28/03/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro não deve agir como um ‘monarca presidencial’, diz Celso de Mello

Publicado em 01/11/2019 12:00 -

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O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello afirmou que o vídeo publicado pelo presidente Jair Bolsonaro no Twitter, no qual associa a Corte a uma hiena, evidencia que “o atrevimento presidencial parece não encontrar limites”.

Em nota enviada ao jornal Folha de S. Paulo, o decano do STF diz que o “comportamento revelado no vídeo em questão, além de caracterizar absoluta falta de ‘gravitas’ e de apropriada estatura presidencial, também constitui a expressão odiosa (e profundamente lamentável) de quem desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.

Em outro trecho, Celso de Mello afirma que “é imperioso que o Senhor Presidente da República — que não é um ‘monarca presidencial’, como se o nosso país absurdamente fosse uma selva na qual o Leão imperasse com poderes absolutos e ilimitados — saiba que, em uma sociedade civilizada e de perfil democrático, jamais haverá cidadãos livres sem um Poder Judiciário independente, como o é a Magistratura do Brasil”.

Bolsonaro divulgou um vídeo, posteriormente apagado, em sua conta oficial no Twitter, no qual enumerava uma lista de inimigos de seu governo, e o comparava a um leão em meio a hienas. Entre as hienas destacadas no vídeo estão veículos de comunicação, partidos políticos, como PSL, PT e PSOL, e o STF.

No final do vídeo, o leão acossado pelos inimigos é socorrido pela chegada de um outro leão, identificado como “conservador patriota”. Há, também, um apelo: “Vamos apoiar o nosso presidente até o fim e não atacá-lo. Já tem a oposição pra fazer isso”.

O presidente pediu desculpas ao STF e afirmou ter sido um "erro" a publicação do vídeo. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro isentou o filho Carlos Bolsonaro do tuíte e disse que “publicará uma matéria” pedindo desculpas. "Foi uma injustiça, sim, corrigimos e vamos publicar uma matéria", disse. As desculpas são apenas parte do show.  O vídeo já tinha cumprido sua função. Para ser sincero, o pedido deveria significar uma mudança de comportamento. O que, ao que tudo indica, não será o caso.

Isolado

Antigamente, quando um presidente precário deixava o país, dizia-se que a crise viajava para o exterior. Hoje, Jair Bolsonaro leva junto as redes sociais. E deixa no Brasil o filho Carluxo, que ajuda a manter os perfis eletrônicos do pai abastecidos com uma cota diária de tolices. A postagem do vídeo do leão foi a penúltima asneira que simplifica a guerra do bem contra o mal em que Bolsonaro se imagina metido.

A peça associa a figura do presidente da República à de um leão, cercado por hienas enraivecidas, que seriam os inimigos do rei. No final, há um chamamento dirigido aos "conservadores patriotas". Diz o seguinte: "Vamos apoiar o nosso presidente até o fim, e não atacá-lo. Já tem a oposição pra fazer isso!".

Mal comparando, o apelo aos conservadores para que se mantenham ao lado do presidente é algo muito parecido com uma versão eletrônica do pedido feito por Fernando Collor quando o chão de sua Presidência parecia fugir-lhe dos pés: "Não me deixem só!". Talvez por essa razão o vídeo foi retirado das redes sociais de Bolsonaro. Ou o presidente se arrependeu da postagem ou puxou a orelha de Carluxo.

A simplificação esquemática exposta no vídeo revela que Bolsonaro meteu-se num círculo viciado que apequena sua Presidência. É como se o capitão e seus devotos reconhecessem o risco de isolamento. Para adular o bolsonarismo, adotou-se desde o início do governo um linguajar que afugentou o eleitor antipetista de centro. Com a popularidade em queda, Bolsonaro exacerbou o discurso. Condenou-se a dialogar com um terço do eleitorado que ainda o tolera incondicionalmente.

Bolsonaro não soube aproveitar um fenômeno da eleição. Virou presidente numa campanha em que o voto das pessoas que pensam como ele foi anabolizado pelo pedaço do eleitorado que não suportava a ideia de devolver o PT ao poder. Começou a encolher já no dia da posse. Podendo pregar a união nacional, preferiu atiçar a polarização. Discursando no parlatório do Planalto, disse que "o povo começou a se libertar do socialismo". Não se deu conta de que a União Soviética acabou faz 28 anos.

Além de não unir o país, Bolsonaro passou a guerrear com seu próprio grupo. Afastou auxiliares sensatos, criou problemas para o pedaço do governo que tenta mostrar resultados, colocou fogo no circo do PSL. O vídeo reproduzido e depois retirado das redes sociais convoca os patriotas conservadores a saírem em defesa do presidente a partir de uma premissa falsa: a suposição de que os partidos de oposição, a mídia, o STF, a OAB e outros inimigos imaginários constituem uma forte ameaça. Bobagem. Em matéria de oposição, ninguém consegue superar Bolsonaro. O capitão se opõe a si mesmo com uma maestria que nenhum oposicionista consegue igualar.

Distração

O clã Bolsonaro se esforçou para desviar a atenção das redes sociais nesta semana. Primeiro, o presidente deu declarações birrentas sobre a vitória do oposicionista Alberto Fernandéz na eleição presidencial argentina, comportando-se como um ser imaturo, cujo time – Maurício Macri Futebol Clube – não ganhou o campeonato. Mas a cereja do bolo foi mesmo o “vídeo do leão”.

Isso acontece logo após Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro e amigo de longa data do presidente da República, "reaparecer" através de áudios divulgados pela imprensa. Neles, dá consultoria para um interlocutor conseguir um cargo no Congresso Nacional, diz que o próprio Jair conversou com ele sobre a exoneração de uma funcionária, reclama que teria sido abandonado em meio às denúncias sobre as famosas "movimentações atípicas", afirma que poderia colocar o PSL no eixo se não estivesse enrolado e revela que o Ministério Público do Rio de Janeiro "tá com uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente".

Em meio à repercussão dos áudios, que constrangia Bolsonaro em turnê pela Ásia, o vídeo estúpido foi divulgado, galvanizando a atenção da rede.

Com intervenções como essa, os Bolsonaros alegram uma parte dos seguidores radicais com mais guerra política e jogam fumaça naquilo que é problemático em seu governo, como as denúncias de corrupção e de envolvimento com milícias, que pairam sobre Queiroz e seu filho.

O mesmo "Escritório do Crime" que teria executado o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes tinha laços com o gabinete do então deputado estadual, Flávio, graças a Queiroz. Apesar disso ser notório, a relação permanece pouco investigada, como se ignorássemos um elefante na sala. O ex-assessor é tão amigo do presidente que depositou R$ 24 mil diretamente na conta da primeira-dama. Segundo Jair Bolsonaro, foi a devolução de parte de um empréstimo que ele teria feito ao camarada. Mas não mostrou nenhum comprovante disso.

O clã não tem muita competência para liderar um país. E, pelo visto, tampouco para organizar um show de ilusionismo.

Pois o problema é que, como disse Queiroz, o que está por trás disso tudo é "pica do tamanho de um cometa". Não será um vídeo de leões e hienas, nem uma nova Golden Shower que irá fazer com que o debate público esqueça das travessuras do ex-assessor.


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