28/03/2024 - Edição 540

Mundo

Não podemos esperar por Haia

Publicado em 03/10/2019 12:00 -

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A imagem de Darren Woods, CEO da Exxon Mobil, pairava sobre a greve climática em Nova York na sexta-feira, 19 de setembro. Feito de papelão, com mais de 4 metros de altura e segurando um saco de dinheiro falso e ensanguentado, o boneco de Woods vestia o rótulo “Vilão do Clima”. Ele se destacou entre a multidão de 250 mil pessoas, acompanhado de versões recortadas do CEO da BP, Bob Dudley, e da Shell, Ben Van Beurden. Quando os bonecos foram baixados em Battery Park, o ponto final do protesto de Nova York, os rostos dos executivos da indústria de combustíveis fósseis haviam sido pintados com chifres de diabo.

Quando milhões de trabalhadores e estudantes encheram as ruas da cidade em todo o mundo na semana passada, não faltaram sinais de protesto ousados e criativos. Embora muitos tenham expressado amplas preocupações sobre o planeta e suas altas temperaturas e um futuro em perigo, vários, como os bonecos do CEO, foram inequívocos em seu antagonismo com a indústria de combustíveis fósseis e seus facilitadores políticos.

Com os riscos do aquecimento global em um nível intolerável e a inegável ausência de poder de acordos climáticos internacionais, não é de admirar que os ativistas estejam pedindo que os principais responsáveis pela dizimação ambiental sejam vistos como culpados por atrocidades em massa no mesmo nível de crimes de guerra e genocídio. O pedido para que o ecocídio – a destruição de ecossistemas, a humanidade e a vida não humana – seja processado pelo Tribunal Penal Internacional encontrou força renovada em um movimento climático cada vez mais sem medo de nomear seus inimigos.

A busca por estabelecer o ecocídio como um crime internacional visa criar responsabilidade criminal para os principais executivos e ministros de governo, enquanto cria um dever legal de cuidar da vida na Terra. Sua força, no entanto, não reside na capacidade prática ou provável de Haia – um órgão judicial profundamente falho – de oferecer justiça climática. A exigência de que o ecocídio seja reconhecido como um crime contra a humanidade e a vida não humana é mais poderosa como heurística: uma estrutura para insistir que a destruição ambiental nomeie culpados e autores de atrocidades em massa contra os quais a luta pelo clima deve ser travada em várias frentes.

Os esforços em torno do reconhecimento do ecocídio, liderados por décadas por advogados e defensores do meio ambiente, como o falecido advogado britânico Polly Higgins, refletem o desejo de ver a degradação ambiental formalmente reconhecida como a mais alta ordem de atrocidade. Da mesma forma, os apelos ao TPI sugerem uma luta compreensível (e quase sisífica) para encontrar uma autoridade, alguma autoridade, capaz de responsabilizar a indústria de combustíveis fósseis e seus parceiros estatais.

“Apesar da existência de muitos acordos internacionais – códigos de conduta, resoluções da ONU, tratados, convenções, protocolos, etc. – os danos estão aumentando. Nenhum desses acordos internacionais proíbe o ecocídio”, lê-se na declaração de missão da Ecological Defense Integrity, uma organização sem fins lucrativos sediada no Reino Unido que visa promover uma lei de ecocídio no TPI. “O poder do crime de ecocídio é que ele cria um dever legal de assistência que responsabiliza as pessoas de ‘responsabilidade superior’ em um tribunal criminal”.

O TPI tem jurisdição sobre quatro categorias de crime, conhecidas coletivamente como Crimes Contra a Paz, que devem constituir “os crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional como um todo”. Atualmente, são os seguintes: crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão (este último, incluído à lista em 2017, abrange estritamente invasões e ocupações militares que violam a Carta das Nações Unidas). Os esforços para que o ecocídio seja reconhecido pelo TPI são duplos: ou que o ecocídio seja incluído sob crimes contra a humanidade ou estabelecido como seu próprio Crime Contra a Paz. A força de dotar o ecocídio de sua própria categoria seria cobrir a dizimação dos ecossistemas, bem como a destruição de populações civis, e assim reconhecer a ameaça existencial das mudanças climáticas à vida na Terra. O ecocídio é um crime contra a humanidade, mas também contra a vida não humana.

Os fundamentos morais são claros para colocar o ecocídio entre os crimes internacionais mais graves. Os últimos alarmantes relatórios do IPCCdeixaram claro que as mudanças climáticas poderiam resultar em centenas de milhões de mortes nas próximas décadas. Um relatório de 2012 encomendado por 20 governos revelou que 400 mil mortes anuais já são atribuíveis a eventos relacionados à mudança climática – estima-se que esse número atinja os 6 milhões anuais até 2030 se não houver mudanças drásticas nos modos globais de produção e na dependência de combustíveis fósseis. E um fato que não sempre deve ser enfatizado: apenas 100 produtores de combustíveis fósseis foram responsáveis por 71% das emissões de gases do efeito estufa nos últimos 30 anos.

Quando se trata das narrativas sobre a degradação ambiental, a maior mentira de todas é que as pessoas não têm responsabilidade alguma. A segunda maior mentira é que todas as pessoas são igualmente responsáveis. No ano passado, a New York Times Magazine publicou uma edição inteira dedicada a um extenso ensaio do romancista Nathaniel Rich. Ele foi enquadrado como uma exposição devastadora e que chegou atrasada sobre como poderíamos ter evitado uma catástrofe climática na década de 1980, considerando o conhecimento científico disponível, mas “nós” não o fizemos. “Todos os fatos eram conhecidos e nada nos impedia”, escreveu Rich. “Nada, exceto nós mesmos.” O texto de Rich convenientemente ignora as ferozes hierarquias capitalistas, que dizimam os recursos naturais para obter lucro enquanto as forças militares e policiais do estado ajudam a anular a resistência ambiental e indígena – basta pensar nos ataques policiais militarizados e em várias acusações criminais enfrentadas pelos Protetores da Água que se posicionaram em Standing Rock.

“É difícil pensar em um problema mais amplamente atribuído a ‘entidades abstratas’ do que o aquecimento global, supostamente o produto de uma sede humana inextinguível e onipresente de coisas novas”, escreveu Kate Aronoff em um recente e convincente ensaio publicado na revista Jacobin, que argumentava a favor de julgar executivos de combustíveis fósseis por crimes contra a humanidade, começando com Rex Tillerson e outros executivos da ExxonMobil, que conscientemente encobriram evidências de devastação das mudanças climáticas e colheram os lucros. “Todos criamos demanda por combustíveis fósseis. Mas a oferta cria a demanda,” escreveu Aronoff, acrescentando que “no caso da crise climática, é a própria indústria que está conduzindo crimes contra a humanidade e os estados são cúmplices ao oferecer de tudo, desde licenças de perfuração e infraestrutura a subsídios generosos – 20 bilhões de dólares por ano apenas nos Estados Unidos.”

Aqueles de nós com emissões de carbono consideráveis (inclusive eu, cliente regular de voos transatlânticos) não escapamos da nossa responsabilidade pessoal simplesmente por nomear e ter como alvo as partes mais culpadas do ecocídio. Nós apenas reconhecemos que nenhuma justiça climática será possível sem derrubar os agentes poderosos no caminho de reduzir as emissões e os modos poluentes de produção de bens. Como afirmou Genevieve Guenther, fundadora e diretora do grupo ativista digital End Climate Silence, “pensar na mudança climática como algo que estamos fazendo, em vez de algo que estamos sendo impedidos de desfazer, perpetua a própria ideologia da economia do combustível fóssil que estamos tentando transformar.”

A ameaça de processo criminal internacional deve, portanto, atuar como um impedimento e uma ameaça aos mais poderosos motivadores do ecocídio, delineando claramente que existem autores nomeados a serem responsabilizados. Se o TPI estaria disposto ou seria capaz de criar material, deter as conseqüências da justiça criminal para executivos de combustíveis fósseis e seus políticos é, no entanto, outra questão.

A ideia de que o ecocídio seja reconhecido como um crime internacional é anterior à formação do próprio TPI. Os primeiros rascunhos do Estatuto de Roma, o documento fundador do TPI, originalmente incluíam uma lei de ecocídio. Nos anos 80, a Comissão de Direito Internacional (ILC na sigla em inglês) das Nações Unidas considerou a inclusão do crime ambiental no Projeto de Código de Crimes Contra a Paz e a Segurança da Humanidade, que mais tarde se tornaria o Estatuto de Roma. Algumas versões do Projeto de Código chegaram ao ponto de afirmar que o crime de ecocídio poderia ser estabelecido sem provar a intenção de um agressor de causar danos ambientais. Um representante da ONU da Áustria declarou em 1993: “Como os autores deste crime geralmente agem com fins lucrativos, a intenção não deve ser uma condição para a responsabilidade de punir”.

No entanto, o artigo referente ao crime de dano ambiental foi retirado do Código final adotado pela ILC em 1996. A inclusão de preocupações ambientais pelo Estatuto de Roma limitou-se a abranger apenas atos intencionais de degradação ambiental perpetrados como crimes de guerra. O ecocídio em tempos de paz, promulgado por empresas e governos, “foi removido completamente e um tanto misteriosamente do Código”, observou um relatório de 2012 do Human Rights Consortium da Universidade de Londres, que detalhava a história da lei do ecocídio.

Seria ir longe demais especular que, se o Estatuto de Roma incluísse um crime separado de ecocídio nas últimas duas décadas, nossa crise climática teria sido evitada. De fato, o TPI mal impediu a proliferação de atrocidades listadas em seu estatuto. O tribunal tem sido criticado por sua ineficiência e por um foco desproporcional nas nações africanas, ao mesmo tempo que confere impunidade a líderes ocidentais poderosos, como o ex-primeiro ministro britânico Tony Blair, por supostos crimes de guerra no Iraque. Os Estados Unidos não são signatários, temendo que soldados americanos possam ser julgados por crimes de guerra; Israel optou pelas mesmas preocupações. Além disso, o ritmo da corte é glacial, enquanto o ritmo em que as geleiras estão derretendo agora é tudo menos isso.

“Eu não esperaria pelo TPI para a execução da lei”, disse a advogada internacionalista de direitos humanos Sarah Kay. “O Tribunal é relativamente jovem e sua jurisdição, limitada. Até agora, ele resistiu a qualquer tentativa de estender sua jurisdição sobre o que já está dentro do escopo do direito penal internacional, portanto, seria impossível esperar que ele adotasse uma nova estrutura criminal.” Ela acrescentou: “existem maneiras possíveis disso acontecer, mas são complexas e estamos em um momento de emergência. Não temos tempo para décadas de debates sobre a elaboração de uma nova convenção. Isso precisa acontecer agora.”

O TPI não é, evidentemente, a única instituição judicial pela qual é possível desafiar os autores de ecocídio. Atualmente, nos EUA, nove cidades têm ações civis em andamento contra empresas de combustíveis fósseis e dois estados lançaram investigações de fraude contra a Exxon especificamente sobre as mudanças climáticas. E como Aronoff também observou, “no processo Juliana vs. EUA, os jovens entraram com uma ação contra o governo por violar seus direitos constitucionais ao adotarem políticas que intensificam o aquecimento global, atingindo os densos laços entre a grande indústria de combustíveis e o estado”. Invocações do direito penal internacional são uma tentativa de aumentar os riscos para os malfeitores mais poderosos. Dadas as limitações do tribunal, é possível que a exigência de que o ecocídio seja reconhecido como um crime contra a humanidade e vidas não humanas seja mais importante do que colocar todas as cartas em uma ação do TPI. A ideia de que a luta pela justiça climática é uma luta contra agentes poderosos que realizaram atrocidades oferece uma estrutura necessária e um princípio norteador para nossas ações climáticas.

“Há situações em que o enquadramento de um inimigo específico não é útil e obscurece mais do que revela – por exemplo, quando a violência sistemática do policiamento é atribuída aos policiais ‘maçã podre’”, disse o cientista político Thea Riofrancos, co-autor do livro a ser lançado “A Planet to Win” [“Um Planeta para Vencer”, sem edição em português]. “Aqui, parece que temos o oposto. As empresas de combustíveis fósseis semearam confusão, e precisamos de clareza para saber quem são nossos oponentes e aliados.” Enquanto advertia sobre a “judicialização da política”, que potencialmente desperdiçava tempo e recursos de ativistas e advogados em processos judiciais, Riofrancos disse ter observado exemplos poderosos de comunidades empregando a linguagem dos direitos legais como uma tática fora dos tribunais e casas do Estado.

Em outro livro futuro, Riofrancos explora o caso de comunidades indígenas no Equador que invocaram direitos legais estabelecidos na progressiva constituição do país em 2008 como uma ferramenta e arma para uso dentro e fora dos tribunais. Esses grupos promulgaram normas legais no Equador por meio de várias estratégias criativas e interpretativas, que “ocorreram em uma ampla variedade de locais, consistindo não apenas, ou mesmo principalmente, de tribunais, mas também de ministérios na capital e nas províncias, estados e centros de informações corporativas nas comunidades afetadas, sedes de organizações de movimentos sociais, manifestações anti-mineração e anti-petróleo, assembleias populares em auditórios reaproveitados e campos de futebol e textos de diversos gêneros.”

Outros terrenos da luta pela justiça social, como o #MeToo, também mostraram os possíveis usos do léxico e da narrativa da justiça criminal, implantados necessariamente fora de um aparato problemático da justiça criminal. Aqueles de nós que acreditam que nenhuma justiça duradoura pode vir de soluções carcerais (dada a violência inerente a esse sistema) veem os riscos intoleráveis de confiar ou reforçar a justiça criminal como um caminho para a justiça social. A força das revelações do #MeToo não reside em sua capacidade de convencer um juiz, mas em criar consenso em torno da necessidade de destituir poderosos autores de violência sexual.

Normas e direitos legais podem e ganham vida política por meio de ação direta, consulta à comunidade e protesto. Mesmo que os signatários do tribunal resistam à adoção do ecocídio como crime ou, como é provável, que o tribunal não processe estes crimes, muito menos convença os piores criminosos climáticos do mundo, podemos e devemos tomar a justiça em nossas próprias mãos. As ações coletivas – como a greve climática em massa da semana passada, votar em líderes que pressionem por um New Deal Verde, lutar por nossas vidas contra o capitalismo – devem ser perseguidas com vigor. É assim que assumimos a luta contra o ecocídio e seus autores.

Este texto faz parte do Covering Climate Now, uma colaboração global de mais de 250 veículos de notícias que visa fortalecer a cobertura da crise climática.


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