25/04/2024 - Edição 540

Poder

A revolução cultural do bolsonarismo

Publicado em 11/10/2019 12:00 -

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A tesoura dos censores podou as asas da produção artística brasileira na ditadura de Getúlio Vargas e seguiu firme em sua missão de retalhar a liberdade até afiar-se como nunca durante o regime militar, cortando e vetando mais de 1 000 livros, filmes e peças na cinzenta década de 1968 a 1978. Foi só com a Constituição de 1988 que pela primeira vez ficou proibido proibir — por lei. Pois esses primeiros meses do governo Jair Bolsonaro voltaram a deixar o mundo das artes em estado de alerta, cavoucando na memória aqueles períodos escuros. A nova censura tem feições diferentes: ela não é explicitamente institucionalizada, mas costurada nos bastidores de órgãos alimentados por dinheiro federal — e já produz resultados mensuráveis. Aos 90 anos, a atriz Fernanda Montenegro resumiu em um desabafo: “Nunca imaginei chegar a este momento da minha vida com este cerceamento existencial tão grande em torno de nós, artistas”.

Um balanço do Observatório de Censura à Arte, que mapeia o Brasil inteiro movido por denúncias de artistas que se veem alvo, registrou até agora 23 casos em que a tesoura oficial entrou em ação neste ano. Na mira estão produções que não soam apropriadas ao governo ou, como diz o presidente, deixam de “preservar os valores cristãos”. Bolsonaro assim define o fenômeno de supressão de obras do cardápio nacional, que não nega: “A gente não vai perseguir ninguém, mas o Brasil mudou. Com dinheiro público, não veremos mais certo tipo de obra por aí”. A fala não esconde o objetivo de brecar expressões artísticas que não se afinem com seu filtro — algo que Roberto Alvim, diretor da Funarte, fundação federal de fomento às artes, corrobora em documento interno. “A arte hoje se coloca como puro veículo panfletário de uma ideologia esquerdista altamente nociva ao imaginário de nossos cidadãos”, escreveu. E enlaçou: “É preciso que o governo atue firme e propositivamente na área da cultura”. Detalhe: Alvim planeja criar uma companhia pública de teatro.

A varredura se faz sentir de forma acentuada na Ancine, que regula e financia a produção audiovisual no país. As coisas ali andam devagar quase parando em razão do desmantelamento da máquina e do freio ideológico. Neste 2019, a agência lançou só dois editais, somando 37,2 milhões de reais — escassos 3,3% do investido em 2018, com seus robustos 25 editais. O último dessa nova era foi cancelado em agosto: destinaria verbas a séries, algumas com temática LGBT. Na segunda-feira 7, a Justiça mandou o governo voltar atrás. Em espaços culturais que vivem de dinheiro público, acumulam-se histórias de produções que já haviam sido aprovadas e, mesmo assim, estão sendo limadas. A dez dias da estreia da premiadíssima Caranguejo Overdrive, ela foi riscada da programação do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) no Rio de Janeiro. “Ninguém explicou nada”, espantou-se o diretor Marco André Nunes. Tudo o que se sabe é que a peça tece crítica à história do Brasil e insere aqui e ali cacos bem atuais, da Amazônia às milícias.

O poeta e dramaturgo Geraldo Carneiro assustou-­se ao receber recado inesperado do produtor da peça Iago, inspirada num clássico de Shakespeare e adaptada para o teatro Sesc Copacabana (sim, a instituição é beneficiada por repasses federais). Antes da estreia lhe exigiam que trocasse o texto do catálogo, em que cutucava o governo sem dar nomes. “Eu me recusei. Aí eles simplesmente tiraram o texto. Eu me senti na Idade Média”, dispara Carneiro. Na Caixa Cultural, à frente de espaços também irrigados com verbas oficiais em sete capitais, três peças foram removidas da programação em setembro — uma tinha um personagem homossexual, outra incluía um trans e a última, para crianças, falava de ditadura e, ironia do destino, censura.

Segundo um funcionário envolvido no rito de seleção, a Caixa passou a considerar fortemente o posicionamento político dos artistas, sua movimentação nas redes e “muitos detalhes” sobre cada obra. “A ordem é caçar qualquer sinal estranho, até achar”, conta. A Caixa Cultural e o CCBB afirmaram nortear-se por critérios técnicos em suas escolhas. Enquanto a Justiça examina os casos, Bolsonaro faz troça de Chico Buarque, que acaba de ganhar o prestigioso Prêmio Camões de Literatura e de quem discorda em tudo. Indagado sobre quando vai assinar o diploma que atesta a honraria, já firmado pelo governo português, o presidente soltou: “Ele pode esperar até 2026”. A resposta veio irônica. “A não assinatura do Bolsonaro é um segundo Prêmio Camões”, postou Chico. Não custa lembrar que é na diversidade que mora a boa arte e que todo mundo tem direito a ela.

A revolução cultural do bolsonarismo

A cultura é um campo permanente de batalha do Bolsonarismo. O próprio presidente confessa que “pretende conservar os valores cristãos no setor”, eufemismo que significa censura e retrocesso, o que já vem sendo praticado nas ações culturais e patrocínios que envolvem a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil. Jair Bolsonaro admite ainda uma caça às bruxas na Funarte e na Ancine, para expurgar petistas que, segundo ele, infestam os dois órgãos.

Na Caixa foi instituído um filtro ideológico para a seleção do projetos exibidos nos espaços culturais mantidos pela instituição. Por aí não passam projetos com críticas à ditadura militar ou que façam menção a questões de gênero ou atentem contra a moral e os bons costumes, na ótica do bolsonarismo.

O filtro ideológico na produção cultural também já aconteceu na Funarte, quando vetou a apresentação da peça teatral “RES PUBLICA 2023”, que trata do período da ditadura militar. O caráter laico do Estado não é observado pela Fundação, com a intenção de seu diretor de Artes Cênicas, Roberto Alvim – um ferrabrás, discípulo de Olavo de Carvalho – de ceder o Teatro Glauce Rocha no Rio de Janeiro à Companhia Jeová Nissi, de orientação evangélica.

Alvim, diretor do Centro de Artes Cênicas Funarte, nutre um ódio especial à classe artística, a quem xinga de “corja, gente hipócrita, canalha e radicalmente podre”. Esse Savonarola tupiniquim recentemente se referiu à atriz Fernanda Montenegro, um dos grandes símbolos da dramaturgia brasileira, com profundo desrespeito, agredindo-a com adjetivos como “sórdida e mentirosa”.

Foi ele quem até agora mais explicitou o projeto de “Revolução Cultural” do bolsonarismo. Disposto a criar uma “máquina de guerra cultural”, diz que é preciso que o governo “atue firme e propositadamente na área da arte e cultura, hoje dominada pelo marxismo cultural e pela agenda progressista”. O diretor da Funarte se dispõe a “formar um exército de grandes artistas espiritualmente comprometidos com nosso presidente e seus ideais”.

Está em curso, portanto, um esquema que se dispõe a criar uma nova arte, inteiramente identificada com um projeto de poder. Por muito menos o PT foi criticado, acusado de tentar aparelhar a cultura.

A existência de uma cultura oficial sempre foi meta de regimes totalitários. A Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini, a União Soviética de Stalin, a China da revolução cultural maoísta, criaram uma cultura oficial de Estado a serviço de seus projetos de poder.

Trata-se de uma visão utilitarista. Regimes totalitários não criaram arte, criaram propaganda política disfarçada de arte. Não será diferente com as pretensões de se estabelecer uma “cultura bolsonarista”.

A criação artística pressupõe liberdade, respeito ao pluralismo e de ausência do dirigismo estatal.

Na essência, a “Revolução Cultural” do bolsonarismo copia o PT na confusão entre o público e o privado, entre uma corrente ideológica e o Estado, entre governo e Estado. Por sua natureza, os governos são transitórios, enquanto o Estado é permanente e não pode estar a serviço de uma corrente, seja ela política ou religiosa.

Somos um país de uma produção cultural riquíssima que reflete a formação pluralista do nosso povo. Esse patrimônio dos brasileiros resistiu ao dirigismo do Estado Novo de Getúlio Vargas, à censura de “Dona Solange” do período ditatorial ou às incursões aparelhistas do Partido dos Trabalhadores.

Não será diferente com a “Revolução Cultural” de Bolsonaro. Como disse a ministra Carmem Lúcia no seu voto histórico sobre biografias não autorizadas, “cala boca já morreu, quem manda em minha boca sou eu.”

Resistência

O lançamento de “Prólogo, ato, epílogo”, livro de memórias de Fernanda Montenegro, escrito em parceria com Marta Góes e publicado pela Companhia das Letras, lotou o Theatro Municipal de São Paulo, no último dia 6. A atriz Fernanda Montenegro aproveitou a oportunidade para protestar contra as ameaças de censura e os ataques à classe artística.

"Ninguém ou sistema nenhum vai nos calar", disse Fernanda, que  subiu ao palco de mãos dadas com o dramaturgo Zé Celso, diretor do Teatro Oficina, um “maravilhoso sobrevivente”, em suas palavras. "Estamos reunidos aqui em torno da liberdade de expressão."

A atriz ainda defendeu o fim das reeleições, a renovação política e, sem citar nomes ou partidos, criticou a corrupção generalizada na política brasileira. "A corrupção foi institucionalizada e, por isso, não temos uma direita, nem um centro, nem uma esquerda", afirmou.

Fernanda não mencionou nenhuma vez o dramaturgo Roberto Alvim, diretor do Centro de Artes da Funarte, que, há duas semanas, chamou a atriz de “sórdida” e disse sentir “desprezo” por ela. A atriz havia posado fantasiada de bruxa em uma fogueira feita de livros para a capa da revista literária “Quatro Cinco Um”. As ofensas a Fernanda revoltaram a classe artística. Políticos, como o ex-presidenciável Ciro Gomes (PDT) e o prefeito paulistano Bruno Covas, também defenderam a atriz. No Twitter, Ciro chamou Alvim de “picareta”, “medíocre” e “vagabundo”.

No último dia 3, Fernanda foi entrevista no programa “Conversa com Bial”, onde fez uns poucos comentários políticos mas evitou citar nomes ou partidos. Às vésperas de completar anos, a atriz tem optado por falar de episódios de sua trajetória pessoal e artística, rememorados em seu livro de memórias, e não de política, nos eventos de divulgação e lançamento.

Caça às bruxas

Em entrevista ao site Huffpost, o ator Marco Nanini também criticou o clima de censura que permeia as artes sob o bolsonarismo. “Há sim uma caça às bruxas. Com certeza. É uma censura religiosa que sufoca uma parte da população que é impedida de ser representada. Esse negócio de Estado laico, esquece isso. É assustador”, dizze.


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