29/03/2024 - Edição 540

Poder

Rolo da CPMF nos lembra que Bolsonaro foi eleito sem um projeto de país

Publicado em 13/09/2019 12:00 -

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Em seus sonhos, o ministro da Economia deseja a desoneração da parte do INSS que cabe, hoje, aos empresários, jogando a fatura para toda a sociedade através de um imposto. Uma CPMF renascida do inferno caberia como uma luva.

A Constituição Federal deixa claro que o financiamento da seguridade social deve vir de trabalhadores, governo e empregadores. Mas se depender do ministro, o governo, que já não coloca sua parte de forma correta e reclama do tamanho do déficit, terá a companhia dos empresários.

Guedes acredita que gastando menos com a proteção e aposentadoria dos trabalhadores, empresários vão gerar mais empregos. Mas ele faz isso com um imposto que incide pesadamente no consumo. Ou seja, todos pagam.

A ideia vai no mesmo sentido da substituição do sistema de repartição (em que os da ativa contribuem para os aposentados) para o de capitalização (em que cada um faz uma poupança individual ao longo da vida). A previsão da capitalização foi retirada da Reforma da Previdência. Mas o ministro é brasileiro, não desiste nunca. Ainda quer implementar o sistema para os jovens que estão entrando no mercado de trabalho.

Diante da gritaria coletiva contra o malfadado imposto, Bolsonaro pediu a Guedes a cabeça do secretário da Receita Federal, Marcos Cintra.

"Tentativa de recriar CPMF derruba chefe da Receita. Paulo Guedes exonerou, a pedido, o chefe da Receita Federal por divergências no projeto da reforma tributária. A recriação da CPMF ou aumento da carga tributária estão fora da reforma tributária por determinação do Presidente", tuitou Bolsonaro. Ou seu filho, o vereador Carlos, o que dá no mesmo. E lá se foi o homem do imposto único.

Por ter batido de frente com o presidente outras vezes, ele pagou o pato amarelo. Mas não era o único a defender a volta de um imposto sobre movimentações financeiras. Independentemente das razões, o passa-moleque do presidente da República em Cintra dificulta a vida de Paulo Guedes.

Outra coisa que todo o episódio mostra é a falta que um projeto de país nos faz. Bolsonaro foi eleito empunhando várias bandeiras desconexas e sem um projeto claro – além de nos fazer voltar 40 anos em quatro do ponto de vista comportamental e de costumes. O vazio de organização e de planejamento se reflete na bateção de cabeça de membros de sua administração, o que pode ser visto pelas brigas dele com o próprio Marcos Cintra ao longo do tempo.

Nos primeiros meses, esse contexto tinha o charme tosco de uma Sessão da Tarde, com uma turma do barulho aprontando altas confusões, em um início de mandato. Agora, fica claro a incompetência de gestão, a falta de comando, a precariedade do planejamento, o mau uso de balões de ensaio, a fogueira de vaidades e o desespero do trabalhador – que vê um emprego formal se tornar produto de luxo.

Sua campanha eleitoral apresentou uma antiproposta, prometendo que ia mudar tudo que está aí, talkey? O candidato que se vendeu como antissistema preferiu se mostrar como a pedra sobre a qual seria refundado o Brasil, pondo um fim ao ciclo da Nova República (1985-2018), do que mostrar como faria isso. Questionado sobre o que defendia para a Reforma da Previdência ou para a Reforma Tributária, pedia para Paulo Guedes falar ou mandava ele se calar, de acordo com a conveniência.

Dizer que construiria um Brasil conservador em costumes e liberal na economia é vago. O discurso de que o sistema deve passar por um reset e recomeçar do zero não demonstra apenas deficiência de aprendizagem de História e de finanças públicas combinada com o uso acrítico de WhatsApp, mas é uma auto-sabotagem.

Montar um governo não é apenas chamar jogadores e dizer que o objetivo deles é ganhar o campeonato. Imaginou-se que Bolsonaro gastaria os meses de transição organizando como seu time jogaria, com a posição e a responsabilidade de cada um, alertando para sobreposições, falhas de marcação, caneladas desnecessárias e buracos no campo. E que ele chamaria para si as broncas e a estratégia e garantiria que houvesse uma boa comunicação interna da equipe e que o time falasse aos espectadores apenas quando tivessem consenso sobre algo. Mas ele deve sua posição na tabela, que não está tão mal, ao fanatismo da torcida, à irregularidade dos adversários e uma ajudinha do juiz.

"O desconhecimento meu [de economia], como o dos senhores em muitas áreas, e a aceitação disso é um sinal de humildade. Tenho certeza, sem qualquer demérito, que eu conheço um pouco mais de política que Paulo Guedes, e ele conhece muito mais de economia do que eu", afirmou o presidente em janeiro.

Parte da classe trabalhadora votou nele por desilusão com o sistema. Foi uma aposta. E esse eleitor está perdendo a paciência, pois o emprego cisma em não aparecer na velocidade necessária. E, quando aparece, vem precário ou por conta própria. Isso sem falar que ser pequeno e microempresário no Brasil segue um martírio.

Seria bom que ele entendesse de administração econômica, mas não é disso que está sendo cobrado, mas de ser capaz de organizar os diferentes grupos que fazem parte de sua gestão visando o cumprimento de um programa – seja ele qual for. Ao mesmo tempo, seria importante entender qual sua visão de país para além do banimento do Kit Gay, da Mamadeira de Piroca, do Saci Pererê e, agora com as queimadas, do Curupira.

Entenda o imposto

A CPMF foi criada em 1994 como um imposto provisório que iria financiar a saúde pública. A cobrança incidia sobre todas as movimentações bancárias – exceto nas negociações de ações na Bolsa, saques de aposentadorias, seguro-desemprego, salários e transferências entre contas correntes de mesma titularidade.

O tributo, porém, foi prorrogado algumas vezes e teve sua finalidade modificada. A alíquota subiu de 0,2% para 0,38% e passou a cobrir também gastos com previdência, o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, e foi usada até para pagar os juros da dívida. Em 2007, ela acabou sendo extinta, após ter arrecadado R$ 223 bilhões durante sua vigência.

Para o economista e advogado tributarista Eduardo Fleury, esse histórico é o que explica a grande antipatia que a população tem com esse imposto. Em julho de 2016, pesquisa realizada pelo Ibope para a Confederação Nacional da Indústria indicou que 73% dos brasileiros são contra a volta da CPMF.

"O recurso era pra saúde e acabou indo para outras áreas. Era para ser uma cobrança provisória, mas acabava sempre prorrogada. Isso criou uma percepção negativa", acredita.

Embora a proposta de Guedes fosse de compensar a volta da CPMF com redução de outros impostos, na prática o que sobressai para a população é a ideia de uma nova cobrança, inclusive porque o imposto sobre transações financeiras incide sobre um número maior de pessoas do que a cobrança sobre a folha de pagamento das empresas, nota o economista do Ipea (Insituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Rodrigo Orair.

"Há uma aversão a novos impostos. A população sente que já esta já está cheia de imposto", afirma.

Para além da percepção mais leiga da população, boa parte dos economistas se opõe à volta da CPMF por considerar que é um imposto ruim, que traz efeitos negativos para a economia e tem peso maior sobre os mais pobres.

A única vantagem do imposto, na avaliação de Orair, é que ele tem alta "produtividade tributária" – ou seja, é fácil de cobrar e gera uma resposta rápida em termos de arrecadação.

Ao defender a criação do ITF, Guedes disse ao jornal Valor Econômico que o imposto enquadraria a todos, incluindo sonegadores e traficantes de droga. Segundo o ministro, a proposta conterá uma cláusula para que transações só tenham validade jurídica com o recolhimento do imposto.

"Traficante pegou dinheiro em espécie e pôs tudo no caminhão, foi lá e comprou apartamento em Ipanema, pagou em dinheiro. Você pode tomar o apartamento dele, porque ele não pagou imposto", defendeu.

Possíveis efeitos negativos da volta da CPMF

Economistas contrários a CPMF, porém, destacam que o imposto sobre transações financeiras incentiva as pessoas a aumentar as transações em dinheiro vivo, provocando desbancarização. Isso corrói a própria base de cobrança do imposto, exigindo aumento da alíquota.

"Por exemplo, se eu vou fazer um churrasco com meus amigos, vou pedir que todos façam sua contribuição em dinheiro e depois vou pagar o churrasqueiro, e comprar as comidas e bebidas com dinheiro, em vez de fazer transferência bancária ou usar o cartão", exemplifica Orair.

"Por isso, é uma aventura querer usar esse tipo de imposto para substituir a contribuição das empresas para a previdência (um dos tributos que incidem sobre a folha de pagamento). Os gastos com previdência, mesmo com a reforma, vão continuar crescendo no país, o que vai exigir um imposto cada vez maior", acrescenta o economista do Ipea.

Segundo simulação feita por Eduardo Fleury, que já foi servidor da Receita Federal, seria necessário uma alíquota de 0,7% para arrecadar os R$ 150 bilhões sugeridos por Guedes. "Mas, com o encolhimento da base de arrecadação, depois subiria para 1%. As propostas desse governo são muito mal estudadas", critica

Fleury lembra que os juros no país eram mais altos entre 1997 e 2007, quando a CPMF vigorou. Isso era um estímulo para manter aplicações financeiras, mesmo com o imposto. Hoje, porém, a taxa Selic está em patamar bem menor.

Para o economista José Oreiro, professor da UnB, a volta da CPMF incentivaria as pessoas a manter em casa ou andar com quantias maiores de dinheiro vivo, aumentando a insegurança.

Outro efeito, segundo ele, ocorreria em setores da economia com cadeia de produção mais longa, já que o tributo é cumulativo (vai sendo cobrado seguidamente sobre todas as transações). Isso incentiva as empresas a buscar mais verticalização (concentrar todas as etapas da produção dentro do mesmo grupo) em vez de contratar fornecedores externos, o que tende a gerar ineficiência.

"É um imposto fatal para a indústria", afirma Oreiro.

Além disso, o custo dessas transações tende a ser repassado ao preço final cobrado de consumidores, afetando em maior proporção os grupos de menor renda. Esse efeito acontece porque pessoas mais pobres não têm capacidade de poupança, usando toda sua renda com consumo.

"É um imposto regressivo (com maior peso sobre os mais pobres). Nenhum país desenvolvido tem", ressalta Rodrigo Orair, do Ipea.

Levantamento realizado por Isaías Coelho, ex-chefe das divisões de Administração e Política Tributária do Fundo Monetário Internacional (FMI) e ex-secretário-adjunto da Receita Federal, indica que hoje apenas a Venezuela tem um imposto permanente com finalidade arrecadatória, cuja alíquota está em 2%.

Já Argentina, Bolívia, Colômbia, Honduras e Hungria estão com taxas provisórias – a mais alta é a cobrada na Argentina, de 1,2%.


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