19/03/2024 - Edição 540

Especial

Padrões tóxicos

Publicado em 04/11/2019 12:00 -

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Homem de verdade não chora. Não expressa emoção. Não deixa transparecer fragilidade. Desde menino, ele se veste, fala e até se senta como homem. Esses rótulos que dizem respeito a um modo padrão de ser “masculino” nunca fizeram muito sentido para Vinícius Rodrigues da Silva. Estudante de 19 anos do curso técnico de Controle Ambiental no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) campus Nilópolis, ele sempre estranhou essa visão “tradicional” de ser homem. Porém, afastar-se da “masculinidade esperada” não foi para ele um percurso simples — ao contrário, “ser diferente” por vezes ainda se revela uma experiência dolorosa. Gay, negro, morador de Queimados, município da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, ele enfrenta dificuldades para ser respeitado em sua individualidade. “Performar uma masculinidade fora dos padrões, sobretudo para homens negros, não é algo confortável a se fazer, mas também não é algo impossível. Acredito que devemos tentar e aos poucos lutar contra esse quadro”, afirma.

Vinícius sempre gostou de ler. Sobre a mesa de estudos, entre escritos de química e matemática, misturam-se livros de bell hooks [pseudônimo da feminista Gloria Jean Watkins, grafado assim em minúscula], Abdias do Nascimento e um romance de quase mil páginas, “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, que narra a trajetória de uma africana escravizada no Brasil. “De vez em quando ouso estudar algo além”, comenta. Um dos temas que despertam seu interesse é o dos padrões impostos pela sociedade em torno da masculinidade. “Em uma cultura patriarcal, onde os meninos são educados para se tornarem homens que não choram, que não sentem, que não amam, ser homem, segundo hooks, é evitar ‘qualquer preocupação com o amor’”, escreveu em um texto publicado em abril de 2019, quando participou de uma roda de discussão sobre “Masculinidade e seus dilemas” no campus do IFRJ em Nilópolis (RJ). “Devemos ocupar esses espaços para a propagação de uma nova masculinidade, que seja humanizadora e não violenta”, defende.

Os passos dados por Vinícius questionam uma masculinidade que limita os modos de ser homem, impõe comportamentos e pode adoecer homens e mulheres. “É preciso que o homem seja forte, provedor, ativo e, sobretudo, esteja distante emocionalmente de si e de outras pessoas”, reflete o estudante. Não há lugar para os sentimentos nessa figura masculina padrão. Forçados a se portarem como seres infalíveis, que não demonstram fraquezas, os homens são na verdade vulneráveis a altas taxas de homicídio e acidentes, motivados por comportamentos de risco, agressividade e uma cultura da violência. Suicídios ocorrem quase quatro vezes mais entre homens do que entre mulheres, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Os homens também têm maior probabilidade de morrerem antes dos 70 anos na maior parte dos países do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Dietas e estilos de vida pouco saudáveis, consumo excessivo de tabaco e álcool e a baixa procura pelos serviços de saúde, pois “homem de verdade não se cuida”, são alguns dos fatores agravantes dessa vulnerabilidade masculina e que estão, segundo artigo de Carissa Ettiene (25/2/19), diretora da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), ligados a normas predominantes de masculinidade.

Em janeiro de 2019, um vídeo publicitário da marca Gillete mostrava, em situações cotidianas, como alguns comportamentos masculinos baseados no sexismo e no machismo podem prejudicar os próprios homens, desde garotos. A campanha ajudou a difundir a ideia de “masculinidade tóxica”, que se refere a uma visão restrita sobre o que significa ser homem, com impactos negativos nas relações e na saúde das pessoas — e também conclamava os homens a expressarem uma “versão melhor” de si mesmos. Mas como a masculinidade pode ser tóxica? Que padrões sobre o modo de ser homem podem prejudicar e até mesmo adoecer homens e mulheres? Pressões para prover o sustento e vencer na vida, falas e gestos endurecidos, o silêncio sobre os sentimentos, a heterossexualidade compulsória e a sexualidade restrita podem sufocar os homens e afastá-los de uma vida mais feliz e com mais qualidade e saúde.

Uma pesquisa realizada com mais de 40 mil brasileiros, em 2019, pelo Instituto Papo de Homem, com apoio da ONU Mulheres, revelou que seis em cada 10 homens não foram ensinados a expressar emoções; sete em cada 10 brasileiros do sexo masculino afirmam que aprenderam, durante a infância e a adolescência, a não demonstrarem fragilidade; e apenas dois em cada 10 homens tiveram exemplos práticos e boas conversas sobre como lidar com suas emoções e expressá-las de maneira saudável. A maioria também não cultiva o hábito de conversar com os amigos sobre medos, dúvidas e frustações, revela o estudo. “Os homens falam muito, mas pouco sobre o que habita dentro deles e o que realmente sentem”, aponta a pesquisa, que também produziu o documentário “O silêncio dos homens” sobre iniciativas voltadas para debater masculinidades (no plural).

Construir “o que é ser homem”, para Vinícius, é um percurso que envolve “inúmeros ritos de violência e demarcação”. “Em uma sociedade patriarcal, há uma masculinidade esperada. Isso fica claro em comerciais de TV, novelas, programas televisivos e igrejas”, pontua. Para ele, as masculinidades aceitáveis são aquelas que remetem à proatividade, agressividade, desamor, falta de compaixão — e à “desumanidade”. Desde a infância até a adolescência, ele afirma que coleciona episódios de repressão no ambiente escolar, por expressar sua orientação sexual e ser um “garoto diferente” do padrão imposto. “Homens que não se encontram dentro dos padrões (cis, héteros, brancos, ocidentais) enfrentam algumas dificuldades em sua trajetória. A escola é um lugar cruel para aqueles que não performam uma masculinidade esperada”, considera.

As expectativas em torno da masculinidade produzem episódios de machismo, homofobia e violência. Um dos fatos marcantes para Vinícius ocorreu em uma data emblemática. Foi em 2017, quando participava de um ensaio fotográfico para o 2º Dia da Visibilidade LGBT+ do IFRJ e segurava uma bandeira do arco-íris. “Um funcionário da instituição sussurrou algo do tipo: ‘Todas as cores são de deus’, em tom de repressão. Levei o caso para meus superiores, mas a instituição não tomou nenhuma medida”, relembra. Em 2018, ele se tornou monitor do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual do colégio para tentar “impedir que novos alunos passem por isso”, conta.

O estudante não esmorece o sonho de “imaginar um novo amanhã”, como gosta de dizer. Amante dos livros de bell hooks, o rapaz defende a construção do que a autora chama de “masculinidades feministas”, em que “os homens aprendem o ato e a arte de amar” para transformar a si mesmos. “Na construção de um novo imaginário social, é preciso que os homens repensem seus papeis”, aponta. “A condição para este novo modelo, portanto, é o amor”, escreveu Vinícius em um de seus textos.
Porém, o que fazer para vencer os estigmas e os rótulos que aprisionam a figura do homem na armadura de “sexo forte”, “infalível” e “competitivo”? Radis ouviu histórias e reflexões para entender não apenas como as expectativas em torno da masculinidade podem gerar efeitos negativos sobre a saúde, mas para compreender a busca por expressões de masculinidades mais saudáveis e igualitárias.

“Para ser um homem normal”

“Par ou ímpar?”. Os garotos se reúnem para o futebol. Um a um, os mais habilidosos com a bola são escolhidos pelos líderes dos times, entre risos e caçoadas; até que, por último, resta apenas um garoto, aquele que não é desejado por nenhuma das equipes, pois seria um “peso morto”. Quem já esteve nessa posição desconfortável na adolescência ou na infância? Os sofrimentos adquiridos na socialização dos garotos em um modelo de masculinidade padrão podem ser lembrados durante toda a vida, como destaca Alan Bronz, psicólogo clínico especialista em terapia de família e casal. Ele conta que um dia também já foi o “patinho feio” do time, aquele que sempre era rejeitado no futebol: “Era para mim uma experiência absolutamente pavorosa na hora de formar os times. Todos meus amigos homens adoravam o esporte. E eu me perguntava: será que tem alguma coisa errada comigo, pois sou o único homem que não gosta de futebol?”, relata.

Depois de adulto, Alan estudou o tema da masculinidade e trabalhou, entre 1999 e 2016, com grupos reflexivos de gênero voltados para homens que cometeram agressões no espaço familiar e doméstico. Os encontros eram promovidos pelo Instituto Noos, no Rio de Janeiro, com homens em sua maioria encaminhados pela Justiça depois de serem condenados por violência de gênero. O psicólogo aponta que existe um modelo pré-determinado de homem que todos devem seguir para se sentirem “normais”. “O homem padrão tem que ser um cara que vai enfrentar os problemas e as pressões da vida com uma altivez quase sobre-humana e em nenhum momento pode expressar qualquer tipo de sofrimento. Não pode em hipótese alguma demonstrar fragilidade, confusão, insegurança ou não saber o que fazer”, avalia. Outra expectativa imposta é “não levar desaforo para casa” — “homem que é homem sabe defender sua honra”. “Ele também tem que ser heterossexual e reafirmar isso o tempo todo diante dos outros, daí os comportamentos sexistas”, pontua.

Vestir a armadura de “sexo forte” pode ser angustiante e ter reflexos na saúde mental dos homens. “Não seguir esse modelo é frustrante e o homem pode ser marginalizado por isso, gerando um processo muito desgastante”, analisa. Segundo Alan, as pressões que a sociedade impõe sobre o que “se espera de um homem” iniciam-se desde a infância, com a divisão sexista das brincadeiras. “O garoto cai no chão e vem a mãe e diz: ‘Homem não chora’. Por que meninos têm que vestir azul e meninas, rosa?”, indaga. O psicólogo reforça que os papeis que os homens representam dentro da chamada “configuração hegemônica de masculinidade” é algo intrinsecamente ligado à identidade deles — e, por isso, não é simples de mudar. “Muitos homens estão absolutamente satisfeitos com o seu modus operandi na configuração hegemônica de masculinidade. Eles não veem necessidade de mudar nada”, pontua.

Quanto à expressão “masculinidade tóxica”, Alan a encara com certo estranhamento e questiona se essa seria a melhor forma de abordar o problema. Segundo ele, se o objetivo é promover transformações nos padrões relacionais, não é eficaz adotar uma postura acusatória, como percebeu ao longo dos anos com o trabalho de grupos de gênero com homens agressores. “Se você aponta o dedo logo no início para a pessoa, você fecha a possibilidade de diálogo. Como clínico, se eu quiser trabalhar com uma pessoa a sua identidade de gênero, eu não diria de cara para ela que sua masculinidade é tóxica”, comenta. Ainda que o tema tenha ganhado projeção recentemente, esse debate não é novo. Já nos anos 1980, os estudos de gênero da australiana Raewyn Connell criticavam a “masculinidade hegemônica” que impõe uma hierarquia dos homens sobre as mulheres — e já apontavam que existem diferentes modos de “ser homem”.

“No fundo, estamos falando de machismo: de uma sociedade que estabelece a supremacia de uma configuração de gênero e a partir daí cria relações opressoras de poder”, destaca o psicólogo. Para ele, os papeis de gênero são produtos de um esforço coletivo, incluindo homens e mulheres. “Só a gente olhar para o que está ocorrendo no país agora. Há um refluxo do conservadorismo, que entendo como uma reação a essas transformações que aconteceram ao longo dos anos. É um povo que diz que não quer essas mudanças e, nessa onda, estão muitas mulheres também”, reflete. Segundo Alan, mudar padrões abre um campo desconhecido e ameaçador para algumas pessoas, que temem alterações no modo como acostumaram a organizar suas vidas — por isso, ele reforça, é preciso discutir os papéis de gênero desde a infância.

Quando o homem parte para a agressão

Transgredir aquilo que se espera dos papéis de homens e mulheres pode gerar uma resposta violenta no contexto doméstico, aponta Mirian Béccheri, psicóloga judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP). “Posicionamentos da mulher, como esposa ou mãe, que não cumpram com os desempenhos de gênero tradicionalmente esperados podem também implicar em conflitos e violência”, aponta a psicóloga, que estudou o tema da violência contra a mulher em seu doutorado na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Ela conta que, nos espaços judiciários em que já atuou, costuma ouvir explicações que parecem ser extremamente “banais” trazidas pelos autores de agressões contra parceiras ou mesmo feminicídios, como “desobediência”, “descumprimento de regras”, “incompetência na vida doméstica” e “ciúmes” — que dizem respeito ao modo como eles encaram os papéis de gênero. “As justificativas são tão recorrentes que chegam a ser chocantes. O cara que bate se ofende porque não foi obedecido e se acha no direito de bater para colocar a mulher no lugar”, afirma.

Relacionamentos abusivos, segundo Mirian, geralmente estão associados a padrões enrijecidos e machistas de gênero. “Essas relações são comumente descritas como aquelas em que (ainda) não ocorreram violências físicas, mas a violência psicológica, moral e mesmo patrimonial ocorre e traz graves danos emocionais e sociais à pessoa exposta”, explica. Entre os sinais mais comuns, estão o controle excessivo de comportamentos, como senhas de celular, companhias e locais que frequenta, normas rígidas sobre roupas e críticas sobre as habilidades e aparência do outro, além de ameaças e chantagens emocionais, que envolvem possibilidade de abandono ou suicídio. “A pessoa vítima desse tipo de violência muitas vezes está esgotada emocionalmente, podendo desenvolver distúrbios emocionais e mesmo fisiológicos devido ao estresse, tristeza e ansiedade gerados”, conta.

Homens e mulheres precisam, cada qual a seu modo, receber cuidado quando ocorre violência de gênero, como destaca Mirian. “Homens que são abusivos e violentos em relacionamentos afetivos precisam receber suporte para que não reproduzam tal comportamento, seja no relacionamento corrente, seja em outro que venha a estabelecer”, destaca. Ela já atuou com grupos reflexivos voltados para homens denunciados por violência doméstica e descreve a experiência como muito positiva, pois abre espaço para que essas pessoas possam entender que comportamentos violentos geram sofrimentos para todos. Como psicóloga, trabalhou no Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Ministério Público do Espírito Santo (MPES), e como gerente de Proteção à Mulher no estado. Atualmente, atua com o tema em Caraguatatuba, no litoral paulista.

Mirian reforça a importância da legislação protetiva. “Antes da Lei Maria da Penha, essa violência era considerada crime de menor potencial ofensivo, mas hoje há previsão de maior penalidade, além de outras ações que procuram garantir a segurança das mulheres, como medidas protetivas e possibilidade de inclusão do homem em programas de recuperação e reeducação”, ressalta. Já as mulheres vítimas de violência também precisam de suporte especializado. “Quando uma mulher sobrevive a um relacionamento desses, precisa ser cuidada, orientada e fortalecida, para reconhecer que não possui culpa ou responsabilidade pela violência sofrida, que pode ter um relacionamento com respeito, afeto e livre de violência”, completa.

Um dos pioneiros do trabalho de grupos reflexivos de gênero com homens denunciados por agressão, Alan Bronz aponta que a iniciativa ajuda a diminuir os casos de reincidência. “O principal resultado é que os homens participantes adquiriram maior controle sobre sua própria agressividade e conseguem dimensionar o impacto que a violência tem na vida deles”, reforça. Com a proposta de prevenir e interromper o ciclo de violência intrafamiliar e de gênero, o psicólogo conta que a metodologia começou a ser desenvolvida em 1999, a partir de uma pesquisa sobre saúde e masculinidade realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e pelo Núcleo de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para o grupo de psicólogos que então atuavam no Instituto Noos, surgiu o desafio de encarar a questão de gênero como um debate também para homens. “Apesar de sermos psicólogos, a gente nunca tinha parado para responder perguntas como: ‘O que é ser homem?’ Uma pergunta aparentemente básica, mas que homem nenhum se faz”, relembra.

Duas décadas depois, Alan considera que o desafio atual é levar os grupos que discutem gênero e masculinidades para espaços diversos, como escolas, e transformá-los em políticas públicas. “Os grupos reflexivos de gênero devem ser pensados como um recurso não somente para homens em situação de violência de gênero, mas para a população em geral e que possam ser aplicados em diferentes contextos, sobretudo em escolas, e não só com homens, mas com mulheres também”, propõe. Ele avalia que, quando envolvem pessoas encaminhadas pela Justiça, os grupos têm um papel “profilático”, “porque é uma situação de violência que já aconteceu”. “A pessoa chega muito contrariada. Ela vem associando a gente à Justiça, o que não é verdade. O que podemos fazer é tentar evitar reincidência e mudar um padrão de comportamento e interação para que isso não volte a ocorrer no futuro”, reflete.

“Coisa de mulherzinha”

Para ser mais homem, afaste-se dos afetos. Afinal, “isso é coisa de mulherzinha”. Mirian alerta que esse imperativo silencia os sentimentos nos homens e leva a processos de violência e adoecimento. “Nossa cultura machista vai delimitar que quanto mais o homem se afasta do universo feminino, ‘mais homem’ ele será. É uma lógica binária simplista que inibe o homem de usufruir ou desenvolver potenciais sensíveis e práticos que nossa sociedade estimulou nas mulheres”, explica a psicóloga. De acordo com essa visão, tudo que remete ao feminino é considerado ruim e pode “comprometer” a masculinidade.

Segundo Mirian, na socialização das mulheres, é valorizado o cuidado consigo e com o outro de modo afetivo, que inclui a identificação e a expressão de sentimentos e o reconhecimento do próprio organismo como vulnerável — enquanto o homem permanece apenas com a tarefa de “prover” materialmente a família. “Quão benéficas seriam essas características para os homens? Hoje, na área da saúde, homens são comprovadamente os que menos se cuidam em casos de sintomas leves ou moderados de doença e são os que menos buscam por cuidados preventivos”, constata. Um dos aspectos afetados é o exercício da paternidade, como lembra Alan Bronz. “Como nessa divisão de tarefas impingida pela sociedade patriarcal a criação dos filhos fica mais sob a responsabilidade das mulheres, os homens se colocam meio apartados e acompanham o crescimento dos filhos à distância”, analisa. O tema da paternidade e seus reflexos na saúde já foi assunto de Radis (179).

“O machismo fragiliza todo mundo. Coloca o homem mais em risco, faz o homem não se cuidar e o trava na hora de se expressar. Quando ele se permite a isso, ele percebe que tem benefícios e consegue se dar ao direito de exercer e se apropriar de lugares e comportamentos que, pelo machismo, seriam ‘femininos’ e por isso ruins”, afirma Mirian. Ela conta que de início teve certa dificuldade com a expressão “masculinidade tóxica”, pois remetia a estratégias comerciais, mas com o tempo passou a enxergar o impacto positivo da expressão para discutir a fragilização masculina provocada pelo machismo — como conjunto de valores e práticas tradicionalistas, sexistas e misóginos. “A toxicidade da masculinidade, ou seja, o prejuízo que ela traz aos homens, está, por exemplo, no fato de ela tirá-los de espaços de cuidado e autocuidados, de inibi-los de reconhecer e expressar tristezas, sofrimentos, medos, frustrações e dificuldades, de constrangê-los para a busca de suporte médico e psicológico em situações já identificadas como críticas”, pondera.

Segundo Mirian, a masculinidade hegemônica tem um recorte racial, econômico, etário e de orientação sexual: a figura padrão é o homem adulto jovem, branco, financeiramente independente e heterossexual. Estímulo ao comportamento de risco como prova de masculinidade, negação das emoções e supervalorização da honra são alguns aspectos negativos das regras de como “ser homem”. “O machismo traz prejuízos individuais e sociais para a mulher e impacta negativamente também o homem. Esse fato precisa ser falado e compreendido nos mais diversos espaços”, aponta. Para a pesquisadora e psicóloga, a ascensão da mulher nos espaços de trabalho, como chefia ou parte da equipe, é vista por muitos como uma ameaça ao domínio masculino dos espaços de poder — e gera situações de assédio, intolerância e desrespeito que “objetificam a mulher e menosprezam sua competência como trabalhadora”.

As conquistas e os questionamentos trazidos pelo movimento feminista e a inserção das mulheres em espaços públicos, de liderança e de poder abalam a lógica binária da divisão entre os sexos, avalia a psicóloga. “A inserção da mulher no mercado de trabalho, sua autonomia reprodutiva e sexual, seu posicionamento em termos políticos ameaçam a polaridade imaginária e relativamente ‘segura’ que separaria as práticas masculinas daquelas consideradas femininas”, constata. Questões como “e se ela ocupar o meu lugar?” tornam-se “insuportáveis” para alguns homens, de acordo com ela. Mirian acredita que o caminho para enfrentar essas disparidades seja discutir tais padrões de masculinidade, como por meio de grupos com homens, com a proposta de trazer mais bem-estar, autoestima e qualidade de vida para todos — entendendo homens e mulheres como pessoas de direitos. Reconhecer que a masculinidade pode ser tóxica, reforça a psicóloga, não é desculpa para retirar a responsabilidade daqueles que cometem agressão. É sim uma saída para entender que o machismo não faz bem para ninguém.

ocê é menino ou menina?” Aos 7 anos de idade, essa é uma pergunta que nunca havia passado pela cabeça de Diogo Sousa Silva. Mas foi o que lhe indagou um grupo de crianças na escola, assim que ele se mudou de São Paulo para Macaúbas, cidade do interior da Bahia. Depois do susto e da resposta de que era um garoto, vieram as chacotas — “Sem reconhecerem em mim o menino que previam”, escreveu. O questionamento inusitado jogou o garoto negro, de classe média baixa, em uma realidade para a qual não havia se dado conta: ele não era o que imaginava ser. “E assim, entre a performance não brutalizada, a construção da sexualidade, a negritude afirmada e a origem humilde, fui costurando formas diversas e me construindo o homem que sou”, conta à Radis. A história de Diogo é marcada, como ele narra, por machismo, LGBTQIA+fobia e racismo, e mostra que há muitas expressões possíveis de masculinidade.

O garoto que foi estudar em Macaúbas é atualmente psicólogo sanitarista e membro co-fundador da Articulação Nacional de Psicólogas/os LGBT (ANPLGBT). Ele defendeu o mestrado em Saúde Coletiva na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2017, sobre as demandas de saúde dos homens trans em Salvador, com o título “Existe uma barreira que faz com que as pessoas trans não cheguem lá”. Superar barreiras é algo que constituiu a identidade de Diogo desde criança — sobretudo em relação aos preconceitos. “Homens trans, gays, bissexuais, intersexuais e assexuais têm produzido novos modos de compreender e vivenciar as masculinidades, ainda que a repetição e manutenção de estereótipos operem produzindo situações de conflito entre os pares e demais grupos”, ressalta. Para ele, o padrão (homem branco cisgênero heterossexual, cristão, reprodutor, classe média alta e urbano) tem sido contestado por sujeitos que exercitam outra forma de ser homem. “Os homens dissidentes da norma têm formulado outros caminhos para a construção de uma masculinidade possível”, afirma.

Porém, ainda há um longo percurso até o respeito e a transformação das relações. O pesquisador considera que tem sido útil falar de “masculinidade tóxica” para popularizar o debate de como os homens constroem suas vivências de modo nocivo; o termo “tóxico”, para ele, é de fácil compreensão. “A masculinidade baseada na violência, no individualismo e na ausência de autorreflexão emocional torna a vida comunitária incompatível. Ela se torna um canal de produção de violência, como se fosse a única estratégia de tornar legítima a existência do homem”, explica. Ele ainda destaca que não se pode perder de vista que “a masculinidade constitui um impositivo de poder”, pois “opera de modo normativo, binário e hierárquico” a partir de marcadores como racismo, LGBTQI+fobia, classe, geração e território. “Nenhuma relação que se baseie na dominação do outro pode conferir a possibilidade de cuidado entre os envolvidos. Ao contrário, desponta tensões e conflitos”, reforça.

Os reflexos da masculinidade padrão são sentidos de diferentes maneiras pelos grupos sociais, afirma Diogo — no caso dos homens negros, “entre a violência sofrida e a violência perpetrada”, eles são vistos como “os culpados ideais para os linchamentos produzidos em função dos estereótipos”. “A morte torna-se seu único destino. Não à toa, o encarceramento em massa e as mortes por causas externas acometem, principalmente, homens negros”, aponta. Tais discriminações em relação a alguns grupos de homens também são sentidas nos serviços de saúde. Se a prevenção em si já não é comum quando se fala em saúde do homem, como ressalta o pesquisador, para alguns grupos as portas nem sempre estão abertas. “Homens trans, gays e bi ainda são pouco absorvidos pelos serviços e enfrentam discursos moralizantes e discriminatórios por parte dos profissionais”, constata. Ele acrescenta que existe grande fragilidade na oferta de cuidado à população encarcerada e em situação de rua — em sua maioria, homens negros.

Na pesquisa sobre saúde dos homens trans em Salvador, Diogo percebeu a presença de uma “lógica transfóbica” em profissionais que se negavam a atender essas pessoas e, ao mesmo tempo, buscavam realizar a “conversão da identidade de gênero” por meio de discursos religiosos. “Quando se apresentavam com performance de gênero masculina baseada na cisheterossexualidade, profissionais do serviço criavam situações de constrangimento, chamando colegas para atestarem se acreditavam serem homens ou mulheres, ou mesmo dizendo que virou moda ser uma pessoa trans. Dessa forma, os serviços de saúde expulsam os homens trans da possibilidade de construção integral de cuidado”, conclui. Para o psicólogo, a saúde coletiva tem o papel de conduzir novos olhares sobre cuidados para homens e em relação aos impactos das masculinidades.

Debater masculinidades é, para Diogo, “a única possibilidade de entender os homens em suas complexidades”. Contudo, para ele, esse ainda não é um debate acessível. “A oferta crescente de cursos, grupos de discussão e terapêuticos, workshops e vivências que se propõem a discutir a masculinidade tóxica tem sido anunciada com cifras que impõem barreiras de acesso para uma série de sujeitos, em especial, àqueles que têm inventado formas constantemente atacadas de existir enquanto homem”, relata.

Para Diogo, essa discussão não pode se pautar pela seletividade. Ele também reforça que o modelo de masculinidade produz violências ao longo de séculos. “Sentimentos fundamentais como medo, tristeza, alegria e amor não condizem com o que é esperado dos homens, dificultando a autorreflexão e o cuidado consigo e com as pessoas com quem se relaciona”, pontua. O psicólogo aponta que é preciso ampliar os modelos e ressignificar os modos de ser homem em nossa sociedade, a partir de encontros com comunidades indígenas, quilombolas, terreiros de candomblé, assentamentos e movimentos de periferia. “Traçar horizontes possíveis passa necessariamente pelas construções dos homens negros, trans, gays, bi, pobres, periféricos, rurais e tantos outros que a dominação insiste em não reconhecer”, reflete.

que mais vemos pela sociedade são, de fato, meninos assustados em corpos de adultos”. Assim Fernando Aguiar, psicoterapeuta corporal e membro do Conselho Diretor do grupo “Homens em Conexão”, de Brasília (DF), descreve a necessidade dos próprios homens buscarem saídas para superar as raízes profundas do machismo e do patriarcado — que “estão matando homens, mulheres e todo o planeta”. Para partilhar suas dores, conflitos, medos e dificuldades, o grupo surgiu em junho de 2017 e realiza encontros que buscam promover pontes e diálogos entre homens. Aceitar e reproduzir o machismo não é um caminho. “Acreditamos que todo homem atua de maneira machista, misógina e violenta porque não teve a oportunidade de vivenciar outras possibilidades do que é ser homem”, afirma Fernando. Para ele, os homens estão se violentando, negando sua vulnerabilidade e sentimentos para caber dentro de um rótulo de identidade masculina; essa violência se espalha por todos os lados.

Os encontros envolvem homens de todas as idades, desde jovens até idosos, e de todas as crenças, orientações sexuais, raças e classes sociais. As atividades começaram com um debate que reuniu 40 participantes para conversar sobre o documentário “The mask you live in” (“A máscara em que você vive”, disponível na Netflix), que aborda os efeitos nocivos da masculinidade sobre as pessoas. Desde então, o grupo “Homens em Conexão” promove experiências que vão desde corridas no parque, trilhas e bate papo em bares até imersões para discutir expressões de masculinidade mais saudáveis para todas as pessoas. “Existem homens que sempre se esforçaram tremendamente para se encaixar nos padrões de masculinidade pregados pela cultura, tornando-se aquele cara rígido, que não demonstra medo, fragilidade e sentimento”, pontua. Ao partilhar suas angústias com outros homens, seja num bate papo ou em terapia coletiva, eles entendem que é possível ser homem de diferentes maneiras. “As muralhas de isolamento no qual os homens vivem são as primeiras estruturas a cair”, destaca.

Fernando conta que, ao estimular a amorosidade masculina, a experiência permite que homens que antes tinham dificuldade em pedir ajuda passem a lidar melhor com afetos e relacionamentos. Os relatos trazem histórias diversas: “Pais que não sabiam como se aproximar dos filhos e que descobriram um meio de se reconectar com eles. Homens homoafetivos ou trans que sempre se sentiram excluídos dos meios cis e heterossexuais se sentiram bem recebidos, aceitos e validados enquanto homens. Homens héteros que tinham muitos preconceitos com homens não héteros e que quebram esses preconceitos, reconhecendo no outro um amigo e irmão de caminhada”, descreve.

A oportunidade de fazer confidências entre amigos — sem repetir fórmulas sexistas, homofóbicas e machistas — permite aos participantes partilhar histórias que nunca contaram a ninguém. A experiência é uma busca pelo próprio sentido de humanidade. “Ser homem é ser humano. Não temos uma resposta do que define um homem. Sabemos que essa é uma convicção interna, e que pode mudar”, afirma o psicoterapeuta, um dos sete coordenadores do grupo.

Ele não concorda com a expressão “masculinidade tóxica”, pois, segundo ele, este é um conceito superficial e limitado. “Fica parecendo que o homem tem que deixar de ser homem, porque afinal, sua masculinidade é tóxica. É semelhante culpar o morango ou o tomate pela quantidade de agrotóxico que carregam, quando de fato temos que olhar para os valores que a sociedade cultiva”, critica. Não significa deixar de falar de machismo e patriarcado; ao contrário, para Fernando, é preciso questionar a cultura que promove valores violentos entre os homens, baseados na dominação masculina. “Todo menino e homem vive em constante estado de terror e necessita se defender, pois a família, a escola, os amigos e as instituições sociais vão atacar suas vulnerabilidades. É uma lógica de formação de soldados de guerra, não de seres humanos. O que esperar desse homem, que aprendeu que a violência é a única coisa que o legitima enquanto homem e é a única maneira dele ocupar espaço na sociedade?”, questiona.

No lugar de homens e meninos “assustados” e “aprisionados” em rótulos, é preciso possibilitar o surgimento de “homens livres”, defende Fernando. “Para cumprir os ditames da masculinidade hegemônica, o homem precisa vestir uma armadura. Ele se endurece emocionalmente, psicologicamente, corporalmente e aguenta em silêncio”, ressalta. Para o psicoterapeuta, a afetividade e a conversa — livre de preconceitos — com outros homens são elementos perdidos na educação dos garotos. “Precisamos, primeiro de tudo, reconhecer o tamanho do buraco no qual nos enfiamos nessa tentativa de ser esse estereótipo de homem. A mudança é lenta e gradual, mas totalmente possível”, aponta. A única maneira dos homens enfrentarem o machismo é, para ele, descobrindo outras formas de “ser”. “Esse homem livre não será um soldado, uma máquina de guerra. Passará a consumir menos pornografia, adoecerá menos e consumirá menos remédios”, aposta. Despido das armaduras, é hora de os homens lutarem contra os preconceitos que eles mesmos reproduzem.


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