25/04/2024 - Edição 540

Poder

Câmara tem de cassar Eduardo para enviar um recado a Bolsonaro

Publicado em 08/11/2019 12:00 -

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Sim, a Câmara dos Deputados tem de cassar o mandato de Eduardo Bolsonaro porque:

1: ele quebrou o decoro parlamentar. A previsão está na Constituição, e o detalhamento está no Código de Ética e Decoro Parlamentar;

2: para mandar um recado a Jair Bolsonaro. É preciso dizer a ele: "Esta Casa não tem medo de seus arreganhos autoritários".

Não há nenhuma razão objetiva, de resto, para inferir que o jogo de radicalização estrelado pelos irmãos Carlos e Eduardo não seja combinado com o pai.

Dados os respectivos conteúdos, especular sobre um novo AI-5 é muito mais grave do que proibir a compra, por órgão federal, de um jornal em particular — a Folha — ou de ameaçar seus anunciantes privados, como fez Bolsonaro.

É mais grave porque, viesse o tal ato, a perseguição à imprensa independente seria ainda pior e mais ampla. Ocorre que, além do conteúdo, é preciso ver a estatura do cargo.

Eduardo é deputado. Em tese, ao menos, a sua interferência no governo, como líder do partido do PSL na Câmara, se dá na esfera da pressão político-partidária.

Já o pai é presidente da República e demonstra, mais uma vez, que pode usar o cargo para, na sua intenção original ao menos, punir desafetos, adversários, oponentes e, não poderia ser diferente, a imprensa livre.

Notem: Eduardo fez uma especulação, que agrediu, sim, um valor constitucional e o Código de Ética da Casa. Jair foi além: ele agiu. E pôs a força do seu cargo para tentar pressionar anunciantes.

Ora, a perseguição sistemática à imprensa livre é um dos elementos do AI-5 sonhado por Eduardo, não é mesmo?

Custa muito a um presidente que atua com esse desassombro tirânico fazer uma dobradinha com os porras-loucas da família para intimidar as instituições — a começar do próprio Congresso?

Da mesma sorte, não acredito na inocência — nem nas desculpas — do presidente no episódio doas leões machos que se acariciam depois de vencer as hienas. E, entre elas, está o Supremo.

Trata-se de uma escolha.

Fica-se com a impressão de que a família decidiu atacar para se defender. A reportagem levada ao ar pelo Jorna Nacional é mera desculpa. Como resta claro, Bolsonaro já sabia que seu nome havia aparecido na investigação do caso Marielle.

A virulência da reação, no entanto, pode apontar para outros temores, ainda desconhecidos do distinto público.

A Câmara dos Deputados tem de cassar o mandato de Eduardo porque a quebra do decoro é evidente, escancarada, arreganhada. Mas também tem de fazê-lo para mandar um recado ao Palácio do Planalto: "Não ouse ir além das suas sandálias".

É mentira! Os Bolsonaros não temem um "chilaço" no Brasil — até porque não há o menor indício de que algo parecido possa acontecer.

Tudo indica que a escalda da radicalização busca criar uma bolha para proteger a família daquilo que a deputada Joice Hassemann (PSL-SP), que é um deles, chamou de "o que fizeram no Verão passado".

Não se trata apenas de pôr limites a Eduardo e a Carlos. É preciso pôr limites em Jair. Os limites da Constituição.

Uma das formas eloquentes de fazê-lo é cassando Eduardo, sim! Até porque ele quebrou o decoro. A punição terá um caráter didático.

‘Não apertei gatilho, não toquei fogo, não matei ninguém’

Eduardo Bolsonaro foi criticado por parlamentares de oposição durante a sessão da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara por conta de suas declarações sobre o AI-5. O filho do presidente Jair Bolsonaro decidiu responder as críticas feitas pela deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), que afirmou que seu comportamento defendendo o AI-5 lhe causava constrangimento.

“O senhor nos constrange com esse comportamento. Eu não vou pedir a sua renúncia da Presidência dessa comissão porque eu penso que tem um Conselho de Ética para apurar a vossa postura. Mas, por esse constrangimento, acho que isso mereceria, minimamente, um pedido de desculpas também a essa comissão. Portanto, deputado, para sentar nesta cadeira é preciso honrá-la. Por aqui passaram muitas personalidades da política brasileira e o que está acontecendo hoje, vendo vosso pronunciamento, vossa postura, eu me sinto constrangida com sua presença”, disse Perpétua.

Eduardo voltou a afirmar que não propôs a volta do AI-5 e acabou fazendo um desabafo: “Em última análise, como estamos em campos políticos distintos, seria estranho se pessoas do Partido Comunista Brasileiro (sic) estivessem me aplaudindo. O que se tenta fazer é criar uma narrativa colocando palavras em minha boca. Eu acho que todo mundo viu o vídeo. Deu para ver perfeitamente que não existe qualquer perigo ou hipótese de retorno de AI-5. E na continuidade da minha fala, eu falo de alguma medida enérgica, alguma coisa nesse sentido. O que a gente não pode é ter aqui parlamentares que defendam tocar fogo em prédio, tocar fogo em metrô. Isso que eu estou querendo evitar. Ou será que alguém aqui é a favor que nós tragamos o terror que está acontecendo no Chile para cá? Apenas isso”, disse.

O deputado também insistiu no direito de ter sua liberdade de expressão preservada: “Enfim, é o papel de vossas excelências, liberdade de expressão, assim como eu também estou no meu. E é difícil acreditar que parlamentares que defendem a liberdade de expressão falem que a liberdade vai até tal ponto. Depois, não pode mais. A imunidade parlamentar existe exatamente para abrigar esse tipo de coisa. Não apertei gatilho, não toquei fogo, eu não matei ninguém. Eu não fiz nada disso. Eu parlei. Somos parlamentares”, afirmou.

Eduardo ainda citou que a Constituição foi emendada em 2001 justamente para garantir que “quaisquer” opiniões, palavras e votos seriam garantidas aos parlamentares. “Vou lembrar aqui um fato curioso que apenas os mais antigos vão lembrar. Constituição, Artigo 53: os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. O quaisquer foi inserido através de uma emenda constitucional em 2001. Porque, antes, o texto era o seguinte: os deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente por suas opiniões, palavras e votos. Para que não existisse qualquer tipo de confusão ou celeuma, a emenda constitucional colocou a palavra quaisquer no texto. Mas, ainda assim, a gente vê aqui pessoas com problemas com as falas dos outros”, disse.

É falso que Carta permita a deputado falar qualquer coisa

É falaciosa a conversa de que a Constituição permite a um parlamentar falar qualquer coisa. Não é assim tão difícil de demonstrar.

A Câmara dos Deputados tem uma tarefa pela frente: responder à agressão de Eduardo Bolsonaro. E a resposta caberá, num primeiro momento, ao Conselho de Ética. Também o Supremo foi acionado por parlamentares de oposição por intermédio de uma notícia-crime. Eduardo é acusado de incitação ao crime e de fazer a apologia de ato criminoso, Artigos, respectivamente, 286 e 287 do Código Penal. Por que mesmo? Ele acenou com a possibilidade de uma volta do AI-5 caso, na sua imaginação delirante, as esquerdas promovam protestos violentos.

No último dia 5, deputados do PT, PCdoB e PSOL protocolaram no Conselho de Ética um pedido de cassação contra Eduardo Bolsonaro. Além da fala sobre o AI-5, os deputados também pediram punição pelo discurso que o deputado fez semana passada no plenário, em que, falando sobre os protestos no Chile, disse que, se a esquerda radicalizar, "a história vai repetir", em referência à ditadura brasileira. No pedido, os deputados argumentam que não se pode confundir imunidade parlamentar com a impunidade do parlamentar para falar o que quer ou cometer crimes.

A notícia-crime já está com Dias Toffoli, presidente do STF. Pode ser enviada a Augusto Aras para que se posicione. O doutor não deve ver crime nenhum na fala, amparando-se no Artigo 53 da Constituição, segundo o qual "os deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos." Caso se defina um relator antes, este acionará a PGR. É pouco provável que um ministro da corte ordenasse o prosseguimento do processo na contramão do procurador-geral.

Aqui cabe um esclarecimento. Há dois entendimentos na Corte sobre a extensão do Artigo 53. Para alguns ministros, ele encerra um valor absoluto. Nessa perspectiva, uma parlamentar poderia dizer qualquer coisa. Se resolver subir à tribuna para defender, sei lá, terrorismo, tortura ou pedofilia, tudo certo! Seria tão aceitável, dado o tudo possível, como se dizer a favor da democracia, dos direitos humanos e da justiça. Obviamente, não é o meu entendimento.

A imunidade existe para garantir a liberdade do parlamentar dentro de uma faixa restrita: o ordenamento legal brasileiro. Mas então não se poderia defender a mudança de leis e da própria Carta? Ora, é claro que sim! Existem mecanismos também para isso. Estou entre aqueles que entendem que o Artigo 53 não pode servir como instrumento para a prática de crimes. E, por óbvio, pregar um golpe de estado ou fazer a apologia dele constituem, a meu ver, crimes. Logo, acho procedente a ação penal, mas duvido que prospere.

O mais provável é que o tribunal delegue a questão, na prática, para a própria Câmara, que dispõe de um Conselho de Ética com a atribuição de avaliar a quebra do decoro e recomendar a cassação de mandato, o que requer a concordância de pelo menos 257 deputados, em votação secreta.

Permanece, claro, o debate sobre a extensão do Artigo 53, mas observem que o dito-cujo define que os parlamentares são invioláveis "civil e penalmente". A punição por quebra do decoro não diz respeito à área cível ou penal. Estamos falando de coisa de outra natureza. Mais: a Constituição, combinada com o Regimento Interno da Câmara, abre caminho claro e objetivo para cassar um mandato por aquilo que o parlamentar disser. Querem ver?

O Inciso II do Artigo 55 define que "perderá o mandato o deputado ou senador cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar". A definição do decoro foge da pura subjetividade. As práticas que caracterizam a sua quebra estão definidas do Artigo 4º e 5º do Código de Ética. A primeira delas, que é o Inciso I do Artigo 4º, está assim especificada: "Constitui procedimento incompatível com o decoro parlamentar, punível com a perda do mandato, abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional".

Atenção: esse Inciso I do Parágrafo 4º do Código de Ética repete o que está escrito no Parágrafo 1º do Artigo 55 da Constituição, a saber: "§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas".

Logo, parece inaceitável a leitura de que o Artigo 53 dá ao parlamentar a licença para dizer qualquer coisa. Tanto não dá que fica claro que o "abuso das prerrogativas" é incompatível com o decoro.

Pergunta-se agora: um deputado que defende um golpe na Constituição está ou não abusando da prerrogativa que lhe garante a própria Constituição? A pergunta chega a ser tola de tão óbvia.

Garantido amplo direito de defesa, o Conselho de Ética pode simplesmente arquivar a denúncia ou propor uma de quatro medidas, segundo dispõe o Artigo 10:

I – censura, verbal ou escrita;
II – suspensão de prerrogativas regimentais;
III – suspensão temporária do exercício do mandato;
IV – perda do mandato.

É difícil algo assim prosperar, admita-se, porque se teme que tenha início uma guerra para usar a cassação como instrumento de luta política. Ocorre que, desta feita, Eduardo Bolsonaro foi longe demais. Merece, sim, a cassação, mas, por óbvio, não é um troço corriqueiro.

Ajudo os deputados do Conselho de Ética e, quem sabe?, o plenário a tomar uma decisão: depois de defender um golpe de Estado, qual será o passo seguinte de um membro do clã Bolsonaro? Os senhores parlamentares vão decidir, na verdade, se há um limite na saga para depredar as instituições. Vocês estarão também mandando uma mensagem a Bolsonaro: ou a Câmara fica com a Constituição ou entra na fila da guilhotina. Vai ser o que?

Sergio Moro já deu o caso por encerrado.

Moro não manda na Câmara.

Bolsonaro ambiciona democracia sem imprensa

A aversão de Jair Bolsonaro à imprensa que o imprensa revela que o capitão, embora seja beneficiário direto da democracia, não assimilou após 28 anos de mandato parlamentar e dez meses de exercício da Presidência os rudimentos da noção de cidadania. Decorridas mais de três décadas do fim de uma ditadura que se dizia proclamada em nome de ideais democráticos, Bolsonaro ainda supõe que a sociedade brasileira está disposta a aceitar uma democracia de fachada. Outros tiveram a mesma ilusão. Deram-se mal.

Na semana em que o filho Zero Três contaminou a atmosfera com a ideia tóxica de um "novo AI-5", Bolsonaro editou o primeiro ato institucional da nova era. Ordenou a todas as repartições públicas federais que cancelem assinaturas do jornal Folha de S.Paulo. Fez isso macaqueando seu amado Donald Trump, que anunciara dias antes o corte das subscrições do New York Times e do Washington Post. O mito tropical esboçou o seu AI-2. Ameaçou cassar a concessão que mantém no ar a TV Globo.

Ironicamente, Folha e Grupo Globo sustentam em suas linhas editorias ideias congruentes com as que o ministro Paulo Guedes (Economia) tenta colocar em prática. Coisas como responsabilidade fiscal, privatizações, eliminação de privilégios, enxugamento da estrutura do Estado, desburocratização, integração do Brasil à economia mundial… Mas o que preocupa Bolsonaro é a sua agenda paralela: controlar a caixa registradora do PSL, blindar o Zero Um, sedar o faz-tudo Fabrício Queiroz e seus vínculos milicianos, virar do avesso o depoimento do porteiro, livrar o Zero Dois na CPI das Fake News, servir filé mignon para o Zero Três…

A despeito da energia que desperdiça fabricando as crises internas que prejudicam o seu próprio governo, Bolsonaro ainda encontra tempo para desmantelar o aparato ambiental, caluniar ONGs, desmoralizar cientistas, fustigar instituições com a fábula do leão e das hienas, criticar artistas, sufocar organizações culturais e intimidar a imprensa —sobretudo o pedaço da imprensa que veicula em voz alta, com franqueza e lealdade à opinião pública, as coisas que os próprios ministros e aliados de Bolsonaro comentam às suas costas.

Para o capitão, a Folha desceu "às profundezas do esgoto" e a Rede Globo dedica-se à patifaria. O penúltimo presidente que expressou sentimentos semelhantes foi Lula. Tachava a Folha de "preconceituosa". Em 2010, retirou-se bruscamente de uma mesa de almoço no jornal. Alegou estar ofendido com um par de perguntas do então diretor de redação Otavio Frias Filho sobre sua política fisiológica de alianças e sobre o fato de ostentar desprezo pelo estudo mesmo depois de se tornar um líder nacional.

Quanto à emissora, Lula disse há nove dias, numa das inúmeras entrevistas que concedeu na cadeia: "Um dos desejos que eu tenho é fazer um ato público na frente da TV Globo. Passar um dia inteiro falando e mostrando as mentiras contadas a meu respeito".

Bolsonaro e Lula sustentam que a imprensa está desmoralizada e perde relevância. O morubixaba do PT diz isso desde a cadeia. Corrupto de terceira instância, aguarda por uma manobra do Supremo que anule suas sentenças. O capitão já foi informado por pesquisas de diferentes institutos de que não é incondicional nem inesgotável a boa vontade da plateia. Às voltas com uma popularidade declinante, o inquilino do Planalto torce para que o Supremo não desative os escudos que inibem investigações sobre os subterrâneos da família.

A imprensa tem muitos defeitos. Mas arrosta a antipatia de gente como Bolsonaro e Lula por conta de uma virtude: cumpre a missão jornalística de adequar as aparências à realidade e não adaptar a realidade às aparências, como prefeririam os imperadores da política. O papel da imprensa não é o de apoiar ou de se opor a governos. Sua tarefa é a de levar à plateia tudo o que tenha interesse público. Só não entende isso quem não dispõe de discernimento intelectual para conviver com o livre curso de informações e ideias.

Jair Bolsonaro, por exemplo, não aceita senão o apoio irrestrito e a capitulação. Por isso sonha com uma democracia de fachada, sem imprensa independente. Há pessoas cuja obra só será devidamente entendida daqui a um século. Bolsonaro só poderia ser perfeitamente entendido no século passado.


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