28/03/2024 - Edição 540

Poder

O que já se sabe sobre o discurso de Bolsonaro na ONU

Publicado em 20/09/2019 12:00 -

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A poucos dias de estrear na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York, Jair Bolsonaro disse que já começou a “rascunhar” seu discurso. Sua postura diante dos demais 192 chefes de estado (ou representantes) no próximo 24 de setembro é, porém, uma incógnita. Com a promessa de uma fala “diferente” dos antecessores — “conciliatória”, mas que também “vai reafirmar a questão da soberania” —, há no Planalto um clima de temor de novas crises diplomáticas. 

“Como será o tom do discurso, ao certo, ninguém sabe. Acredita-se em algo mais moderado após toda a repercussão negativa dos últimos tempos. Porém, é tudo muito imprevisível”, disse um palaciano. 

“Imprevisível”, afirmam interlocutores, é o “temperamento” do presidente. “Se ele notar que alguns chefes de Estado não estão presentes [para seu discurso], ou que alguns, porventura, se levantaram… Ninguém sabe ao certo o que pode acontecer… Ele pode largar o discurso escrito no meio [parar de ler] e começar a improvisar. Isso pode ser uma catástrofe total”, avaliou um integrante da comitiva presidencial à reportagem. 

Em entrevista veiculada na TV Record na segunda (16), Bolsonaro deixou clara sua intenção: “Já comecei a rascunhar o discurso, um discurso diferente dos que me antecederam. É conciliatório, sim, mas vai reafirmar a questão da nossa soberania e do potencial que o Brasil tem para o mundo, coisa que poucos ou quase nenhum presidente teve na ONU”.

Os maiores discursos que fez até hoje, porém, foram elaborados pelo assessor internacional da Presidência da República, Filipe Martins. Foi ele quem escreveu as páginas lidas em cerca de 10 minutos por Bolsonaro na posse e também a fala relâmpago de 6 minutos do mandatário em Davos, em 25 de janeiro, no Fórum Econômico Mundial — havia, na ocasião, 45 minutos reservados para o discurso e uma rodada de perguntas. 

Atenção especial para a ONU

Com os olhos do mundo sobre o Brasil, especialmente após os incêndios na Amazônia, toda oportunidade tem sido usada para tratar da ocasião. Em viagem oficial a Washington semana passada, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, esteve com Steve Bannon, o ex-estrategista do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. 

De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, o encontro ocorreu na última quarta, dia 11 de setembro, em um jantar oferecido na embaixada brasileira nos EUA. Também participou o encarregado de Negócios, Nestor Foster.

A relação de Bannon com a família Bolsonaro teve início no ano passado, quando o filho do presidente que almeja a vaga de embaixador em Washington, Eduardo, reuniu-se com o ex-estrategista e Trump – ele foi demitido da Casa Branca em 2017. 

Bannon liderou a campanha de Trump à Presidência dos EUA em 2016 com uma retórica anti-imigração e de escárnio às minorias. Bannon usou esse tom no site de direita Breitbart desde 2012. Um tom semelhante foi adotado por Jair Bolsonaro em sua campanha. 

Ponto central do discurso na ONU

Independentemente de a quantas mãos as linhas que Bolsonaro deve ler forem escritas, Amazônia é um tema que estará, com certeza, entre elas.

Para o ex-ministro do Meio Ambiente Rubens Ricupero porém, o presidente não tem credibilidade para levar sua política ambiental para a Assembleia da ONU.

“Vamos ver nos próximos dias, na assembleia, a intensificação da retórica do governo invocar a soberania, única defesa que encontram nessa situação indefensável. Ele não tem credibilidade de dizer que se interessa, se embrulhar na bandeira como sempre faz. Como diz Samuel Johnson, ‘o último refúgio do canalha é o patriotismo’. A verdade é que em 99,99% dos casos documentados, atentados contra a Amazônia, os atores sempre foram brasileiros. Essa ameaça do mundo exterior é, em grande parte, uma paranoia que infelizmente tem raízes profundas entre militares, sobretudo no Exército, que cultivam isso. E vai ser invocado mais uma vez.”, disparou o diplomata que chefiou os ministérios do Meio Ambiente e da Fazenda durante o governo Itamar Franco.

Ricupero ressalta que a Amazônia inclui oito países e, segundo ele, há pouquíssimos relatos na História que demostram interesse internacional no setor. “Ao contrário do que se costuma dizer, a pressão internacional não é só necessária como indispensável. Quanto mais forte, melhor.”

Ele, no entanto, criciou o presidente da França, Emmanuel Macron, pelas declarações sobre Amazônia. “As declarações do presidente [Emannuel] Macron foram infelizes, questionando a soberania, porque quanto a isso ninguém vai discutir. Mas soberania significa responsabilidade e não irresponsabilidade.”

Ainda de acordo com o ex-ministro, o grande setor que pode influenciar mudanças nas políticas ambientais do governo é o agronegócio. “Se eles se convencerem que, de fato correm risco, eles se mexerão”, completou Ricupero. 

Causador de polêmicas internacionais

Em sua última entrevista coletiva como presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, a diplomata equatoriana María Fernanda Espinosa aconselhou aos chefes de estado estreantes uma “atitude construtiva”. “Esta é a casa do diálogo. Esta é a casa da concordância. Esta é uma casa para se conversar. Esta é uma casa onde nos reunimos e fazemos acordos sobre coisas que faremos para melhorar o mundo. Então, eu diria que, quem quer que venha, tem que ter uma atitude construtiva. Com uma atitude que compreenda que todos fazemos parte da comunidade global e que todos pertencemos à mesma espécie, a espécie humana”, afirmou, de acordo com a BBC.

A 74ª reunião que será aberta com o discurso do presidente Jair Bolsonaro será chefiada pelo nigeriano Tijjani Muhammad-Bande. 

Desde agosto, Bolsonaro protagonizou várias frentes de crises a partir de suas falas, sejam pessoalmente, ou via redes sociais. 

Em meio às polêmicas sobre a política ambiental do governo, o presidente mirou a chanceler alemã, Angela Merkel, e a Noruega. Ambos os países suspenderam suas contribuições para o combate ao desmatamento da Amazônia após a divulgação de dados que mostraram a elevação do percentual de desmate – aos quais Jair Bolsonaro criticou e chamou de mentirosos.  

Seguiram-se as trocas de farpas e acusações com o presidente francês, Emannuel Macron, sobre as queimadas que tomaram a Amazônia. Em meio a essa guerra, o mandatário brasileiro endossou um comentário de um internauta que zombava da primeira-dama da França, Brigitte Macron, por ser 24 anos mais velha que o marido. O comentário de Jair Bolsonaro repercutiu na imprensa internacional. Nos jornais franceses, foi chamado de sexista.

Houve ainda os ataques feitos à alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Após ela afirmar que o espaço democrático está encolhendo no Brasil, o mandatário investiu contra o pai dela, Alberto Bachelet, torturado e morto pela ditadura militar de Augusto Pinochet.

Vergonha mundial

Caso o presidente seja sincero sobre o que pensa de meio ambiente, floresta amazônica, proteção de indígenas e quilombolas, direitos da população LGBTQ+, trabalho infantil e trabalho escravo, desenvolvimento sustentável, respeito a migrantes estrangeiros pobres e refugiados, equidade de gênero, corrupção, nepotismo, liberdade de imprensa, direitos humanos, civilidade, enfim, a vida, deve causar surpresa e espanto mesmo a diplomatas acostumados com o diferente e o bizarro.

Se assim for, nossos produtos vão perder mercado e nossas empresas, investidores.

Por isso, ele deve tentar mostrar que sua administração vem protegendo os biomas brasileiros (sic), mantendo a dignidade aos povos e trabalhadores (sic), abraçando as liberdades e proteções previstas em acordos e tratados ratificados pelo país (sic) e garantindo que todos os produtos e empreendimentos brasileiros tenham qualidade social e ambiental (sic).

A diplomacia pode ser hipócrita, mas não rasga dinheiro. Pelo menos, em tese. Se ela prevalecer, será engraçado ver um "Bolsonaro para Exportação", diferente daquela figura que vem marcando sua presidência entre declarações sobre cocôs e publicações de golden showers.

Na primeira oportunidade de falar como presidente em um evento internacional, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em janeiro, Bolsonaro disse muito pouco. Mas o suficiente para passar vergonha. Em um discurso genérico e vazio de menos de 15 minutos — quando dispunha, pelos organizadores de 45 — Bolsonaro, ao invés de transmitir os planos, dados e metas que os Chefes de Estado costumam apresentar em Davos, convidou os presentes a irem fazer turismo no Brasil e apresentou um par de informações falsas. Conforme analistas presentes, incluindo o Prêmio Nobel de Economia Robert Schiller e a jornalista chefe do Washington Post, Heather Long, o discurso foi um grande fracasso, e deixou o presidente brasileiro carimbado como alguém medíocre.

O presidente sente-se mais à vontade nos ambientes amigáveis, como nas visitas aos governos israelense e norte-americano. Tão à vontade que chega também a passar vergonha junto à sociedade e a mídia locais. Em abril, após visitar o Memorial do Holocausto, afirmou que o nazismo foi um movimento de esquerda. Em março, ao lado de Donald Trump, disse que ambos os países estão irmanados na luta contra a "ideologia de gênero", o "politicamente correto" e as "fake news". Foi criticado até pela conservadora Fox News.

Por dever de ofício, acompanho a Assembleia Geral das Nações Unidas, in loco, há anos. Ao Brasil, cabe, historicamente, o discurso de abertura. Como, na sequência, fala o presidente dos Estados Unidos, os olhos de todos os governos e da imprensa estarão voltados para aquele púlpito.

Seria, portanto, um momento didático: Mundo, isto é Bolsonaro. Bolsonaro, este é o mundo.

Não acho que o mundo vai se retirar do plenário da Assembleia Geral. Michel Temer passou por isso por governos contrariados por aquilo que, hoje, ele mesmo chama de "golpe". Mas o mundo pode fazer cara de reprovação, balançar negativamente a cabeça, dar risada irônica e fazer beicinho enquanto ele estiver lendo o discurso no púlpito. Uma coisa é você receber isso da oposição em seu país, a outra é a humilhação de sentir isso de forma global.

Costuma-se dizer que governantes não fazem discursos para os outros países na Assembleia Geral, mas para o seu próprio, quase como uma autopromoção. Contudo, depois de uma crise internacional por conta do fogo na Amazônia e de respostas agressivas do governo brasileiro, o mundo está curioso com o pronunciamento de Mr. Bolsonaro. Pelo que verifiquei, fundos de investimento bilionários com preocupação socioambiental que contam com dinheiro no Brasil também.

E não é preciso ter uma Abin grampeando ligações ou invadindo celulares para saber que o mundo faz manifestação. Basta, para isso, dar um Google e ver as movimentações da sociedade civil organizada brasileira e internacional se preparando para acolher o presidente com carinho.

Quando foi anunciado que Jair Bolsonaro seria homenageado como a "Personalidade do Ano" pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, com cerimônia em Nova York, as empresas e instituições apoiadoras e patrocinadoras do evento passaram a ser alvos de críticas, reclamações e protestos. No dia 3 de maio, o presidente informou que, diante dos ataques, não iria mais receber seu prêmio na cidade.

O Museu de História Natural, que hospedaria inicialmente o evento, voltou atrás, devido às suas posições sobre o meio ambiente, o desenvolvimento sustentável e as mudanças climáticas – que vão contramão daquilo que é defendido pela instituição. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, do Partido Democrata, disse que Bolsonaro não era bem-vindo, chamando-o de "um homem perigoso", racista e homofóbico e elogiando a decisão do museu. Deputados e congressistas norte-americanos passaram a criticar tanto o hotel Marriott Marquis, substituto escolhido para receber o jantar de gala, quanto as empresas patrocinadoras. Na pauta de reclamações, estavam as históricas declarações homolesbotransfóbicas, machistas, racistas e preconceituosas de Bolsonaro. A Delta Airlines, a Bain & Company e o Financial Times tomaram o mesmo rumo do Museu de História Natural e caíram fora.

Se não tivesse desistido, saberia que o mundo produz cartazes como "Bolsonaro, o carrasco da Amazônia" ou "Bolsonaro é homofóbico" e vai fazer questão de mostrá-los.

Não é incomum governantes mentirem para o mundo naquele púlpito às margens do East River. Talvez ele opte por um discurso que fale, fale, fale, mas não diga nada. Tudo em nome do comércio e de investimentos, que receberam uma pancada com as queimadas na Amazônia.

Uma coisa é discordar do que ele dirá, a outra é torcer para que ele não diga nenhuma bobagem. De qualquer maneira, é triste que uma parte significativa dos brasileiros esteja com medo do seu presidente causar vergonha ao país frente às outras nações. Isso é algo que ele não tinha o direito de nos causar.


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