18/04/2024 - Edição 540

Brasil

Como a mineração devasta as terras dos índios

Publicado em 26/09/2019 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Selvas, montanhas e rios

estão transidos de pasmo

É que avançam terra a dentro,

os homens alucinados.

……

E, atrás deles, filhos, netos,

seguindo os antepassados,

Vêm deixar a sua vida,

caindo nos mesmos laços,

perdidos na mesma sede,

teimosos, desesperados,

por minas de prata e de ouro

curtindo destino ingrato,

emaranhando seus nomes

para a glória e o desbarato,

quando, dos perigos de hoje,

outros nascerem, mais altos.

Que a sede de ouro é sem cura,

e, por ela subjugados,

os homens matam e morrem,

ficam mortos, mas não fartos.

……

(Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência)

Os versos de Cecília Meireles são alusivos ao ciclo do ouro que marcou o período colonial, em meados do século XVIII em Minas Gerais. Mais de duzentos anos depois, o Brasil é palco de um novo ciclo; desde 1980, com a corrida à Serra Pelada, estamos assistindo ao crescimento da atividade garimpeira, com mais de vinte províncias de ouro, cassiterita e pedras preciosas em exploração. O novo Eldorado já não é Minas Gerais, é toda a Amazônia. Empresários, donos de garimpos, atravessadores, contrabandistas, arrivistas endinheirados e políticos oportunistas compõem a cruzada invasora. Na retaguarda, milhares de homens desfigurados, tangidos pela fome e o desemprego, expulsos da terra, induzidos à única alternativa de trabalho e de vida que lhes resta: a ilusão, a sorte e o logro, num empreendimento profundamente excludente, onde apenas algumas centenas de indivíduos são beneficiados.

Triste ironia da democracia brasileira: o destino dos povos indígenas e de suas terras está mais ameaçado agora do que nos tempos da ditadura. De um lado, as empresas de mineração tentam ganhar no papel a legalização das áreas de pesquisa e lavra como condição de segurança para seus investimentos de capital. De outro, os empresários de garimpo fomentam invasões e intrusões de garimpeiros em várias áreas indígenas, buscando por meio do fato consumado antecipar-se às empresas.

Entre os dois tipos de invasores estão os índios, acossados e desinformados, sujeitos a manobras de cooptação e forçados a negociar em condições extremamente desiguais. Em 1986, um levantamento efetuado por geólogos e antropólogos do grupo de estudos CEDI-Conage revelou que 506 autorizações e 1685 pedidos de pesquisa mineral foram ilegalmente concedidos a 69 grupos econômicos, incidindo parcial ou totalmente sobre 77 áreas indígenas na Amazônia.

A partir de 1985, durante o governo Sarney, acentuou-se a investida pela mineração em terras indígenas, atuando em diversas frentes: campanhas de opinião pública, especialmente em Roraima e no Amazonas; pressão política no Congresso Nacional; mobilização do empresariado e ação de cúpula junto ao governo federal. O alvo são as terras dos índios Yanomami em Roraima, onde há ouro e jazimentos de cassiterita (minério de estanho) na Serra de Surucucus. José Altino Machado, empresário de garimpo, é um dos líderes. Em fevereiro de 1985 ele comandou uma invasão armada a Surucucus; uma semana depois a FUNAI, junto com a ajuda da Polícia Militar e da Polícia Federal, retirou os invasores. Em 1987 houve nova invasão, José Altino à frente, chegando a 40 mil o número de garimpeiros na mineração de ouro nos rios e igarapés. A presença dos invasores alterou profundamente a vida dos índios; a garimpagem poluiu os principais rios; a floresta foi devastada, dando lugar aos garimpos e a mais de 100 pistas de pouso, afugentando a caça. A introdução de alimentos industrializados desorganizou as roças tradicionais das comunidades mais afetadas, provocando a fome e criando relações de dependência; além da desnutrição, os índios foram afetados por epidemias de malária e de outras doenças trazidas pelos invasores. “Selvas, montanhas e rios / estão transidos de pasmo.”

Agora, agosto de 2019, graças aos modernos meios de comunicação, a população tomou conhecimento da mais recente invasão. Cada um pode avaliar a extensão da tragédia.

Os efeitos mais imediatos e desastrosos da exploração descontrolada do ouro ocorrem sobre o sistema hídrico: a remoção do solo à beira dos cursos d’água modifica as várzeas e provoca o assoreamento e poluição física das águas, comprometendo, inclusive, o abastecimento público. Em certos rios, como o Madeira, as dragas operam diretamente sobre o seu leito, retirando-lhe os sedimentos de fundo.

Todavia, o perigo maior para as populações e para o ecossistema reside no intensivo uso de mercúrio na extração do ouro. O processo se inicia com uma pré-concentração por meios gravimétrico. O material pré-concentrado é misturado com mercúrio, ocorrendo amalgamação com as partículas de ouro. Este amálgama é então aquecido com tochas de gás propano, liberando vapor de mercúrio diretamente na atmosfera; o excesso, na forma de mercúrio metálico, é lançado nos cursos d’água, indo se depositar nos sedimentos de fundo.

A produção de ouro com a utilização de mercúrio engendra, dessa maneira, três vetores que podem afetar a saúde pública: a) a contaminação com mercúrio vapor, diretamente sobre os trabalhadores do garimpo, durante a fase de amalgamação e queima; b) a poluição das águas e sedimentos, com a possibilidade de metilação do mercúrio e sua absorção pelos peixes, afetando a cadeia alimentar da população local; c) a contaminação com mercúrio vapor nos numerosos pontos de comercialização do ouro, onde, mais uma vez, ele é queimado. Esses efeitos maléficos ocorrem de forma generalizada em todos os cursos d’água onde é praticada a garimpagem na Amazônia.

A Constituição de 1988 estabelece que a exploração mineral em terras indígenas será submetida, caso a caso, à decisão do Congresso. Todavia, decorridos trinta anos, ainda não foram definidas, em legislação ordinária, as condições específicas em que essa exploração possa ocorrer. É nesse vazio legislativo que se intensifica o clima de faroeste na Amazônia.

Melissa Curi[1], geóloga e antropóloga, fez em 2007 um competente estudo dos aspectos legais da questão, iniciando com a seguinte abertura: “A regulamentação da mineração e do potencial energético em terras indígenas, o processo demarcatório, bem como as inúmeras ocupações ilegais de madeireiros, garimpeiros, agricultores etc., compõem os capítulos atuais e contínuos da história do contato desrespeitoso entre sociedade envolvente e os povos indígenas”. A partir daí, lista e descreve os principais requisitos necessários à aprovação do Congresso: a) consulta às comunidades indígenas afetadas; b) participação da comunidade nos resultados da lavra; c) obrigatoriedade de estudo de impacto ambiental; d) necessidade de laudo antropológico; e) necessidade de licitação para exploração mineral; f) garantia de recuperação de área degradada.

Existem na Câmara Federal vários projetos de lei específica versando sobre a mineração em terras indígenas, todos eles discutidos em diferentes legislaturas, sem lograr aprovação. Ao lado deles, existe uma proposta mais ampla – o Estatuto dos Povos Indígenas , de 2009, da Comissão Nacional de Política Indigenista[2], que abriga no seu título VI – Do aproveitamento dos recursos minerais e hídricos – os citados requisitos.

Considerando que essa nova versão do Estatuto trata de uma ampla e atualizada base jurídica de convivência do Estado com as sociedades indígenas; que o texto resultou de reuniões regionais de consulta e consenso, parece-nos mais lógico e producente pautar no Congresso a discussão deste documento. Naturalmente, teria de haver consulta prévia às entidades indigenistas. Se esse encaminhamento prevalecer, será um passo histórico do Congresso Nacional.

Gerôncio Rocha – Geólogo, funcionário aposentado do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo, foi assessor do Comitê da Bacia Hidro e é autor de Um copo d´água (Editora Unisinos, 2002)


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *