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Artigo da Semana

A influência religiosa na política, dos católicos aos neopentecostais

Publicado em 09/10/2019 12:00 -

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Há pouco tempo, falei, a convite, para agentes pastorais da Igreja Católica. Tive um passado muito próximo do ambiente eclesial católico e é sempre um prazer atendê-los quando posso. A Igreja continua gostando de fazer o que chamam de “análise de conjuntura”, uma espécie de fotografia da vida política e econômica. Mas, como é normal em instituições, tem dificuldade em se implicar no processo.

O que quero dizer? Até os anos 1980, pelo menos, a Igreja Católica teve considerável incidência na vida política brasileira. Dos anos 1970 até o fim da ditadura, representou um dos poucos espaços de resistência à barbárie militar. Afinal, os generais-presidentes da República podiam nomear militares ministros da Educação, como o tenente-coronel Jarbas Passarinho ou o general Rubem Ludwig, mas não os podiam nomear cardeais nem bispos. Nem cassar o múnus de prelados e abades católicos que desafiavam ou enfrentavam o regime como Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, Dom Aloísio Lorscheider, o cardeal arcebispo de Fortaleza, Dom José Ivo Lorscheiter, bispo de Santa Maria, Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal metropolitano de São Paulo, ou Dom Timóteo Amoroso, o saudoso abade do Mosteiro de São Bento aqui em Salvador.

Se isso foi extremamente importante durante a ditadura, não foram de menor relevância dois outros elementos. O primeiro era a capacidade que a Igreja tinha de orientar votos, uma característica muito comum da Igreja Católica na Europa, por exemplo, e da qual se beneficiaram imensamente partidos europeus do pós-guerra como a Democrazia Cristiana da Itália. A Ciência Política já documentou fartamente o fato de que as pessoas têm necessidade de orientação de voto em episódios eleitorais, e que as igrejas costumam ser muito eficientes nesta tarefa de ajudar a distinguir candidatos identificados com certas causas, convicções e valores. Nos anos 1970 ainda, a Igreja se somava aos sindicatos e a outras formas de organizações da sociedade civil a orientação do voto para candidatos que divergiam do regime militar e que defendiam causas populares e democráticas. Nos anos 1980, isso foi ainda mais importante porque reiniciamos o ciclo de eleições presidenciais diretas. 

A segunda dimensão que dava muita relevância política à Igreja era a capacidade de formar lideranças políticas comprometidas com os valores eclesiais em voga no anos 1970 e início dos anos 1980. Tratava-se de uma Igreja ainda muito marcada pelo Concílio Vaticano II (1962), pela Conferência Episcopal Latino-americana de Puebla (1979) e pelos renovadores papados de João XXIII e Paulo VI. Grande parte da Igreja Católica se movia pelo princípio da opção preferencial pelos pobres, pela doutrina da Teologia da Libertação e pela ideia de que a Fé tem que transformar a vida social. E esta foi a moldura de convicções no interior da qual muitos quadros católicos foram formados e encaminhados para a política institucional dos anos 1980 em diante. Nesta lista de líderes formados pela Igreja da Libertação se pode incluir, por exemplo, uma grande parte dos quadros do Partido dos Trabalhadores, a começar pelo próprio Lula.

Hoje em dia a Igreja Católica não é sequer a sombra do que já foi na segunda metade dos anos 1970 e nos anos 1980. Perdeu inteiramente tanto a capacidade de orientar votos quanto a competência de formar lideranças políticas norteadas pelas bases do Humanismo Cristão com inserção social. Por que isso aconteceu? O evento fundamental foi certamente o papa João Paulo II, recentemente canonizado, que assumiu o trono de S. Pedro em 1978 e reinou por 26 anos. A obra de vida de João Paulo II, um cardeal do Leste Europeu que experimentou as agruras da sua comunidade católica sob uma ditadura comunista, consistiu em afastar a Igreja latino-americana das premissas da Teologia da Libertação, do engajamento político e de uma perspectiva de Humanismo Cristão engajado que lhe parecia excessivamente marxista para o seu paladar polaco. Foi uma operação tenaz e consistente que começou a dar fruto nos anos 1990, quando os já velhinhos cardeais e bispos de Paulo VI foram substituídos por prelados da sua própria escolha.

O resultado? Bem, em política não há espaço vazio. À medida que a Igreja Católica se retirava da tarefa de orientação de voto, os recém-chegados neopentecostais ocupavam o seu lugar nas periferias da grandes cidades, nos grotões do Brasil, no interior. À proporção que a Igreja Católica deixava de prover quadros para a política, os ultraconservadores pentecostais e neopentecostais assumiram a função de indicar e eleger candidatos ligados aos seus próprios quadros. Bispos, pastores e missionários das congregações pentecostais começaram a ocupar e conquistar a hegemonia nas casas legislativas Brasil afora, das Câmaras de Vereadores às Assembleias Legislativas e, então, ao Congresso Nacional. E o humanismo cristão católico, com a sua opção pelos pobres e por minorias, que chegou a ser importante na agenda política nos anos 1970 e 1980, foi substituída pela pauta de costumes ultraconservadora e reacionária que não apenas conquistou cadeiras no Legislativo, mas, enfim, conquistou a presidência da República. E foi assim que o cristianismo na política deixou de ser sinônimo de justiça social e igualdade, nos anos 1970 e 1980, para ser agora sinônimo de aversão a direitos e liberdades. E a Bíblia deixou de ser sinônimo de libertação, para ser um chicote que se estala no lombo de minorias e meio de opressão. 

Wilson Gomes – Doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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