11/05/2024 - Edição 540

Poder

Quais os problemas por trás da nova Lei de Abuso de Autoridade

Publicado em 04/10/2019 12:00 -

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Cinco anos após o início da Operação Lava Jato, marco no avanço das investigações contra a classe política, o Congresso Nacional teve a palavra final sobre a nova Lei de Abuso de Autoridade. Na última terça-feira (24), parlamentares derrubaram vetos do presidente Jair Bolsonaro ao texto aprovado pela Câmara em agosto. A nova legislação é alvo de diversas críticas porque deve ser ineficiente para combater abusos e, por outro lado, pode prejudicar investigações e simbolizar uma intimidação do Legislativo ao Judiciário e ao Ministério Público.

“Fica a sensação de que a lei é muito mais simbólica, para dizer ‘estamos de olho, podemos punir juízes e promotores’ do que uma preocupação verdadeira em coibir esses problemas [abusos do Judiciário] que são extremamente graves. Uma arbitrariedade judicial pode acabar com a vida de alguém”, afirmou ao HuffPost Brasil a presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Valdete Souto Severo.

Com aval de Bolsonaro, os vetos foram derrubados em uma sessão do Congresso convocada de última hora pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AM), dias após o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizar buscas e apreensões em gabinetes ligados ao líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), e ao deputado Fernando Filho (DEM-PE), investigados por corrupção.

A movimentação é comparada à reação do Legislativo italiano após a Operação Mãos Limpas, que inspirou Sérgio Moro quando era o juiz à frente da Lava Jato. “A maneira como a lei foi aprovada, sem maiores discussões, nos preocupa. Fica parecendo que é um recado, uma reação, como ocorreu na Itália. Espero que não seja”, afirmou ao HuffPost o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Edvandir Paiva.

No entendimento de Paiva, a legislação anterior já era suficiente para coibir abusos. A ADPF deve ingressar na próxima semana com um ação no STF para questionar a constitucionalidade de trechos da nova lei. “São aqueles que têm expressões muito abertas, que podem ser usadas para tumultuar a investigação, incomodar o delegado que está fazendo a investigação com ações na Justiça dizendo que está cometendo crime”, disse.

Um dos artigos a ser questionado é o que prevê pena de três meses a um ano de prisão para quem “violar direito ou prerrogativa de advogado”. Esses direitos já são garantidos pelo Estatuto da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

De acordo com Paiva, esse trecho é subjetivo e pode ter divergência, por exemplo, em casos em que o delegado nega o acesso ao inquérito caso considere o sigilo imprescindível. ” Um advogado que queira, no limite, tumultuar, intimidar um delegado, vai conseguir porque vai poder entrar com representação criminal”, afirmou. “Pode ser que, no limite, isso venha a criar uma intimidação e o delegado prefira escolher o caminho mais fácil”, completou.

O presidente da ADPF também criticou um artigo que, de acordo como ele, limita as práticas no interrogatório. A nova lei pune com detenção de um a quatro anos quem “prossegue com o interrogatório de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio”.

“Muitas vezes o interrogado diz ‘não quero responder’ e depois diz que quer responder. A nova lei está mitigando um técnica de interrogatório que é persuasão. Não se está ameaçando; se está insistindo nas perguntas. Responde se quiser. A legislação foi exagerada. Considera crime que se façam perguntas a uma pessoa é absurdo”, afirmou Paiva.

Barreiras às investigações 

O trecho da nova legislação sobre os advogados também deve ser alvo de questionamento no STF pela Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) no Supremo. Os juízes veem com preocupação o artigo que pune com detenção de um a quatro anos um juiz que decretar medida de privação da liberdade “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. 

A mesma punição é prevista para o magistrado que decretar a “indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte” e deixar de corrigir essa medida mesmo se a parte demonstrar que é excessiva. 

Para alguns juristas, esse trechos podem ser interpretados de forma a enquadrar juízes que tenham a sentença reformada por uma instância superior. “Hoje não é permitido decretar uma prisão ou medida privativa de liberdade sem fundamentação. Isso está na Constituição. O problema é que essa lei estabelece que, se o juiz, conforme convicção e entendimento dele, mandar prender e depois o tribunal soltar, isso pode ser considerado abuso de autoridade. Há vários casos que, conforme a interpretação de cada juiz, pode-se prender ou não uma pessoa”, critica o presidente da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul, Otávio Port.

Na interpretação do magistrado, o trecho da nova lei “tem um grau de subjetividade muito grande” e pode inviabilizar a atuação independente do Judiciário. “O problema é essa insegurança que essa lei pode trazer em relação à decisão do juiz. Ele vai ter menos liberdade; não vai poder decidir livremente. Vai ter sempre a preocupação de que, se a decisão dele for reformada, isso pode ser considerado abuso de autoridade. Isso fere a independência judicial e a autonomia do juiz de decidir conforme a prova dos autos”, afirmou.

Embora entenda que “dentro de um ambiente de normalidade, não tem como enquadrar nesse tipo penal” a revisão de sentença, a presidente da Associação Juízes para a Democracia acredita que o temor se deve ao contexto político atual. “A gente está vivendo um momento de exceção, em que as coisas não estão muito normais, é razoável que alguns juízes e procuradores tenham esse receio de que a lei seja usada para perseguir”, afirmou Severo.

Como juízes são punidos?

De modo geral, o entendimento no meio jurídico é de que a legislação atual já prevê a responsabilização para condutas irregulares no Judiciário e no Ministério Público. Condutas equivocadas de juízes podem ser punidas, administrativamente, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Já os promotores e procuradores respondem ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Além disso, se, ao decretar uma prisão, o juiz praticou alguma conduta criminosa, ele pode sofrer um processo criminal que pode levar à perda do cargo.

No CNJ, a sindicância em geral é sigilosa e  independe de eventual ação judicial contra os magistrados. A punição mais grave é a aposentadoria compulsória. De acordo com levantamento da revista piauí, desde 2009, 58 juízes foram punidos com essa medida, o que representou um gasto de R$ 137,4 milhões, em valores corrigidos pela inflação. Eles foram investigados por denúncias de irregularidades graves, como venda de sentenças para bicheiros e narcotraficantes, desvio de recursos públicos e estelionato. 

Já o CNMP divulgou em 2017 que em 12 anos foram aplicadas 189 punições, o que representaria cerca de 1,5% dos membros da ativa do Ministério Público. No levantamento, havia apenas duas vezes em que a aposentadoria compulsória fora aplicada inicialmente. O órgão ressaltou, porém, que “em novos processos, os membros tiveram a aposentadoria cassada por decisões do próprio Conselho’.

Coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba (PR), o procurador Deltan Dallagnol é alvo atualmente de ao menos 12 representações disciplinares no CNMP. Dessas, 7 foram feitas com bases nos diálogos revelados pelo site The Intercept Brasil entre Dallagnol e outros procuradores e com o então juiz Sérgio Moro, responsável pelos julgamentos em primeira instância ligados ao esquema de corrupção investigado.

Já o CNJ negou pedido para apurar a responsabilidade de Moro no caso porque ele deixou a magistratura para ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. O órgão decidiu em favor do ex-juiz em todos casos julgados em que ele foi acusado de cometer infração quando atuava em Curitiba, de acordo com levantamento da Folha de S.Paulo. Até junho, dos 55 processos instaurados, 34 foram arquivados, 3 suspensos e 18 ainda aguardam resposta.

A troca de mensagens mostra uma atuação conjunta do Judiciário e do Ministério Público, o que violaria o princípio da imparcialidade do juiz. Os diálogos também sugerem práticas como obtenção ilegal de provas no âmbito da Lava Jato.

Para a presidente da AJD, há uma preocupação de que a Lei de Abuso de Autoridade pudesse, de alguma maneira, anistiar essas condutas, ao criar novos crimes. “Se a partir dessa lei essas condutas são criminosas, então antes não eram. Se não eram, o que fizeram os procuradores no caso da Lava Jato, e o que fez Sérgio Moro não é conduta ilícita. É criar a artificialidade dos fatos anteriores”, aponta Severo.

A lógica é a mesma da criminalização do caixa dois, quando os recursos de partidos ou candidatos não são contabilizados no fluxo de caixa e informado ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), prática já proibida.

Condutas da Lei de Abuso de autoridade já eram crimes 

Além de proibir prisões ilegais, a Lei de Abuso de Autoridade pune criminalmente a conduta de manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento e a “obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito”. Cabe ao Ministério Público ingressar com a ação na Justiça nesses casos, sem depender da iniciativa da vítima.

As condutas descritas, contudo, já eram proibidas pela legislação anterior e algumas consideradas crimes. O Código Penal prevê, por exemplo, o crime de “exercício arbitrário ou abuso de poder”, que inclui ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais, colocar alguém na prisão de forma ilegal e prolongar a execução da pena “deixando de expedir em tempo oportuno ou de executar imediatamente a ordem de liberdade”. A pena é detenção de um mês a um ano.

Também já é considerada circunstância agravante quando o crime ocorre com “abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão”.  A vedação a arbitrariedades aparece ainda em outros crimes, como invasão de domicílio e de correspondência, o que seria o equivalente à interceptação telefônica.

Com pena de detenção de três meses a um ano, o crime de prevaricação, por sua vez, consiste em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. 

De acordo com a presidente da Associação Juízes para a Democracia, o que o Congresso fez foi “esmiuçar o que seria o abuso em várias condutas”. Esse é um dos motivos apontados por Severo para acreditar que a nova lei não irá resolver arbitrariedades do mundo jurídico. “Se esses agentes já não estão sendo punidos com base num tipo penal que já existe, o que nos leva a crer que agora eles seriam punidos?”, questiona.

Devido a uma somatória de falhas no funcionamento dos sistemas judiciário e penitenciário, o impacto da nova lei para combater violações que atingem principalmente a população mais pobre também deve ser inexpressivo. Severo acredita que não será resolvido, por exemplo, o problema de pessoas que continuam na prisão mesmo após o fim do prazo da pena. Isso acontece principalmente porque a assistência jurídica não chega até essa população.

O problema do abuso de autoridade é estrutural num Estado como o nosso que têm tanta desigualdade social, um sistema punitivo direcionado, que não pune quem tem grana. Um problema secular como esse não se resolve por um lei criando tipos penais, por mais criados que eles sejam.Valdete Souto Severo, presidente da AJD

“Mesmo que haja denúncia, existe um sistema que não propicia a responsabilização. Quem são atingidos pelo abuso de autoridade geralmente? A população negra e pobre. Eles vão denunciar para quem se sofrem contato com o Estado e o sistema penal na condição de presos, de réus?”, critica Severo.

Segundo dados divulgados pelo CNJ em julho, 812.564 pessoas estavam presas no Brasil, sendo que 41,5% (337.126) são presos provisórios, ou seja, ainda não tiveram seus casos julgados.

Ao julgar ação do PSol que em que se questionavam “ações e omissões” do poder público em relação ao sistema penitenciário brasileiro, em 2015, o STF reconheceu a superpopulação carcerária e a quantidade de presos aguardando julgamento como problemas centrais. O plenário admitiu que o sistema viola de forma generalizada os direitos dos presos em relação à dignidade e integridade psíquica e física e que a situação é de responsabilidade dos Três Poderes. 

Na época, o STF determinou que o governo federal liberasse todo o saldo acumulado no Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), destinado à construção e reforma de presídios, e proibiu novos contingenciamentos da verba. A Corte também decidiu que os tribunais deveriam adotar medidas para implantar as chamadas audiências de custódia, procedimento que avalia, em até 24 horas após a prisão em flagrante, se a pessoa precisa continuar detida.


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