28/03/2024 - Edição 540

Mato Grosso do Sul

Comissão Interamericana emite medidas cautelares e Estado brasileiro deve proteger comunidade Guarani Kaiowá

Publicado em 02/10/2019 12:00 -

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A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu ao Estado brasileiro, no dia 19 de setembro, medidas cautelares para a proteção da comunidade Guarani Kaiowá da Terra Indígena Guyraroka, localizada em Caarapó (MS). A cautelar visa garantir o direito à vida e à integridade pessoal dos membros da comunidade.

Para a Comissão, os relatos e informações apresentados demonstram prima facie, aquilo que pode se constatar de imediato. “As famílias da comunidade Guyraroká do Povo Guarani Kaiowá se encontram em uma situação de gravidade e urgência, posto que seus direitos à vida e à integridade pessoal estão em sério risco”, diz trecho da medida.

Em 9 de maio deste ano, a Comissão lnteramericana recebeu da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá, uma solicitação de medidas cautelares a favor do tekoha – lugar onde se é – Guyraroka. A organização indígena instou a CIDH a requerer que o Estado brasileiro adote as medidas necessárias para proteger seus direitos. 

Segundo a solicitação, os Guarani Kaiowá deste tekoha estão em uma situação de risco após serem objeto de uma série de ameaças, abusos e atos de violência praticados por fazendeiros, funcionários e capangas tendo como pano de fundo um conflito fundiário envolvendo a Terra Indígena.

A Comissão solicitou informações ao Estado brasileiro em 17 de junho. A resposta chegou à Comissão em 24 de julho, com informação adicional acrescida em 3 de setembro. As medidas solicitadas pela CIDH ao Brasil devem ser adotadas em comum acordo com o povo beneficiário e seus representantes. 

Descrita no artigo 25 do Regulamento da CIDH, a medida tem o dever legal de preservar os direitos em risco até que o caso seja resolvido pelo Sistema Interamericano. Em novembro de 2018, representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Antônia Urrejola Nogueira, esteve na TI Guyraroka

A cautelar demanda ainda a garantia cultural adequada para proteger a vida e a integridade pessoal e implementação de ações para garantir as condições de saúde, alimentação e água potável. Solicita também informações sobre as investigações dos fatos tratados na cautelar e que motivaram a medida da CIDH. 

Conforme a cautelar, a CIDH solicita ao governo brasileiro informações a respeito da adoção das medidas acordadas dentro do prazo de 15 dias contados a partir da data da comunicação, além de atualização destas informações de forma periódica. A outorga de medidas e sua adoção não constituem pré-julgamento sobre violação dos direitos protegidos na Convenção Americana.

Argumentos da CIDH

São 110 Guarani Kaiowá que vivem em menos de 50 hectares na Terra Indígena. Em 2009 o Estado brasileiro reconheceu o território como tradicional. Entretanto, tal decisão de reconhecimento teria sido apelada, resultando na reversão da decisão em 2016, “em alegada violação dos direitos do povo indígena”, constata a CIDH.

Tramitam na Justiça Federal dois processos de despejo contra a comunidade de Guyraroká. Ambos podem ser executados ainda este ano. Os Guarani Kaiowá também aguardam os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) julgar a Ação Rescisória (AR) 2686 onde o povo buscar reverter a anulação da demarcação.

Neste contexto de completa insegurança jurídica, os Guarani Kaiowá alegam à CIDH que a comunidade, e principalmente seus líderes, “[…] sofrem diariamente com perseguições e ameaças provindas de portadores de títulos dominiais e pessoas a sua ordem”. Toda ordem de violência foi relatada à Comissão Interamericana.

“Em dezembro de 2018, a comunidade teria notado a presença de drones nas áreas que ocupam, observando que um dos fazendeiros o controlava desde seu carro. Tal evento teria se repetido outras vezes, incluindo filmagens com celulares”, diz trecho da medida cautelar. Tiros sobre os locais de moradias acontecem periodicamente.  

Segundo os Guarani Kaiowá, em 9 de agosto deste ano os membros da comunidade estavam recolhendo as sobras do milho, descartado da fazenda vizinha, quando um dos fazendeiros os ameaçou, passando o carro em cima do milho, destruindo-o. Afirmou que faria com eles o mesmo que “com o milho na peneira”. 

Ataques e ameaças contra lideranças do tekoha também estão na medida cautelar. Caso de Tito Vilhalva. Em 6 de março deste ano, o indígena foi ameaçado com dizeres de que “tem que matar e jogar o corpo em qualquer lugar”. Ameaça que se repetiu com Erileide Domingues em 12 de agosto. 

Ataques químicos

A comunidade afirma para a CIDH estar sendo “ameaçada por meio do uso descuidado e intencional de agrotóxicos, o que buscaria lhes instigar a sair da terra que ocupam e o que afetaria sua saúde”. Conforme vídeos feitos pelos indígenas, o agrotóxico é lançado por aviões e tratores nas plantações, mas também na aldeia.

Os Guarani Kaiowá comprovam que o agrotóxico é lançado a menos de 10 metros da escola enquanto as crianças estariam em aula, o que os faria respirar o agrotóxico vaporizado. Casas e posto de saúde da aldeia também são costumeiramente atingidos. Não havia plantação perto da escola e do posto de saúde, o que mudou em resposta às ações dos indígenas para demandar as terras disputadas.

Garrafas e tambores com os compostos químicos dos agrotóxicos utilizados sobre os Guarani Kaiowá acabam atirados em um rio nas proximidades, “contaminando a fonte de água potável das pessoas propostas beneficiárias, razão pela qual já não encontrariam peixe no rio”, diz trecho da cautelar. 

Estado alega intervencionismo

O Estado argumentou que a pretensão dos Guarani Kaiowá seria revisar as decisões domésticas sobre a determinação do seu território por meio da solicitação de medidas cautelares ante a Comissão lnteramericana. 

Segundo o Estado, tal pretensão, se concretizada, significaria que a CIDH estaria fazendo uma “[…]  revisão do mérito das conclusões alcançadas por autoridades públicas nacionais no adequado exercício de suas competências”.

Alega ainda que diante “da interpretação razoável conferida pela Suprema Corte interna aos dispositivos constitucionais e legais que regem a matéria”, os Guarani Kaiowá pretendem “ver a decisão da Suprema Corte interna ilegitimamente revista por uma instância internacional”.

Sobre dois os processos de reintegração de posse em trâmite, o Estado brasileiro afirmou à CIDH que no caso de um “[…] ainda que se proceda a um possível e eventual deslocamento da comunidade indígena, a questão estaria afeta por ora tão-somente ao limite de terra de interesse do autor [da demanda]”; e no caso do outro “[…] não há decisão para cumprimento imediato que determine eventual deslocamento da comunidade indígena […]”.

No que diz respeito à AR 2686, o Estado informou, sem dizer absolutamente nada, que “um processo iniciado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no Superior Tribunal Federal, o qual pode impactar na determinação das terras tradicionais das comunidades indígenas, e consequentemente na situação da comunidade indicada, pois questionaria a definição jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena”.

Gravidade, urgência e irreparabilidade 

A Comissão lnteramericana e a Corte lnteramericana de Direitos Humanos estabeleceram que medidas cautelares e provisórias têm natureza dupla: uma cautelar e outra tutelar. Quanto à tutelar, as medidas buscam evitar danos irreparáveis e preservar o exercício dos direitos humanos. Já no caso da cautelar, as medidas têm o objetivo de preservar uma situação jurídica enquanto estiver considerada pela CIDH.

O propósito da natureza cautelar é preservar os direitos em risco até que a petição que esteja sob análise no Sistema lnteramericano seja resolvida. O objeto e finalidade são para garantir a integridade e a eficácia da decisão de mérito e, assim, evitar que os direitos reivindicados sejam violados, situação que poderia tornar inócua ou ineficaz (effet utile) a decisão final.

De tal maneira, a Comissão Interamericana lembra que esteve, em novembro de 2018, em visita à Terra Indígena Guyraroká. “Em tal oportunidade, a Comissão observou que “segundo a informação recebida, os direitos dos povos indígenas do país apresentam graves problemas estruturais que requerem atenção urgente”. A gravidade, portanto, é latente e demonstrada a prima facie, aquilo que pode se constatar de imediato.

Essa “atenção urgente”, no entanto, se relaciona aos atrasos e falta de delimitação e demarcação dos territórios indígenas, “situação que é agravada pelo enfraquecimento progressivo institucional da Funai, nos últimos quatro anos. Como resultado, observa-se que um dos principais problemas associados aos povos indígenas são assédio, ameaças e ataques a defensores, líderes e comunidades indígenas que defendem seu território”. 

A respeito do requisito de irreparabilidade, a Comissão considera que se encontra cumprido, já que a possível violação dos direitos à vida e à integridade pessoal, por sua própria natureza, constituem a máxima situação de irreparabilidade.

Na visita realizada ao Mato Grosso do Sul, “a CIDH confirmou a grave situação humanitária enfrentada pelos povos Guarani e Kaiowá, derivada, em grande parte, da violação dos seus direitos do acesso à terra”. Somado a isso, a Comissão tomou nota do alegado aumento da prática do suicídio entre os Guarani Kaiowá.

Na medida cautelar, a CIDH afirma que ouviu dos líderes espirituais Guarani Kaiowá que o suicídio “[…] simboliza a morte após a impossibilidade de uma vida com dignidade física […] e espiritual […]”. Ameaças e ataques a tiros também foram alvo de preocupação da Comissão nas alegações da cautelar. 

“A Comissão toma em conta a seriedade que implicam as alegações em torno do uso de agrotóxicos nas áreas, incluindo as proximidades da escola indígena e suas fontes de água, o que poderia aumentar a sua situação de vulnerabilidade, dado que poderia impactar suas fontes de subsistência”, acrescenta trecho da cautelar. 

Sobre as informações do Estado brasileiro, de forma geral, a Comissão não observa informação sobre medidas implementadas para mitigar a situação de risco alegada pelos indígenas. “Tampouco se identifica informação sobre o avanço das ações de investigação que se teriam iniciado com relação aos supostos fatos alegados”.

“Apesar do Estado ter indicado que somente se afetaria a área ocupada pela comunidade em uma fazenda específica, não se identifica informação que permita desvirtuar o alegado pelos solicitantes, ou informação que indique que se teriam adotado medidas de proteção adequadas e efetivas para atender a situação exposta”, analisa a Comissão Interamericana na cautelar.


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