19/03/2024 - Edição 540

Brasil

Tortura com as digitais do Estado

Publicado em 11/10/2019 12:00 -

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O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, apontou um “modus operandi” na atuação de agentes de forças-tarefas de intervenção federal em presídios: machucar e até mesmo quebrar os dedos de presos, como forma de impedir que agentes sejam agredidos por detentos. O registro dessa prática foi feito em relatório de 5 de abril deste ano, assinado por quatro peritos do mecanismo, após inspeções em presídios do Ceará sob intervenção federal autorizada pelo Ministério da Justiça. O ministro da Justiça, Sergio Moro, autorizou a intervenção federal nos presídios do Ceará em 25 de janeiro. O governo do do estado reassumiu em maio o controle dos centros de detenção.

O ministro da Justiça, Sergio Moro, autorizou a intervenção federal nos presídios do Ceará em 25 de janeiro. O governo do do estado reassumiu em maio o controle dos centros de detenção.

Uma ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal (MPF) no Pará detalhou casos de tortura em presídios no estado controlados pela força-tarefa de intervenção federal. O coordenador do grupo, designado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), foi afastado do cargo pela Justiça Federal. O caso gerou forte repercussão, e tanto o ministro da Justiça quanto o diretor-geral do Depen, Fabiano Bordignon, negaram haver qualquer comprovação de tortura. Moro disse que eventuais abusos, se provados, serão punidos.

De acordo com os relatórios do Mecanismo de Prevenção à Tortura, o caso do Pará não é isolado. No documento que trata da inspeção em unidades do Ceará, os peritos descrevem uma “sistemática” agressão nos dedos de presos para que eles percam o movimento das mãos.

“Um expressivo número de pessoas, em diferentes celas e alas, mostrava as mãos denunciando que seus dedos haviam sido quebrados e machucados pelos agentes da FTIP (força-tarefa de intervenção penitenciária)”.

Conforme o relatório, “nitidamente a violência cometida de golpear os dedos com tonfas (cacetetes), chegando muitas vezes a quebrar, foi praticada sistematicamente”.

Os peritos afirmam, então, que já haviam se deparado com esse “modus operandi” em outras unidades sob intervenção federal, o que torna “bastante evidente e robusto o argumento de que essa prática vem sendo utilizada por agentes dessa força-tarefa”. O relatório cita que o secretário de Administração Penitenciária do Ceará, Luís Albuquerque Araújo, mencionou numa audiência pública em Natal “a utilização desse método para diminuir a capacidade do preso em realizar movimento de pinça, isto é, de segurar objetos, e assim impossibilitar que possam agredir os agentes prisionais”. Araújo é policial civil e já coordenou forças-tarefas de intervenção federal em presídios no Ceará e no Rio Grande do Norte.

Depen nega tortura

O Mecanismo de Combate à Tortura foi criado por uma lei de 2013. Um decreto do presidente Jair Bolsonaro extinguiu os cargos dos peritos do órgão. Uma decisão liminar da Justiça Federal suspendeu os efeitos do decreto. A Procuradoria-Geral da República (PGR) entendeu que a extinção dos cargos viola a Constituição e pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declare inconstitucional o ato do presidente.

Em resposta aos questionamentos do GLOBO, o Depen afirmou que “repudia veementemente” as informações “infundadas e sem provas” sobre tortura durante a intervenção no Ceará. “Não foi identificada qualquer prática de tortura nas atuações dos servidores da força-tarefa”, disse. O Depen informou ainda que a Corregedoria do órgão esteve no Ceará para uma inspeção e apura as denúncias.

“O Depen reforça que as forças-tarefas representam a libertação dos presos não faccionados do jugo das facções. Em todos os locais de atuação houve redução, acima da média, das estatísticas de crimes violentos”, completa o órgão.

A Secretaria de Administração Penitenciária do governo do Ceará afirmou que a presença do Estado para “estabelecer o controle” dos presídios levou a “reações dos presos” em algumas situações, com motins e agressões contra servidores, e que os presos feridos nesses confrontos foram medicados. E que não há indícios de tortura.

Sobre as declarações dadas pelo secretário numa audiência pública, a secretaria afirmou que o MP do Rio Grande do Norte entendeu que as falas “não sugerem a prática de tortura ou omissão na apuração de tal delito”. O caso referente à declaração foi arquivado, segundo a pasta.

OAB proibida de atuar

O governo paraense pediu à Justiça e obteve a proibição de entrada dos advogados da Ordem dos Advogados do Brasil no Pará (OAB/PA) – responsável por grande parte das denúncias – de entrar nos presídios paraenses por 30 dias, a contar de 2 de outubro.

O ato é encarado como um retrocesso para os advogados da instituição. O presidente da OAB/PA, Alberto Campos, reforçou que a medida vai além da violação das prerrogativas da advocacia. Para ele, o que está em jogo é o estado de exceção implantado no sistema penitenciário do Pará.

"Um dos primeiros atos dos anos de chumbo [da ditadura militar], qual foi? Foi a suspensão do habeas corpus. Qual é o primeiro ato desse superintendente ao editar as portarias? É afastar a advocacia de dentro do presídio. É isso que eles querem. Eles não querem a voz da advocacia, porque a voz da advocacia é a única que fala por aqueles que não têm voz", comparou.

A FTIP atua no Estado desde o massacre ocorrido no Centro de Recuperação de Altamira, no sudeste do Pará, onde 58 pessoas morreram. Na ocasião, os presos chegaram a ficar uma semana no local usando, apenas, cueca, sendo privados de higiene, comida e submetidos a espancamentos.

Apesar de afastado do cargo de coordenador da FTIP, Maycon Rottava acompanhou o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro e a comitiva do governador Helder Barbalho (MDB) em visita ao Complexo penitenciário de Santa Izabel, localizado na região metropolitana de Belém, capital do Pará, No último dia 7.

O advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PA, José Maria Vieira reforça que as movimentações tanto do governo estadual, quanto federal seguem não só no sentido de desconstruir a tortura, mas de fazer com que a sociedade aceite que a crueldade é normal.

"Houve uma mudança na chave. O Estado pode usar a violência. O Estado é o único ser da constituição que tem o direito de usar a violência. Mas o que ele está fazendo é dizer que isso é normal, que isso tem que ser banalizado. Isso está errado. Se você conversar com esses agentes, esses superintendentes, o ministro. Se você conversar com eles, eles acreditam piamente que o que estão fazendo não é tortura. Eles estão simplesmente, banalizando, simplificando a violência, a barbárie", reforça.

A proibição dos advogados da OAB/PA consta em decisão assinada pelo juiz da Vara de Execuções Penais, Deomar Alexandre Barroso. Segundo a decisão, o impeditivo busca "não apenas a segurança e disciplina do interior das casas penais, mas também tem por escopo preservar a própria segurança das autoridades judiciais em atividade de inspeção carcerária, pois o risco iminente pode afetar qualquer pessoa, dada a peculiaridade do ambiente carcerário inclusive pessoas ocupando função de autoridade do sistema judicial".

A multa em caso de descumprimento é de R$ 50 mil por dia. A OAB/PA reforça que não se curvará diante das ilegalidades e continuará tomando as medidas cabíveis previstas na Constituição Federal de 1988. 

Empalamento que não é tortura

A palavra "tortura" tem origem no latim e significa suplício, martírio ou tormento, que pode ser tanto físico quanto psicológico.

Apesar de a oficialidade acreditar que não há tortura nos presídios paraenses, no dia 4 de setembro, as detentas do Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua, na região metropolitana de Belém (PA), denunciaram que os homens da FTIP as obrigaram a sentar nuas em formigueiros, além de espancá-las e privá-las de água e comida.

No pedido de liminar do MPF pelo afastamento do coordenador da FTIP há o relato de que os agentes pegaram o cabo de uma arma calibre 12 e introduziram no ânus de um detento. 

A crueldade é intitulada empalamento, uma prática de tortura sádica, que consiste na introdução de uma estaca ou qualquer objeto pontiagudo, no ânus ou vagina da vítima. Segundo o documento, o homem empalado foi atendido por médicos e retirado da unidade penitenciária em uma ambulância. 

"Eu os vi pegando o cabo de uma doze e introduzindo na bunda de um rapaz. Foram dois agentes, ele estava em posição de procedimento, ou seja, com as mãos na cabeça. Tentaram primeiro introduzir no ânus dele um cabo de enxada, mas não conseguiram, aí conseguiram com o cabo da doze; inclusive, eu vi esse rapaz saindo de ambulância e os médicos atendendo ele; não sei o nome, mas muitas pessoas viram; devido o estado que ele ficou, teve que ser recolhido da casa penal”, diz o relato que consta no documento. 

As denúncias contra a atuação da Força de Intervenção Penitenciária no Pará são muitas. Segundo os advogados da OAB, foram colhidos mais de 100 vídeos relatando as torturas. 

O governo do Estado mantém o mesmo posicionamento desde o início das denúncias: nega as torturas e reforça total apoio à Força de Intervenção Penitenciária. No Pará, a atuação da Ftip segue até 27 de outubro.

Tortura com as digitais do Estado

De Jair Bolsonaro não se espere nenhuma manifestação de horror quanto a torturas de presos. Mais de uma vez ele defendeu e justificou a tortura adotada como política de Estado à época da ditadura militar de 64 que se estendeu por 21 tenebrosos anos.

Mas do ministro Sérgio Moro, da Justiça, seria natural que se esperasse uma manifestação de inconformismo e de horror. Uma condenação sem reticências à prática que contraria os tratados internacionais sobre Direitos Humanos assinados pelo Brasil.

Quando nada porque Moro não é ministro de uma pasta qualquer – mas da que carrega em seu nome a palavra Justiça, agora acrescida das palavras Segurança Pública. E porque até um dia desses, Moro foi juiz respeitado e defensor do Estado de Direito.

Moro, no entanto, preferiu calar-se ou duvidar do relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sobre o que aconteceu em março último no Ceará.

Como se calou mais recentemente sobre uma ação movida pelo Ministério Público Federal no Pará. Em questão, nos dois casos, o modo reprovável, cruel e desumano de operar de agentes de forças-tarefa de intervenção federal em presídios no país a fora.

No Ceará, para escapar de eventuais agressões, os agentes quebravam os dedos de presos considerados perigosos. No Pará, o variado cardápio de torturas foi usado à farta contra detentos – seja para que admitissem crimes, seja para aterrorizá-los.

A intervenção federal em presídios foi autorizada por Moro no rastro de rebeliões ou de ameaças de futuras rebeliões. Era para restabelecer a ordem e coibir crimes. De fato, serviu para a explosão de novos crimes, dessa vez com as digitais do Estado.

A falsa natureza cordial do brasileiro, somada à insegurança pública que faz do país um dos campeões mundiais em número de homicídios, acaba por avalizar o comportamento de forças policiais que empregam a violência para além do limite fixado em leis.

Nos tristes anos 70 do século passado, o advogado Sobral Pinto, que uma vez já invocara a lei de proteção aos animais para proteger presos políticos torturados, investiu contra autoridades e políticos que falavam cinicamente em “democracia à brasileira”.

Para Sobral Pinto, à brasileira só existia peru durante o Natal. Democracia não comportava adjetivo. Ou era democracia ou democracia não era. Assim como virgindade. Meia virgindade era uma fraude. Estado de Direito com tortura é fraude pura.

A barbárie sente-se estimulada quando o presidente da República a chancela, o ministro da Justiça a ignora e a sociedade a tolera.


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