridos.

A falta de consenso também fez com que os países do Brics não incluíssem na declaração qualquer menção à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês). Aliado do governo de Israel, o Brasil de Bolsonaro vetou iniciativas no sentido de ampliar o apoio a essa agência, ainda que defenda sua existência.

Sob a perspectiva brasileira, ao menos outros três pontos foram destacados na declaração de Brasília: 1. A defesa da soberania e o compromisso do desenvolvimento sustentável – é uma referência indireta às críticas sobre as crises ambientais que o Brasil enfrenta como a das queimadas na Amazônia ou a do derramamento de óleo na costa nordestina; 2. A aplicação adequada da ciência e tecnologia na agricultura, com o objetivo de evitar falsas barreiras sanitárias apenas para garantir mercados; 3. A crítica às medidas protecionistas e um pedido que se “evitem medidas unilaterais e protecionistas, que são contrárias ao espírito e às regras da OMC”.

Tímidos acordos

De um lado, os discursos: o presidente Jair Bolsonaro falou em aumentar as vendas de produtos brasileiros para a China, o maior parceiro comercial do Brasil enquanto o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que negocia um acordo de livre comércio com o gigante asiático. De outro, os resultados concretos: a exportação de produtos brasileiros para os chineses caiu 9,9% neste ano em comparação com o ano passado e a importação manteve-se quase estável, com crescimento de 0,73%. Em meio a esses dois mundos, e na esteira da Cúpula dos BRICS em Brasília, as duas nações firmaram um tímido acordo comercial que nem sequer foi detalhado nos discursos oficiais.

O pacto foi dos nove atos assinados nesta quarta-feira entre o presidente Bolsonaro e seu homológo Xi Jinping em reunião bilateral. Do conjunto, apenas dois tratam diretamente de investimentos financeiros. Um detalha como será a exportação da pera chinesa para o Brasil. E outro aborda como os produtores brasileiros exportarão melão para a China. Os demais tratam de transferência de pessoas condenadas e memorandos de entendimento, que são um pacote de intenções que o Governo pretende ver concretizado.

“Não há nada substancial nesses acordos comerciais. O Brasil assinou um acordo apenas para não sair com as mãos vazias”, afirmou o deputado Daniel Almeida (PCdoB-BA), presidente do grupo parlamentar Brasil-China e opositor de Bolsonaro. Um assunto que nos últimos três anos sumiu da pauta de discussões entre os dois paíse —e não foi retomado dessa vez— é a ferrovia que os chineses anunciaram que financiariam entre o Brasil e o Peru, como uma rota de acesso ao Oceano Pacífico.

Acordo de livre comércio visto com ceticismo

Enquanto Bolsonaro assinava os documentos com o colega chinês, Paulo Guedes dizia em uma palestra que os dois governos tratavam da área de livre comércio. “Estamos conversando sobre a possibilidade de criarmos o free trade área também com a China, ao mesmo tempo em que falamos de entrar na OCDE”. A fala ocorreu no seminário do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS.

O ministro se mostrou empolgado com a possibilidade, ainda que, em um primeiro momento, o mercado brasileiro seja inundado de produtos industrializados ou manufaturados chineses e que o Brasil se mantenha como fornecedor de commodities. Os dados do Ministério da Economia mostram que 72% (ou 3,7 bilhões de dólares) dos produtos brasileiros exportados para a China são compostos por soja, minérios e petróleo. Enquanto que os principais itens importados são manufaturados, aparelhos transmissores e maquinários, são 32% do que é importado, ou 10,2 bilhões de dólares.

“Não me incomodo se, em uma situação de superávit com a China, nós nos equilibrarmos ali à frente, aumentando as exportações em 50% e as importações dobrando ou mesmo triplicando. O que nós queremos é mais integração”, afirmou Paulo Guedes.

Internamente, no Ministério da Economia, a hipótese de área de livre comércio com os chineses é vista com ceticismo. “É uma conversa que ainda está em estágio inicial. Não tem nada certo, ainda. Tudo muito longe de qualquer conclusão”, afirmou uma fonte que participa dos diálogos com os chineses.

O opositor Almeida criticou um eventual acordo. “As economias do Brasil e da China são complementares, mas há uma assimetria muito grande. O nível tecnológico da China está muito a frente. Falar em livre comércio entre desiguais no deixa preocupados”, avaliou.

Durante o encerramento do fórum empresarial, Xi Jinping afirmou que 30% do crescimento da economia internacional se deve ao seu país e reforçou que pretende atuar cada vez mais em uma economia aberta. “Queremos abrir a nossa economia, aumentar as nossas exportações e importações”. Ainda convidou os países a se inserirem no megaprojeto de investimento em infraestrutura global batizado de “Um cinturão, uma rota”, por meio do qual a china investe em pontes, portos e ferrovias em dezenas de países. Até o momento, o Brasil não apresentou projetos para serem financiados por essa nova rota da seda.

Tanto Xi quanto o presidente da Rússia, Vladimir Putin, criticaram o protecionismo comercial que tem dominado boa parte das conversas na área internacional —protecionismo que aumentou durante o governo do norte-americano Donald Trump e deu início a uma guerra comercial entre Estados Unidos e China.


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