29/03/2024 - Edição 540

Poder

A controversa lei que permite inflar Fundo Eleitoral e afrouxa controle sobre partidos

Publicado em 20/09/2019 12:00 -

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O Congresso Nacional concluiu na última quinta-feira (19) a votação de projeto de lei que permitirá o aumento do valor destinado aos partidos políticos nas eleições de 2020 e, ao mesmo tempo, diminuirá o controle sobre a forma como os partidos usam o dinheiro público.

O projeto muda quase 50 artigos da Lei das Eleições (de 1997), da Lei dos Partidos Políticos (de 1995) e de outras. De tão extenso, foi apelidado no Congresso de "minirreforma eleitoral". O texto segue agora para sanção (ou veto) do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL). Para que as novas regras possam valer nas eleições municipais de 2020, Bolsonaro precisa sancionar o texto até o dia 4 de outubro.

Na noite de terça-feira (17), os senadores aprovaram uma versão "enxuta" do texto, suprimindo todos os demais pontos e mantendo apenas o dinheiro para as eleições – por meio do Fundo Especial de Financiamento das Eleições (FEFC).

Mas, na noite seguinte, a votação no plenário da Câmara dos Deputados trouxe de volta a maior parte dos pontos excluídos no Senado, com exceção de quatro artigos considerados polêmicos. Ficou de fora, por exemplo, o trecho que permitia aos partidos usar qualquer sistema de contabilidade para prestar contas à Justiça Eleitoral – inviabilizando, na prática, a fiscalização feita pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre as contas dos partidos.

As mudanças que continuam no texto vão desde as regras para a compra de passagens aéreas até a fiscalização das atividades financeiras dos partidos por parte dos bancos. O texto permite ainda vários usos novos para o dinheiro público do Fundo Partidário – inclusive comprar imóveis e impulsionar publicações em mecanismos de busca, como o Google. A "minirreforma" também recriou a propaganda partidária na TV e no Rádio – ao contrário da propaganda eleitoral, ela vai ao ar todos os anos, e não apenas nas eleições.

Outro aspecto fundamental da nova lei é a possibilidade do Orçamento de 2020 trazer um valor maior para o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), conhecido como Fundo Eleitoral. O FEFC é o dinheiro que os partidos políticos recebem, em anos de eleições, para financiar as campanhas de seus candidatos.

O montante final do Fundo Eleitoral para a disputa de 2020 ainda está indefinido: o governo de Jair Bolsonaro (PSL) enviou o valor de R$ 2,5 bilhões no projeto do Orçamento de 2020 – bem mais que o valor de R$ 1,7 bilhão de 2018. Alertado pela bancada do partido Novo, o governo admitiu depois que havia um erro de cálculo – e disse que alteraria o valor para R$ 1,8 bilhão, mas isto ainda não aconteceu. Alguns deputados, no entanto, querem subir a cifra no Orçamento para até R$ 3,7 bilhões.

"Mesmo que o Orçamento traga um valor maior, os partidos não poderão usar o dinheiro se o Congresso (não tivesse aprovado) o projeto. Uma das coisas que esse projeto faz é eliminar um limite da Lei das Eleições para permitir o uso do dinheiro", explica a advogada eleitoral Marilda Silveira, professora da pós-graduação na Escola de Direito do Brasil (EDB). O limite a ser suprimido é que está no artigo 16-C da Lei das Eleições, detalha ela.

A versão original do projeto foi apresentado em novembro de 2018 pelos deputados Arthur Lira (atual líder do PP, AL); Baleia Rossi (líder do MDB, SP); Domingos Neto (PSD-CE) e Lucas Vergílio (SD-GO). De início, tratava apenas da relação trabalhista entre os partidos e seus funcionários. A forma atual foi dada pelo relator na Câmara, o deputado Wilson Santiago (PTB-GO). O texto foi aprovado pela primeira vez pelos deputados por 263 votos a 144, no dia 4 de setembro deste ano.

Na noite de quarta, o texto principal do projeto foi aprovado por 252 votos a 150. PP, MDB, PT, PL, PSD PSB, PRB, DEM, PDT, Solidariedade, PSC e PC do B orientaram seus deputados a votarem a favor.

Já PSL, PSDB, Podemos, PSOL, Cidadania, Novo, PV, PMN e Rede ficaram contra.

Agora, um grupo de entidades que militam pela transparência das contas públicas fará uma carta ao presidente Bolsonaro pedindo a ele que vete pontos do texto aprovado pelo Congresso.

Segundo Gil Castello Branco, fundador da Ong Contas Abertas, o texto continua prejudicial à transparência no uso do dinheiro público. "No fundo (a proposta) é fruto da falta de visão dos partidos. O que eles enxergam é que estariam tendo um benefício a curto prazo nas eleições de 2022. Mas não percebem que, dessa forma, ampliam ainda mais o fosso entre eles e a sociedade", diz. A Contas Abertas é uma das entidades signatárias da carta a Bolsonaro.

Segundo Gil, o principal problema remanescente no projeto é o fato de ele permitir que políticos enquadrados na Lei da Ficha Limpa concorram nas eleições e só tenham seus casos julgados na posse – hoje, precisam ser julgados no momento do registro da candidatura.

Humberto Jacques de Medeiros é procurador da República e o atual Procurador-Geral Eleitoral, isto é, o representante do Ministério Público no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele explica que o debate a respeito do projeto envolve dois valores diferentes: a autonomia partidária, de um lado, e a transparência no uso do dinheiro público, de outro.

"Em todo o mundo democrático, se entende que o Estado não deve controlar ou fiscalizar demasiadamente os partidos. A liberdade dos partidos é um dogma da democracia. Se o Estado passa a controlar os partidos políticos, isso significa que o partido no poder passa a poder controlar a oposição", diz ele. A liberdade dos partidos, diz o procurador, tem a mesma importância da liberdade de imprensa ou a liberdade de organização dos sindicatos.

"Por outro lado, o dinheiro público precisa ser fiscalizado. Esse dinheiro que os partidos recebem é dinheiro público", diz.

"Então sempre existe essa tensão entre as duas leituras da Constituição: a da máxima transparência do gasto público; e a defesa da autonomia partidária".

Na semana passada, o grupo de entidades do qual a Contas Abertas faz parte divulgou uma nota criticando pesadamente o projeto, que traria "graves retrocessos". "A indecorosa proposta representa um dos maiores retrocessos dos últimos anos para transparência e integridade do sistema partidário brasileiro", dizia a nota.

Já os defensores do projeto argumentam que o dinheiro e as novas regras são necessárias para o funcionamento da democracia.

"Nós não estamos autorizando aqui dinheiro para simplesmente sair fazendo assalto no meio da rua. É para fazer política, para fazer partido, para fazer democracia, eleição. Então, terminou a eleição, você prestou conta, e a Justiça disse que o senhor está em dia, OK", disse o senador Weverton Rocha na quarta-feira semana passada (11), quando o plenário do Senado tentou votar o assunto pela primeira vez.

Como ficou a versão final do projeto?

A versão final do texto é extensa: pretende desde explicitar na lei que assessores e dirigentes partidários não têm vínculo de emprego com os partidos; até permitir que as legendas tenham sede nacional em qualquer lugar do país (hoje, é obrigatório que as sedes fiquem em Brasília).

Alguns dos pontos mais polêmicos do projeto, no entanto, foram excluídos.

Um deles era o que permitia que os partidos usem qualquer sistema contábil para prestar contas; o outro determinava que os partidos só podem ser punidos caso haja dolo (isto é, a intenção de cometer irregularidade) nos casos em que as contas partidárias forem rejeitadas. Ainda em relação às prestações de contas, foi excluído o trecho que adiava em até oito meses a prestação de contas eleitorais, e outra que permitia a "correção" de problemas na prestação de contas até o seu julgamento.

Estes pontos impediriam, na prática, que a imprensa e os cidadãos acompanhassem a arrecadação e os gastos dos candidatos durante a campanha eleitoral.

Também foi excluída a possibilidade de usar verbas públicas para contratar advogados para filiados dos partidos, inclusive os acusados de corrupção.

Hoje, os partidos usam um sistema elaborado pela Justiça Eleitoral para prestar contas de como usaram o dinheiro do Fundo Partidário. Batizado de Sistema de Prestação de Contas Anuais (SPCA), ele permite que o setor encarregado de fiscalizar as contas partidárias no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aplique algoritmos para descobrir inconsistências ou problemas nas contas.

Se cada partido pudesse usar um sistema contábil diferente, essa possibilidade deixa de existir – o que inviabiliza a fiscalização, diz a professora Marilda Silveira, da Escola de Direito do Brasil (EDB).

O setor responsável por esta fiscalização no TSE se chama Asepa (Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias). O número de funcionários é bem pequeno – 34, sendo apenas 15 contadores. Sem padronização, a equipe não conseguiria analisar as contas dos 33 partidos políticos do país.

Segundo um técnico do TSE ouvido pela BBC News Brasil, a padronização dos dados permite que as informações prestadas pelos partidos sejam cruzadas inclusive com outros bancos de dados do governo, para detectar fraudes. "Você pode por exemplo cruzar os CPFs dos doadores com bases de dados de pessoas que recebem o bolsa-família, ou de pessoas falecidas. Podemos cruzar o CNPJ de um fornecedor com a RAIS (uma base de dados do Ministério da Economia) para saber se é uma empresa sem funcionários", exemplifica ele.

"É verdade que o sistema SPCA tem problemas. Mas por outro lado me parece pouco razoável deixar as prestações de contas ao 'Deus dará', com cada partido fazendo como quiser", disse Marilda.

A versão final ainda favorece os partidos em pelo menos dois pontos, em relação às prestações de contas. Primeiro, acaba com a possibilidade dos técnicos da Justiça Eleitoral recomendarem a rejeição das contas de uma sigla, como podem fazer hoje. E também limita o desconto das multas a ser paga pelas legendas, em caso de rejeição das contas, a 50% do valor do Fundo Partidário num determinado mês (hoje, a parcela inteira do mês pode ser retida para quitar o débito).

Passagem aérea, advogado e até Google

A "minirreforma eleitoral" criou várias possibilidades novas para os partidos no uso do dinheiro público. O Fundo Partidário agora poderá ser usado para pagar passagens aéreas de qualquer pessoa – inclusive quem não seja filiado à legenda; também poderá bancar a compra, construção ou reforma de imóveis até o impulsionamento de publicações em redes sociais e a compra de anúncios em mecanismos de busca, como o Google.

Os partidos também poderão contratar consultores e advogados para atuar durante o período das campanhas, sem limite de valor e sem que estes gastos sejam computados no limite de gastos das campanhas.

A relação dos partidos com os bancos também muda, de acordo com o projeto. As instituições financeiras não poderão mais incluir as contas bancárias dos partidos nos mecanismos destinados a "pessoas politicamente expostas" (ou PEPs, na sigla em inglês). A norma atual do Banco Central determina uma série de procedimentos especiais – mais rígidos – que as instituições financeiras precisam seguir ao lidar com os PEPs.

Por fim, o projeto também recria a Propaganda Partidária – diferente da propaganda eleitoral, ela vai ao ar no rádio e na TV de forma contínua, e não só quando há eleições. O tempo de cada partido varia conforme o tamanho da bancada na Câmara: as siglas com mais de 20 deputados eleitos, por exemplo, terão direito a 20 minutos por semestre em rede nacional, e mais 20 minutos em redes regionais. Essa propaganda também é paga com dinheiro público, por meio do abatimento de impostos das empresas de comunicação.

Recaídas do Congresso pedem reações à 2013

Depois do surpreendente ímpeto reformista que colocou em pé a reforma da Previdência, a ala bandalha do Congresso voltou a elaborar projetos e emendas como quem joga barro na parede. Se colar, colou. Para os adeptos da tática do barro na parede não existe noção de certo ou errado. Há coisas que são absorvidas e outras que pegam mal.

Quando pega muito mal, como no caso do projeto que aplicou a lógica do 'liberou geral' nas regras eleitorais e partidárias, promove-se um recuo tático. Os senadores deram meia-volta. Os deputados voltaram ao barro para selecionar os pedaços de desfaçatez que achavam possível colar novamente na parede.

Essa movimentação mostra que a história que começou a ser escrita no em junho de 2013 virou um pesadelo do qual o Brasil não consegue acordar. Há seis anos, as ruas roncaram para reivindicar menos roubalheira, mais prosperidade e serviços públicos decentes. O sistema político ofereceu na época uma espécie de Bolsa Teatro. Entrou em cartaz um espetáculo de cinismo. Vieram a Lava Jato, o impeachment de Dilma, o entreato apodrecido de Temer e a eleição de Bolsonaro, um personagem antissistema cuja Presidência se ajusta gradativamente ao seu passado sistêmico.

O esforço para a restauração da imoralidade não se limita ao Legislativo. Há adeptos da volta ao passado no Executivo e também no Judiciário. Se essa movimentação revela alguma coisa é que 2013 tornou-se o ano mais longo da história do Brasil. E ainda vai longe. A diferença em relação ao passado é que o cinismo agora encontra resistência. Há uma reação —externa, via entidades civis e redes sociais; e interna, exercida pelo pedaço do Legislativo que nasceu da fome de limpeza da sociedade. O brasileiro continua de saco cheio de sua própria realidade.

Deputados levantam a bola para Bolsonaro vetar

A ala bandalha do Congresso não perde a oportunidade de perder oportunidades. Ao ressuscitar parte das regras que o Senado havia sepultado na véspera —entre elas excrescências como uma brecha para o caixa dois e uma fenda para candidaturas de políticos com ficha suja— os deputados tornaram-se, na verdade, uma oportunidade que Jair Bolsonaro pode, se quiser, aproveitar.

O projeto vai ao Planalto na forma de uma bola levantada pelos deputados para o presidente vetar. Bolsonaro terá 15 dias para decidir se sanciona ou veta as novas velhas regras eleitorais e partidárias. O veto pode ser total ou parcial. O presidente poderia, por exemplo, restaurar a decisão do Senado, que manteve em pé apenas o fundo eleitoral, em valor a ser definido.

A questão agora é saber de que lado Bolsonaro se sentirá mais confortável. Se vetar as espertezas da Câmara, será ovacionado nas redes sociais, seu habitat natural. Sancionando as indecências, fará média com o centrão.

Há dois Bolsonaros na praça: o que se elegeu como presidenciável antissistema vetaria. Mas o Bolsonaro que exerce a Presidência aproximando-se do seu próprio passado sistêmico talvez prefira não enfiar o dedo em favo de mel para não ter que fugir das abelhas do centrão. A ver.


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