28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

A Rua Queima

Publicado em 23/10/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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Por que não tem dois milhões de brasileiros sitiando o Congresso Nacional e cantando canções de protesto do Chico Buarque? Era para ter acontecido. Na verdade, era para ter sido maior, mais violento e traumático. 

Mas aí dois homens desviaram o trem da história. 

O primeiro foi Itamar Franco, vice de Collor. O mineirinho chegou a presidência meio no susto depois da aventura populista da direita terminou com um processo de impeachment e o livro mais estranho do Fernando Sabino

Enquanto as lideranças políticas se organizavam em torno do próximo pleito, o mineirinho foi tratado como um poste exótico no Alvorada. Por um tempo, Itamar fez jus ao papel, fazendo campanha pela vota do Fusca, por exemplo. Mas, quando ninguém esperava, o sociólogo que, por alguma razão, era Ministro da Economia, chamou seus amigos acadêmicos e colocou um plano que era ainda mais bizarro do que sequestrar o dinheiro da poupança: inventar uma nova moeda imune à inflação. E como se faz isso? Basicamente, dizendo ao povo que essa nova moeda não tem inflação e esperar que o país engula o placebo. O plano Real combateu a cultura inflacionária do empresariado brasileiro com um golpe de judô e restaurou o poder de compra da moeda e, por consequência, do povo. 

O segundo homem responsável por desarmar a bomba-relógio social brasileira foi Lula, que herdou a economia restaurada no governo FHC e investiu em programas sociais. Ou, como diriam os neoliberais, irresponsabilidade fiscal. Da ampliação do Bolsa Família, ao Minha Casa Minha Vida, passando pelo ProUni, Lula criou uma rede de proteção que diminuiu o fosso social e tirou gente da miséria. 

Mal ou bem, o Real e os programas sociais criaram uma rede de segurança para as populações de baixa renda. O SUS atende mal, falta recurso à universidade pública, a aposentadoria é deficiente. Mas estão aí, pelo menos. Por mais cruel que isso pareça, pouco é melhor que nada. 

Não fosse pela intervenção destes dois ex-presidentes (com seus respectivos equívocos e insucessos), o Brasil teria passado por algo bem pior que o Chile de 2019.

No Chile, quem não tem dinheiro não tem direito à nada. Não existe saúde pública, não existe educação pública. A previdência então, é modelo, dizem os liberais. Só não sei modelo de quê, já que 80% dos aposentados vivem com menos que um salário mínimo. Sem hospital público, sem medicamento no posto de saúde. Sem qualquer programa de assistência. Imagine ser um idoso numa situação dessas. Imagine saber que esse é exatamente o futuro que o aguarda. 

Não me admira que a população chilena esteja tomando as ruas e cercando o congresso. Foram décadas de políticas voltadas para indicadores problemáticos. O que o Chile colhe hoje é o resultado das políticas adotadas na ditadura Pinochet, que foi usada como laboratório pela galera da Universidade de Chicago (sério, alguém precisa dar um revalida nessa galera de Chicago). O problema com experimentos de laboratório é que os efeitos colaterais às vezes são feios. Por isso que, covardemente, só os fazemos com quem julgamos inferiores, como animais e nações em desenvolvimento. 

E é importante relembrar que a esquerda voltou ao poder no Chile e não teve coragem de reverter o curso das políticas de Pinochet porque, deusulivre, afastar os investidores internacionais, né? 

O resultado da ópera é que o Chile é hoje um país rico e desigual, muito desigual, onde 0,01% da população detém 20% da renda. E a parte de baixo da pirâmide é composta por contribuintes completamente desassistidos pelo poder público. Não é que o serviço que eles têm é ruim. É que eles não têm nada. E quem não têm nada, não têm nada a perder. 

Aí a rua queima. E é por isso que, por enquanto, não vai queimar aqui. Por enquanto.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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