29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

A Condenada Perdoada

Publicado em 02/10/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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A policial Amber Guyger chegou exausta em seu prédio na cidade de Dallas, no Texas. Eram quase dez horas da noite quando venceu o lance de escadas e se deparou com a porta do apartamento entreaberta. O instinto de sobrevivência, combinado com o treinamento de oficial da lei, colocaram Guyger em alerta. Tirou o revólver da bolsa e entrou devagar. Um vulto passou em direção à cozinha. Amber disparou, certeira. 

O contador Botham Jean teve um dia cheio em 6 de agosto de 2018. Evangélico fervoroso, dividia o tempo entre o escritório e as atividades da sua comunidade religiosa. Havia menos de um mês, tinha se mudado para um novo endereço, justamente para ficar mais próximo da igreja. Depois do culto, arrastava-se pelo apartamento tentando organizar um jantar, a maior parte dos pertences ainda dentro das caixas da mudança. Um vulto invadiu a sala e o assassinou a sangue frio. 

Poderiam ser duas histórias trágicas de violência, mas não são. A história é uma só. Amber, equivocadamente, errou de andar e acabou entrando na casa do vizinho de baixo, Jean. Um erro trágico que tirou a vida de um membro da comunidade, mas ainda assim uma invasão domiciliar seguida de homicído. Um tipo penal que, no Texas, conduziria à pena de morte.

Acontece que Amber é uma ex-policial, branca, loira, olhos azuis. Botham era negro. E o estado era o Texas. 

A investigação do crime foi um espetáculo à parte, com reviravoltas nauseantes. Mas vamos nos ater a um elemento em particular: a juíza acolheu o argumento da defesa, que citou a Doutrina Castle, um princípio do direito norte-americano que estende a legítima defesa à propriedade. Ou seja, invadiu sua casa, pode atirar. Você está amparado por lei a tirar a vida do invasor, influenciado por excusável medo, surpresa ou violenta emoção, como diria nosso ministro Sérgio Moro. 

Aí você pergunta: "mas a casa não era da vítima?" Bem observado, amigo leitor. Era, sim. Mas a juíza entendeu que a ré "pensou" estar na própria casa quando disparou. Logo, mesmo que equivocada, estava amparada pelo mesmo princípio. 

E aí o bicho pegou: o Texas, que não é muito mais liberal que o MS, tomou o julgamento de Amber como uma contestação à Doutrina Castle. Caso fosse condenada, a ex-policial abriria precedente para que outros fossem condenados por execuções de invasores de domicílio. E a diferença racial entre vítima e ré também não atenuou a polêmica, num estado marcado pela segregação racial e a impunidade violenta de policiais contra a comunidade negra. 

No dia primeiro de outubro, o tribunal do juri considerou Amber culpada. A Juíza, por sua vez, adotou um tom conciliatório. Dez anos de reclusão, nada de pena de morte. Ponto para os defensoers da Doutrina Castle. A comunidade negra ficou revoltada. A comunidade policial branca também. Ninguém ficou satisfeito com um veredicto que não contemplava os extremos. 

Ao final da leitura da sentença, Brandt Jean, irmão mais novo de Botham, pediu à juiza para abraçar Amber e lhe dizer que a perdoava. Tocada pelo gesto, a juiza fez o mesmoe abraçou a ex-policial, dando-lhe uma bíblia de presente para seu tempo da cadeia. O tocante gesto, uma condenada ser tratada com empatia apesar do crime, soou quase como um pedido de desculpas pela condenação. Como se Amber fosse a vítima das circunstâncias, uma espécie de bode expiatório, forçada à pena de reclusão por séculos de desigualdade sistêmica entre texanos negros e brancos.  

Fica aqui a dúvida se o mesmo aconteceria caso os papéis tivessem sido invertidos naquela fatídica noite de seis de agosto. Fica, da mesma forma, a dúvida dos desdobramentos de uma doutrina semelhante à Castle nas atividades das corporações policiais brasileiras.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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