20/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Quem se sente impune para destruir a Amazônia se sente livre para intimidar e matar

Publicado em 23/09/2019 12:00 -

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César Muñoz percorreu durante dois anos diversas áreas de floresta da região da Amazônia. Pesquisador sênior para o Brasil na Divisão das Américas da Human Rights Watch, Muñoz é o responsável pelo relatório Máfias do Ipê: Como a Violência e a Impunidade Impulsionam o Desmatamento na Amazônia Brasileira.

Divulgado pela organização internacional no último dia 17, o estudo comprova: a destruição da Amazônia brasileira é impulsionada por redes criminosas contratadas por quem faz extração ilegal de madeira na floresta.

Foram cerca de 180 entrevistas com autoridades locais e de Brasília, de órgãos de defesa do meio ambiente, indígenas, moradores dos estados do Maranhão, Pará e Rondônia, pequenos agricultores, defensores da floresta ameaçados de morte, familiares de parte dos mais de 300 assassinados na última década.

“Eu fiz toda pesquisa e em algum momento tive apoio de outras pessoas. Temos um sistema interno muito forte de revisão dos resultados. Especialistas em meio ambiente que vão ajudar nessa parte, em mulheres, da Biblioteca Nacional”, explica.

A conclusão é grave. “A questão da violência na Amazônia, relacionada à extração ilegal de madeira e outros crimes, é um problema crônico do Brasil, não começou com o governo Bolsonaro, mas estamos vendo que a situação piorou com o governo Bolsonaro”, afirma Muñhoz.

“E por que piorou? Porque quando você enfraquece os órgãos de controle, os órgãos ambientais, reduz o orçamento, reduz o número de buscas, de operações, elimina a autonomia dos fiscais para atuar, deixando-os com receio, com medo de serem punidos, quando faz tudo isso é uma festa para os grupos criminosos que estão desmatando a Amazônia. Essas redes que estão destruindo a Amazônia elas são violentas. Então, quando se sentem livres para desmatar, elas se sentem livres para intimidar, para ameaçar e até para matar.”

César Muñoz é jornalista e trabalhou para a EFE, a maior agência de notícias de língua espanhola no mundo, como correspondente em Washington e depois à frente dos escritórios no Equador, no Paraguai e no Brasil. Também atuou na CNN, Europa Press TV, e outros meios de comunicação nos Estados Unidos e na Espanha, seu país de origem.

“Nós esperamos que nossa pesquisa possa ajudar no debate público. Queremos que seja nossa contribuição e esperamos que as autoridades leiam realmente e percebam a gravidade da situação. E que tomem medidas para resolvê-la”, disse.

 

Como o governo pode ver um relatório como esse, feito por um organismo internacional? E o que vocês pensam sobre a questão da soberania?

Eu não sei como eles vão reagir. O que posso dizer é que nosso relatório é baseado em entrevistas com brasileiros que estão relatando a situação de insegurança, de impunidade na Amazônia, principalmente provocada por redes criminosas que são compostas por brasileiros.

Nós achamos que é um problema crônico do país, que piorou com o governo atual e que tem de ter uma resposta. Não se pode simplesmente deixar esses grupos criminosos, que são extremamente perigosos agirem sem nenhum controle, sem freio.

Esperamos que nossa pesquisa, que é baseada em entrevistas, no terreno, fizemos 180 entrevistas durante dois anos, possa ajudar no debate público.

Queremos que seja nossa contribuição e esperamos que as autoridades leiam realmente e percebam a gravidade da situação. E que tomem medidas para resolvê-la.

O governo brasileiro afirma que a Amazônia é um problema do Brasil. Diante de todas essas informações constantes desse relatório, como a Human vê a questão de uma interferência internacional em relação à Amazônia?

Sem dúvida a Amazônia é do Brasil. Não tem nenhum questionamento sobre a soberania sobre a Amazônia. A Amazônia é do Brasil. E é dos brasileiros. Por isso, que quando você vê a destruição que está acontecendo, o desmatamento, as queimadas, o que está sendo destruído é o patrimônio dos brasileiros.

Então, se você usar o discurso da soberania, mas você agir, você atuar contra as redes criminosas e fortalecer com recursos as agências, como o Ibama, o ICMBio, perfeito. Esse é o ideal, isso que tem de acontecer. Então, o discurso da soberania é perfeito, mas deve vir acompanhado de ações concretas para combater esses grupos criminosos.

Vocês encontraram alguma dificuldade para fazer as investigações, o relatório, as entrevistas?

Sim. Uma das dificuldades de fazer uma pesquisa como a nossa é que ninguém tem, ninguém acompanha no governo os casos de violência e ameaças das zonas com madeireiros, com destruição da Amazônia. Não tem. Você pode perguntar e ninguém vai ter esses dados porque não tem acompanhamento. E esse é um dos grandes problemas.

Porque estamos falando de um problema crônico do Brasil e para você resolver qualquer problema precisa ter os dados e uma análise da situação. E esses dados não existem. O mais parecido que existe é o trabalho, extraordinário na verdade, da Comissão Pastoral da Terra, que é um organismo vinculado à igreja católica, que tem representantes nos estados. Eles que fazem esse acompanhamento das vítimas que eles conhecem, dos assentamentos etc. E depois publicam os dados.

Esses dados mostram mais de 300 mortes na última década, por conflitos de terra, sobre recursos naturais. Então, o grande desafio é procurar os dados desses casos, porque não é só contar os casos. Você tem de saber se houve uma investigação ou não houve. Qual foi a qualidade da investigação. Se não houve denúncia, por que não houve? Esse foi o desafio para nós e que tentamos fazer. Para isso, viajamos por várias regiões da Amazônia indo a pequenas cidades onde aconteceram os crimes para falar com a polícia, com o Ministério Público, com testemunhas, com a família para saber o que aconteceu.

Ao longo do relatório são mencionadas muitas vezes as “autoridades” que recebem as denúncias dos guardiões da floresta. Elas são confiáveis? Quem são essas “autoridades”?

Depende do lugar. As comunidades indígenas denunciam para o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, o que é mais adequado, porque as autoridades federais têm responsabilidade quando, por exemplo, são crimes contra os indígenas quando eles estão na defesa da terra deles, ou da floresta. É competência das autoridades federais, como um crime ambiental dentro das terras indígenas também é competência federal.

Em outros lugares, como assentamentos do Incra ou outras comunidades, eles denunciam para as autoridades estaduais e às vezes às federais também. Na floresta muitas vezes desconfiam da polícia local. E eles desconfiam porque sabem que essa polícia ou está conivente com os crimes ou participa de alguma forma. Obviamente não é que toda a polícia é assim. Mas tem essa suspeita em alguns casos e não é só eles. Entrevistei uma pessoa da Funai, de um alto nível, que recebeu uma ameaça de um madeireiro e ela não foi denunciar porque não confiava na polícia. Isso acontece.

O Ministério Público reconhece que tem essa possibilidade. Por exemplo, tem investigações no Pará onde nós descobrimos que algumas delegacias da polícia não registram ameaças de madeireiros contra defensores da floresta. Por que não registram ameaça? Isso é comprovado. Eu falei com pessoas que foram lá registrar o BO e o escrivão se negou a fazer. E falei com promotores que foram lá junto com o defensor para dizer: você tem que fazer.

Durante a pesquisa, em algum momento sentiu-se ameaçado?

Eu não me senti. E alguns lugares que eu visitei que são perigosos, mas eu não senti, Eu viajo sozinho, não somos uma equipe muito grande, que chame atenção. E tomamos medidas de segurança. Tem lugares que a gente não vai, por segurança. Às vezes, o que fazemos é encontrar com testemunhas em outros lugares, não onde elas estão morando.

Como você vê o papel da imprensa brasileira na cobertura dessa situação agrária no Brasil?

Acho que o Brasil é um país que tem um bom jornalismo. Nada é perfeito na vida. Sou espanhol, morei em vários países da América Latina e acho que o jornalismo no Brasil é melhor do que nesses países, porque tem mais independência, os jornalistas sentem mais vontade de ir além do que as autoridades estão falando e realmente comprovar se é verdade, se está acontecendo ou não.

Sobre a cobertura do desmatamento, das queimadas, acho que o que ficou um pouco de fora foi a violência. E é o que esse relatório tenta fazer. Porque quando você vê que a Amazônia está sendo destruída, obviamente todo mundo fica triste com isso, em qualquer lugar. Mas é que tem uma dimensão ainda além, que são as pessoas que moram lá.

A Floresta Amazônica não é vazia, tem moradores que são como os indígenas, agricultores. E quando se vê os grupos criminosos destruindo a floresta, ateando fogo, parte das atividades deles é a intimidação, ameaça, os ataques. É parte da mesma dinâmica. Essa parte da violência acho que não foi muito explorada pela mídia, mas talvez também porque os especialistas falam pouco disso. Nossa contribuição é que tentamos trazer esse outro lado.

A postura do governo atual, com a liberação do uso de armas, a relativização da importância da Amazônia, tudo isso contribui para agravar a situação?

A questão da violência na Amazônia, relacionada à extração ilegal de madeira e outros crimes, é um problema crônico do Brasil, não começou com o governo Bolsonaro, mas estamos vendo que a situação piorou com o governo Bolsonaro.

E por que piorou? Porque quando você enfraquece os órgãos de controle, os órgãos ambientais, reduz o orçamento, reduz o número de buscas, de operações, elimina a autonomia dos fiscais para atuar, deixando-os com receio, com medo de serem punidos, quando faz tudo isso é uma festa para os grupos criminosos que estão desmatando a Amazônia.

Essas redes que estão destruindo a Amazônia elas são violentas. Então, quando se sentem livres para desmatar, elas se sentem livres para intimidar, para ameaçar e até para matar.


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