25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

A vida de todos os brasileiros vale a pena

Publicado em 06/06/2014 12:00 -

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Emerson Elias Merhy é professor titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tendo sido professor associado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na qual se aposentou em 2003. Também é professor da pós-graduação em Clínica Médica da UFRJ onde coordena a linha de pesquisa de Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde. Em sua passagem por Campo Grande (MS) nesta semana, onde participou de eventos na Fiocruz e no Mestrado Profissional de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Merhy concedeu esta entrevista à Semana On, abordando um tema delicado: a necessidade de inverter a prioridade da saúde, hoje fincada no mercado, e redirecioná-la para a atenção as pessoas.

 

Por Victor Barone

Como o senhor avalia a saúde pública que se pratica hoje no Brasil?

Para responder a esta pergunta, necessariamente é preciso fazer um apanhado comparativo. Sou de uma geração que nos últimos 40 anos – eu tenho 40 anos de formado em Medicina e 38 anos em Saúde Pública – lutou contra a noção de que falar em saúde como um direito no Brasil era uma impossibilidade. Diria que hoje vivemos uma situação de mudança substancial da própria concepção do que é a saúde em uma sociedade historicamente muito marcada pela desigualdade. De certa forma esta desigualdade se refletia também no campo da saúde. Sou de uma época em que dividíamos a população entre aqueles que tinham acesso a algum serviço de saúde – seja por ter dinheiro para pagar um médico particular ou por pertencer a algum sindicato que tivesse algum serviço de saúde – e os indigentes, que na realidade eram a gigantesca maioria da população brasileira. A partir da Constituição de 88, da reforma sanitária, que envolveu sindicalistas, trabalhadores da saúde e movimentos sociais surge uma mudança nessa concepção, uma mudança difícil de ser enfrentada. A partir daí, a saúde passa a ser um direito de todos os brasileiros e estabelece-se, portanto, que a vida de todos os brasileiros vale a pena. É um marco no imaginário social absolutamente revolucionário. Partir de uma sociedade tão desigual para uma Constituição que defenda que a vida de cada brasileiro vale a pena.

É um processo em construção…

Sim. Este processo exige da sociedade brasileira, dos vários atores sociais e grupos organizados, do Estado, dos políticos, dos governantes, dos movimentos sociais uma atitude de construção. Isso não cai do céu. Temos perseguido nestes mais de 26 anos a construção de um sistema que, entendemos, consagra este direito à vida, que é o Sistema Único de Saúde (SUS). Este processo não é perfeito, teve vários problemas no percurso, mas diria que tivemos uma mudança muito substancial.

Foi uma mudança radical de paradigmas.

A ditadura foi embora e o modelo da saúde da ditadura foi junto. Instauramos um novo modelo pós-ditadura no campo da saúde. Na educação a gente não conseguiu isso. Na educação a gente vive até hoje em máquinas burocráticas e institucionais fabricadas pela ditadura. É só você ver as universidades. Poucas recuperaram seus nomes originais ante o massacre que a ditadura fez de chamar todas as universidades vinculadas ao governo federal de “federais”. De certa forma isso é uma marca da ditadura dentro das universidades até hoje. A gente não conseguiu construir um outro marco institucional para a educação, diferente do que fizemos na saúde.

A partir daí, a saúde passa a ser um direito de todos os brasileiros e estabelece-se, portanto, que a vida de todos os brasileiros vale a pena.

O que mudou de fato para o cidadão brasileiro nestes quase 30 anos de SUS?

De novo me remeto a minha origem como sanitarista nos anos 70. Em São Paulo, nesta época, tínhamos uma cidade cuja mortalidade infantil, apesar do “milagre brasileiro”, era da ordem de 100 por mil. De cada mil crianças, cem morriam antes de completar um ano de idade. Hoje você fala em uma mortalidade de 20 para mil e nos causa terror. Tivemos avanços incríveis em indicadores, quadros endêmicos, epidêmicos. Mas, é obvio que vivemos alguns problemas. Saúde é algo que todos nós somos merecedores e, portanto, a sociedade brasileira tem que se ver com isso.

Como?

Este é o ponto delicado. Para você construir uma sociedade onde a vida de qualquer um valha a pena, os grupos sociais têm que estar imbuídos desta construção, não apenas os governantes. Mas a gente não vive em uma sociedade onde os grupos sociais se posicionam de forma a que a vida do outro valha tanto a pena quanto a de alguns. Temos grupos sociais que pensam que a vida de muita gente não vale tanto a pena quanto a deles. Você tem grupos sociais no Brasil, importantes economicamente, que não veem desta forma. Eu diria que a mídia está entre estes grupos. Boa parte desta mídia economicamente dominante é altamente preconceituosa, reprodutora de preconceitos sistemáticos. Criam uma base para o pensamento de que certos grupos sociais não merecem ser cuidados. A gente assiste isso na produção midiática inclusive. Portanto, a luta para construir este direito é mais dura do que a gente imagina e tem que envolver toda a sociedade. Você vê claramente esta noção equivocada dentro da minha categoria: os médicos.

Em que aspecto?

O Governo Federal instituiu o Programa Mais Médicos com base na dificuldade que temos de uma adesão da categoria médica brasileira a um posicionamento de trabalho na área publica – e, diga-se, com salários muito razoáveis – mas que implicaria em trabalhar junto a grupos populacionais nas periferias das cidades, em áreas muito distantes. Você vê que a maior parte da categoria não tem esta adesão. Você percebe que nem todo médico no Brasil está imbuído da ideia de que a vida de qualquer um vale a pena. É lamentável dizer isso, mas digo com experiência. Tenho 40 anos de docência na escola médica. E lamentável a gente ver que muitas das nossas escolas formam bons comerciantes.

Temos grupos sociais no Brasil que pensam que a vida de muita gente não vale tanto a pena quanto a deles.

O que o senhor está dizendo é que as profissões relacionadas à saúde precisam adotar um posicionamento ético diante do ser humano para fazer uma saúde de qualidade. Mas, como criar profissionais com esta concepção?

Esta é a grande questão. Temos uma defasagem entre uma construção de um SUS que aponta que a ética do cuidado é a garantia de uma saúde qualificada e a universidade, num processo atrasado, com cursos de formação absolutamente voltados a um mercado perverso. Nossas universidades públicas e privadas são do mesmo padrão ético. Soltamos milhares de profissionais das mais variadas áreas todos os anos, todos sedentos pelo mercado, sem nenhum tipo de obrigação por terem sido formados por um fundo público. Não sentem obrigação nenhuma em devolver à sociedade parte do investimento que ela fez nele.

Por outro lado, sem esta noção de ética, como fazer uma saúde de qualidade?

O trabalho na saúde é essencialmente feito tête-à-tête, no encontro com o outro. Eu posso, mesmo sendo alguém desigual do ponto de vista social em relação a quem estou cuidando, aplacar esta desigualdade no meu trabalho em saúde na medida em que eu encaro o outro como um igual em termos de vida e não um diferente em termos de riqueza. A saúde é diferente das demais profissões, pois se realiza deste encontro entre seres humanos. Hoje nossos profissionais aumentam a distância no processo do trabalho relacional. Eles poderiam diminuí-la. A distância da desigualdade entre ele e um usuário da periferia, por exemplo, acaba aumentando com esta visão equivocada.

Há também a questão profissional. Falta um plano de cargos e carreiras para a saúde no setor público?

Falta. Onde isso ocorre, percebe-se que o processo é muito melhor, mais adequado. Mas, por que não conseguimos instalar isso? Não podemos perder a raiz histórica. Quando, em 1988, conquistamos a instalação do SUS tínhamos que ter as leis infraconstitucionais, àquelas que pegam as grandes leis e as tornam operacionais. O governante de então era o Collor, que defendia a privatização dos serviços de saúde. Quando sai a lei para regulamentar o SUS, o Collor a destrói com o apoio maciço do setor privado. Cria-se um buraco no processo. A partir daí inicia-se um braço de ferro entre a defesa de um SUS público e a privatização do SUS. Em alguns governos Brasil afora, em especial nos governos tucanos, houve uma destruição sistemática dos princípios do SUS em experiências dramáticas. São Paulo e Minas Gerais são exemplos desta privatização do público e, como consequência, da destruição dos direitos trabalhistas destas áreas. Neste vazio entre o Collor e o Fernando Henrique Cardoso imperou uma estratégia de privatização pesada e de precarização do trabalho na saúde. Para construir o SUS temos que fazer uma reversão desta destruição.

E lamentável a gente ver que muitas das nossas escolas formam profissionais de saúde que são apenas bons comerciantes.

Mas, nós estamos com 12 anos de governo petista. Não foi possível reverter isso?

Doze anos no executivo, mas não no Senado e na Câmara Federal. Você não quebra isso no executivo, mas no legislativo. E, para quebrar isso no legislativo, teríamos que ter no mínimo uma situação favorável de movimentos nas ruas, como em 88, ou um bloco histórico partidário em favor disso. Em nenhum período destes 12 anos eles tiveram este cenário, pelo contrario, tiveram que negociar coisas duras. Além disso, o setor privado tem um comando muito forte, além da mídia, no legislativo. Quando avançam leis nesta direção ele bloqueia, ou na Câmara ou no Senado. Eles batem bola. O setor privado hoje movimenta mais dinheiro que o SUS, para 60 milhões de brasileiros ligados aos planos de saúde. Eles têm deputados, senadores, prefeitos etc.

A disputa por espaço entre as diversas profissões da saúde pode interessar a esta ou aquela categoria, mas não interessa ao usuário. O que é necessário para que estes profissionais consigam trabalhar unidos em beneficio do usuário?

Nós temos no Brasil – e isso é um paradoxo – a explicitação desta briga. Se você for para a Argentina, Espanha ou Itália, países nos quais eu conheço o cotidiano do serviço de saúde, você não vê esta briga. Há algumas razões para isso. A primeira é que nestes países o médico é quem manda e ninguém mete o bedelho. Em segundo lugar, os outros profissionais se submetem a isso. Aqui no Brasil, até pela tradição de nossa luta pela construção do SUS, e pelo fato do SUS causar boa tensão para o campo da formação, a gente tem uma explicitação mais evidente desta disputa. Das 14 profissões universitárias que operam na saúde, algumas não deixam passar barato quando os médicos dizem “a gente é que manda aqui”. É óbvio que não precisava ter isso, mas é quase automático, já que as profissões vivem em função das estratégias de mercado. O que opera neste campo de tensão é a disputa de mercado. Óbvio que há todo um argumento, mas é a disputa de mercado que está majoritariamente por detrás disso.

Como criar estratégias e práticas que fortaleçam a aproximação entre profissionais de saúde e usuários?

O primeiro ponto fundamental que a equipe deve mudar em relação ao usuário é desenvolver a capacidade de escutar o que ele diz. Quando você entra num consultório e se senta perante o profissional de saúde ele não escuta o que você fala. Ele te olha quase com um olho diagnóstico e te passa uma bateria de exames. Ele escuta os exames, mas não o usuário. O que o usuário fala é a coisa mais importante que existe naquele momento. Você não pode trocar a fala do usuário pela fala dos exames. Nada que o usuário diz é mentira. Se ele está fantasiando, aquilo faz parte das elaborações dele para sobreviver em relação ao sofrimento que ele tem. Outro ponto fundamental é que a relação entre a equipe e o usuário tenha continuidade, com criação de vínculos, onde a vida do outro me interessa, mas onde o outro possa perceber que eu tenho uma vida além daquela de ser médico e sentar atrás de uma cadeira. É possível construir uma nova relação.

Para isso é fundamental inverter a lógica na formação e no mercado. Não é algo muito difícil a esta altura do campeonato?

Sim. Mas essa é uma briga que fazemos cotidianamente e que acreditamos possível.

Ouça a entrevista na íntegra.


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