27/04/2024 - Edição 540

Poder

O mau começo de Augusto Aras na PGR

Publicado em 04/10/2019 12:00 -

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Se atuará com autonomia como o cargo exige, só o futuro dirá. Mas no seu primeiro dia como novo Procurador-Geral da República, Augusto Aras empenhou-se bastante em agradar o presidente Jair Bolsonaro que o nomeou. E agradou.

Além de prometer orientar-se pelos “princípios e valores cristãos”, esquecido que o Estado é laico, ele também deixou Bolsonaro feliz ao cobrar a reabertura de investigações sobre Adélio Bispo, o autor da facada mais famosa da história recente do país.

Adélio está preso. Sofre de transtorno delirante, segundo os peritos que o examinaram. A Justiça concluiu que ele é incapaz de responder por seus atos. Os advogados de Bolsonaro não recorreram da decisão. O caso foi oficialmente encerrado.

Mas se depender de Aras deveria ser reaberto. Aras se diz convencido de que Adélio não agiu sozinho, embora careça de fatos para sustentar o que diz. Em três inquéritos, a Polícia Federal concluiu que ele agiu sozinho. Aras cobra “a verdade real”.

O que poderá vir a ser “a verdade real”? A que se oponha à verdade encontrada pela Polícia Federal e aceita pela Justiça? Seu caso com Bolsonaro foi de “amor à primeira vista” como reconheceu o presidente ao empossá-lo. Dá para imaginar por quê.

Equipe estranha

Após assinar uma carta de compromisso com a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), Aras, tem demonstrado na escolha da equipe como o Ministério Público deve tratar questões ligadas à pauta de costumes. Nomeado para comandar a Secretaria de Direitos Humanos, o procurador Ailton Benedito é defensor da Escola sem Partido e crítico do que chama “ideologia de gênero”.

O termo cunhado por religiosos não é reconhecido no universo acadêmico e normalmente é usado por grupos conservadores que se opõem às discussões sobre diversidade sexual e de identidade de gênero. Já a teoria de gênero, reconhecida por acadêmicos, aponta que gênero e orientação sexual são construções sociais e, por isso, não podem ser determinadas por fatores biológicos.

Atualmente à frente da Procuradoria da República em Goiás, Benedito chegou a ser convidado pelo governo de Jair Bolsonaro para assumir uma cadeira na Comissão de Mortos e Desaparecidos do governo, mas foi vetado pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal, com voto decisivo da então procuradora-geral Raquel Dodge.

Em 2016, Benedito chegou a instaurar um procedimento para apurar se a estrutura da Universidade Federal de Goiás (UFG) estaria sendo usada para promoção de manifestações político-partidárias. No mesmo ano, ele também deu início a uma investigação sobre supostas ações ou omissões da UFG quanto à ausência de identificação nos banheiros masculino e feminino dos campi universitários, identificados apenas pelo uso “social ou unissex”.

Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em 2017, sobre o projeto de lei conhecido como Escola sem Partido, o procurador defendeu que o tempo gasto nas instituições de ensino com “atividades alheias ao currículo” deve ser debitado na conta de quem detém a administração do ensino, desde o Ministério da Educação até as secretarias estaduais e municipais.

Uma das bandeiras do bolsonarismo, o projeto de lei arquivado com  a mudança de legislatura proibia o desenvolvimento de políticas de ensino e adoção de disciplinas no currículo escolar “nem mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”.

A proposta também estabelecia que professores não poderiam usar sua posição para cooptar alunos para qualquer corrente política, ideológica ou partidária e previa que as escolas deveriam afixar cartazes com o conteúdo da nova lei.

Benedito também se mostrou contra a criminalização da LGBTfobia, decidida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em junho, em entrevista à Folha de S. Paulo.  Ao jornal, ele também disse que “a afirmação de que o Brasil prende demais, ou que tem um hiperencarceramento, é uma falácia. O Brasil prende pouco”. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com pelo menos 812.564 presos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O posicionamento ideológico do novo assistente de Aras também está presente nas redes sociais de Benedito. Em um tweet, ele afirma que “a nefasta ideologia de gênero, projeto totalitário de engenharia social que usa crianças e adolescentes como cobaias, tem na escola seu laboratório de propagação. Pais e mães devem permanecer bastante atentos para não deixar que seus filhos sejam as próximas vítimas”.

Nas publicações, o procurador também critica o debate sobre a descriminalização de drogas, defende a militarização nas escolas a punição de reitores que não denunciam atos de dano ao patrimônio das universidades. Ele também chama de “matadouro de bebês” uma clínica ilegal de aborto.

Ao anunciar que aceitou o convite de Aras, Benedito disse que as balizas fundamentais de sua atuação são os “direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança. Artigo 5º da Constituição”.

Cabe à  Secretaria de Direitos Humanos do Ministério Público assessorar o PGR na confecção de peças jurídicas para manifestação em processos no ST

Como a PGR pode interferir em julgamentos do STF

Antes de deixar o cargo, Raquel Dodge propôs uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) no STF contra a Escola sem Partido. A então procuradora-geral pediu a suspensão de atos do poder público que censurem professores por entender que a proposta atenta contra a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. 

A PGR já se manifestou contra propostas de cerceamento da atuação dos docentes em outra ação, que questiona lei do município de Santa Cruz de Monte Castelo (PR). Esse posicionamento do Ministério Público, contudo, poder ser  revisto por Aras, ao longo no trâmite dos processos no STF.

Antes de deixar o cargo, Dodge também se manifestou a favor do uso medicinal da maconha. Em parecer enviado ao STF em uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pelo PPS, que questiona trechos da Lei de Drogas e do Código Penal, a então procuradora-geral disse que houve “omissão inconstitucional” do poder público na implementação das condições necessárias ao acesso ao uso medicinal da Cannabis. A regulamentação do uso está sendo discutida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Tramitam no Supremo também ao menos duas ações que pedem a descriminalização do aborto. Uma para casos até a 12ª semana de gestação e outra para grávidas infectadas pelo vírus da zika, devido ao risco de o feto ter microcefalia.

De acordo com a carta de compromissos da Anajure assinada por Aras, “a instituição familiar deve ser preservada como heterossexual e monogâmica” e “os registros públicos de qualquer ordem e as estruturas físicas dos órgãos e entidades públicas devem ser pautados pelo critério do gênero binário natural (masculino e feminino)”, o que contraria o entendimentos prévios do STF.

O texto também diz que “a vida humana tem início com a concepção e, portanto, o feto humano possui dignidade intrínseca e é titular de Direitos Humanos e Fundamentais, motivo pelo qual o seu direito à vida é inviolável e deve ser defendido em todos os estágios do desenvolvimento humano”, o que inviabiliza o aborto legal. A carta também defender terapias de reversão sexual, conhecidas como “cura gay”.

Em sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado em 25 de setembro, Aras disse que temas como aborto e descriminalização da maconha “não poderiam ser objeto de ativismo judicial”. Ao ser questionado sobre os compromissos com os juristas evangélicos, o procurador-geral disse que não leu todo o conteúdo da carta e que não entende “essa dinâmica intitulada cura gay como algo científico”.

Resistência ao conservadorismo na PGR

Apesar do discurso e das ações de Aras e de Benedito apontarem um alinhamento com as pautas bolsonaristas, o novo chefe do Ministério Público deve encontrar resistência dentro da instituição devido a limitações à troca de cargos.

Até maio de 2020, o procurador-geral não poderá decidir o comando da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC). Já os coordenadores de 6 câmara de coordenação e revisão têm mandatos até junho de 2020.

A PFDC e as câmaras de coordenação orientam a atuação do Ministério Público nos estados, fazem recomendações ao governo e revisam arquivamentos feitos pelo MPF na primeira instância.

À frente da PFDC, a procuradora Deborah Duprat tem contestado iniciativas do governo de Jair Bolsonaro, como a comemoração do golpe militar que instituiu a ditadura em 1964, em 31 de março, decretos que ampliaram a possibilidade de posse e porte de armas e medidas de extinção de conselhos.

Nas câmaras, também há resistência a ideias de Bolsonaro. Coordenadora da  Câmara Criminal, a subprocuradora Luiza Frischeisen é contra a ampliação do excludente de ilicitude para policiais. Ela estava em segundo lugar na lista tríplice votada pelos procuradores e ignorada pelo presidente na indicação do novo procurador-geral. Esse método era adotado desde o governo de Luiz inácio Lula da Silva a fim de garantir a independência do Ministério Público.

Já o coordenador da Câmara de Populações Indígenas, o subprocurador Antônio Carlos Bigonha, defende o cumprimento de decisões judiciais para demarcar terras indígenas e é contra a mineração em terras indígenas. Bolsonaro já afirmou que não serão demarcadas terras indígenas em seu governo e defende a exploração desses territórios para mineração.

A Câmara de Controle da Atividade Policial, por sua vez, emitiu uma nota em que diz que a política de segurança do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, não pode ser considerada “eficiente e compatível com o Estado Democrático de Direito”. A publicação foi feita após a morte de Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, pela polícia. Bolsonaro não se pronunciou sobre o caso, mas também defende essa política de segurança pública.


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