19/03/2024 - Edição 540

Poder

O fracasso da diplomacia da submissão do governo Bolsonaro

Publicado em 11/10/2019 12:00 -

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Jair Bolsonaro descobriu da pior maneira que, em diplomacia, a substituição do pragmatismo pelo amor pode ser o caminho mais curto para a frustração. Contrariando as expectativas do Planalto, a Casa Branca não apoiou a proposta do Brasil de ingressar na OCDE, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Em carta à entidade, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, avalizou apenas as candidaturas de Romênia e Argentina. Quer dizer: Bolsonaro recebeu da administração do seu ídolo Donald Trump um tratamento de sub-Mauricio Macri.

Os pedidos argentino e romeno foram formalizados antes da solicitação brasileira. Entretanto, Mike Pompeo teve a oportunidade de incluir o apoio ao Brasil na carta que endereçou em 28 de agosto ao secretário-geral da OCDE, Angel Gurria. Limitou-se a anotar que "os Estados Unidos continuam preferindo a ampliação [do clube dos países ricos] num ritmo contido, que leve em conta a necessidade de pressionar por planos de governança e sucessão".

No gogó, continua valendo o compromisso assumido por Trump em março, durante visita de Bolsonaro à Casa Branca, de apoiar o ingresso do Brasil na OCDE. Na prática, não há prazo para o resgate da promessa. Enquanto o golpe de garganta não vira atitude, o apoio americano é tratado no mundo diplomático como uma espécie de conto do vigário no qual Bolsonaro caiu. Depois de trocar o antiamericanismo primário do PT por um pró-americanismo inocente, o capitão precisa cuidar para que o mito periférico não seja ludibriado pelo mito da potência.

O governo já conseguiu cavar uma declaração para reduzir a humilhação pública, com a embaixada dos EUA afirmando que eles nos apoiam na OCDE. E conseguirá outras. Afinal, sob sua administração, o Brasil tem sido um apaixonado, de alma transparente, um louco alucinado, meio inconsequente, um caso complicado de entender de alinhamento automático aos interesses do Grande Irmão do Norte. O problema é que a embaixada não disse quando.

Um diplomata afirmou que, muito provavelmente, isso vai levar a um distanciamento entre as duas administrações. A pergunta é quanto distanciamento é viável a esta altura sem que Bolsonaro mude sua política internacional antiglobalista, ideológica, conspiracionista e paranoica. Reclamando de europeus, chineses, latinos, africanos, Bolsonaro amarrou seu burro junto a Trump. Talvez o que ele precise é aceitar que não dá mais para separar as suas vidas. E nessa loucura, de dizer que não o quer, vai negar as aparências e disfarçar as evidências.

Se o mundo gira, a Lusitana roda. Durante a transição de governo no final do ano passado, Paulo Guedes declarou, de forma rude, a uma jornalista argentina que "o Mercosul não é prioridade, simples assim". A prioridade, supostamente, seriam os países ricos, como os EUA. Já o Mercosul, era um projeto "ideológico". Claro que, depois, teve que recolher os cascos e entregar-se ao pragmatismo. Pois o bloco, antes de mais nada, é um projeto de comércio, priorizado por quase todos os governos brasileiros dos mais variados matizes ideológicos. O de Dilma, não.

Quase um ano depois de esnobar o Mercosul, o governo Bolsonaro está tendo que engolir que a preferida foi ela, a Argentina, mesmo com Macri não adotando o papel subserviente do brasileiro. Ou seja, o governo Trump pode gastar saliva para o contorcionismo retórico que for. Isso não muda o fato que o Palácio do Planalto e o Itamaraty pagaram-lanche. Com isso, se o governo aceitar a declaração da embaixada será o equivalente a receber um convite de casamento, com letras douradas num papel bonito e chorar de emoção quando acabar de ler num cantinho rabiscado no verso, dizendo: meu amor, eu confesso, tô casando, mas o grande amor da minha vida é você.

Agir alinhado aos Estados Unidos, sendo até seu garoto de recados, sem ter o seu tamanho econômico para aguentar o tranco, vem transformando o Brasil em uma espécie de pária isolado do sistema multilateral. Ninguém vai retirar o país do jogo comercial (dinheiro é pragmático), mas sua opinião já não tem o mesmo valor. Sem contar que estará sujeito a boicotes de empresas e fundos de investimento, pois alinhamento ideológico a negacionistas climáticos é queimar grana.

O apoio às pretensões brasileiras de estar na OCDE foi obtido em março, em visita do presidente Bolsonaro ao par americano Donald Trump, e era considerado pelo Itamaraty como seu principal resultado na política internacional de alinhamento aos Estados Unidos adotada na gestão atual.

Havia dentro do próprio governo a expectativa de que o aperto de mãos com Trump seria o suficiente para que o Brasil furasse a fila de nações postulantes a membros da OCDE. O protocolo, no entanto, se impôs.

"A diplomacia internacional tem um tempo próprio, bem mais lento que o tempo da política de redes sociais do Bolsonaro. O processo de ingresso na OCDE leva anos. O presidente quis sugerir à sua base que sua relação especial com Trump faria milagres, mas não existem milagres", afirma Guilherme Casarões, professor de política internacional da Fundação Getúlio Vargas.

Concessões

Bolsonaro entregou o que podia a Trump —da Base de Alcântara à liberação da catraca do Brasil para os turistas americanos. Há dois meses, ao anunciar que a Casa Branca dera sinal verde à indicação do filho Zero Três para a embaixada brasileira em Washington, Bolsonaro jactou-se de uma peculiaridade: "Teve um linguajar pessoal no documento que eu recebi", declarou. Referia-se a um bilhete escrito por Trump de próprio punho. "É pessoal", festejou, sem se dar conta de que, em política externa, amar não é coisa para amadores.

Bolsonaro concordou em abrir uma cota anual de 750 mil toneladas de trigo americano com tarifa zero, medida que afeta a Argentina, principal vendedor de trigo para o Brasil.

No fim de agosto, o Ministério da Economia decidiu não só prorrogar por mais um ano a importação de etanol americano isenta de uma tarifa de 20%, como elevou a cota dos 600 milhões de litros para 750 milhões de litros — a taxa passa a ser cobrada quando o volume negociado supera a cota.

A medida atendeu principalmente aos interesses dos americanos, os maiores exportadores ao Brasil, de etanol, produzido a partir do milho — segundo dados oficiais, 99,7% do etanol importado pelo país vem dos EUA. Desagradou, em contrapartida, produtores do Nordeste brasileiro, que consideram desleal a competição com o preço oferecido pelos americanos,

Desde 2016, o Brasil é o país que mais compra etanol americano. A expectativa dos produtores brasileiros era de que o governo americano liberasse seu mercado de açúcar, um dos mais protegidos do mundo, mas não houve essa contrapartida por enquanto.

"A negociação (para o apoio dos EUA à entrada brasileira na OCDE) envolveu concessões muito concretas do Brasil em torno de expectativas de apoio mais simbólico dos americanos", afirma Elaini da Silva, professora de relações internacionais da PUC.

Silva cita outros exemplos, como a concessão aos EUA da exploração da base espacial de Alcântara, no Maranhão, a isenção de vistos para turistas do país sem reciprocidade para brasileiros, e o fato de o Brasil ter abdicado do status de país em desenvolvimento nas negociações junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), o que poderia trazer prejuízos tarifários às exportações brasileiras.

O tratamento diferenciado prevê benefícios para países emergentes em negociações com nações ricas. O Brasil tinha, por exemplo, mais prazo para cumprir determinações e margem maior para proteger produtos nacionais.

Além do impacto direto nas futuras negociações comerciais brasileiras, essa decisão afetou a relação com países do Brics — grupo formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul.

Isso porque essas nações vão acabar sendo mais pressionadas a abrir, também, mão do tratamento diferenciado. E a Índia já está retaliando o Brasil.

"Na OMC, a Índia já vetou outro dia a nomeação de um embaixador brasileiro para negociar questões na área de pesca e foi um veto ligado exatamente a essa negociação entre Estados Unidos e Brasil pela entrada na OCDE", explicou à BBC News Brasil antes da reviravolta o professor Marco Vieira, da Universidade de Birmingham, no Reino Unido.

"Portanto, o Brasil está se isolando não só no contexto de economias-chave na Europa e no acordo do Mercosul, mas também com parceiros do Sul global: as economias emergentes como a Índia."

Bolsonaro também não colocou na mesa para discussão o aumento protecionista de impostos sobre o aço — medida de Trump contra os chineses que prejudicou o Brasil, tampouco o fim dos subsídios governamentais à produção de soja americana, que a torna competitiva em relação à safra nacional do grão.


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