25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Impróprio à família não é desenho de beijo, mas autoridade promover ódio

Publicado em 12/09/2019 12:00 -

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O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, pediu que a Bienal do Livro da cidade recolhesse um livro à venda no evento: Vingadores, a Cruzada das Crianças, da Marvel. Em um vídeo no Twitter, o prefeito disse que a obra traz "conteúdo sexual para menores" e "livros assim precisam estar em um plástico preto, lacrado, avisando o conteúdo".

Toda vez que uma autoridade aponta o dedo para grupos sociais minoritários e afirma que seu comportamento é inapropriado e inadequado, mesmo quando se trata da simples representação de um beijo entre duas pessoas do mesmo sexo, a mensagem transmitida é que a camada da população que sempre sofreu preconceito pode perder os poucos direitos que conquistou com base em suor, sangue e lágrimas. Pois o poder público apoia esse retrocesso.

Para cada político afirmando que beijo gay é uma conduta questionável e, portanto, deve ser censurada, existem milhares de pessoas dispostas a "censurar" aqueles que são chamados de "abominações". Na rua, na escola, no trabalho, nos estádios de futebol. Com xingamentos, socos e pontapés, tacos de baseball, cacos de garrafas, ácido, canivetes e pistolas.

Comportamentos como o do prefeito Marcelo Crivella, que ordenou a censura de um gibi que contém o tal beijo entre dois rapazes, e do desembargador Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que afirmou ser inadequado uma publicação de super-heróis, para crianças e jovens, trazer um beijo gay sem estar lacrada e com aviso, empoderam indivíduos e grupos que não toleram a existência da população LGBTQ+ e estão à espreita.

Ambos tomaram decisões que mostram que o problema não é o beijo, mas ele não ser heterossexual. Ou seja, não é o ato em si, mas as pessoas envolvidas. Ignorando a Constituição, que aponta que todos são iguais perante a lei, querem provar que uma parte da população tem tratamento diferenciado por ser cidadã de segunda classe. Pior, ser humano de segunda classe. Crivella, que eu me lembre, não abriu uma cruzada contra Bolsonaro pela, hoje, icônica golden shower divulgada para milhões de seguidores no Carnaval.

Um beijo. Não foi uma cena de sexo grupal, envolvendo pandas, guaxinins e um eucalipto, enguias em preservativos, terminando num bukkake, tudo no pé da estátua do Cristo Redentor. Foi um mísero beijo.

Líderes políticos, magistrados, religiosos fundamentalistas, comunicadores, humoristas dizem que não incitam a violência. Não são suas mãos que seguram a arma, mas é a sobreposição de seus argumentos ao longo do tempo que distorce a visão de mundo das pessoas comuns e torna o ato de atacar banal. Suas ações e regras redefinem, lentamente, o que é ética e esteticamente aceitável, visão que depois será consumida e praticada por terceiros. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em uma missão civilizatória. Ou divina.

Isso ocorre não apenas contra a população LGBTQ+, mas também contra religiões de matriz africana, entre outros grupos vulneráveis.

O pior é saber que o prefeito faz todo esse fuzuê para ganhar atenção da população e da mídia diante de uma gestão mal avaliada e reforçar sua base de seguidores ultraconservadores. Já que não consegue melhorar a qualidade de vida de jovens dos bairros pobres da cidade, que continuam morrendo pelas mãos de traficantes, das milícias e da polícia, tornou-se fiscal de gibi.

Crivella vai deixar a administração municipal um dia. Mas o desserviço que faz ao tentar manter cidadãos de segunda classe vai ser sentido por muito tempo depois de sua saída do cargo.

Também já disse aqui que tenho a certeza de que se Jesus, o personagem histórico, vivesse hoje, defendendo a mesma ideia presente nas escrituras sagradas do cristianismo, mas atualizando-a para os novos tempos, seria humilhado, xingado, surrado, queimado, alfinetado e explodido. Seria chamado de defensor de "viado imprestável", "mendigo sujo" e "sem-teto vagabundo". Olhado como subversivo, acusado de "heterofóbico" e "cristofóbico". Batizado como agressor da família de bem e dos bons costumes. Por muito menos, o papa Francisco, que se preocupa com as minorias, já é chamado de comunista.

A passagem mais legal dos Evangelhos cai como uma luva, neste momento, sobre aqueles que pregam o ódio em nome de Deus: Lucas, capítulo 23, versículo 34: "Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".

Censura

Eloisa Machado de Almeida, professora da FGV Direito SP e coordenadora do núcleo de pesquisa Supremo em Pauta, resumiu todo o debate jurídico em torno da questão ao blog: "Censura. Não há mais nada o que dizer, ele simplesmente não pode fazer isso".

Por não conseguir encontrar respostas efetivas a problemas na saúde, na educação, na moradia, nos transportes, na assistência social, ou seja, reais problemas da capital fluminense, ele elege inimigos imaginários, fantasmas.

Ele diz que fez isso em "defesa da família". Mas a maioria das famílias que moram no Rio estão em risco de passar fome, não encontrar creche, morrer na fila do hospital, ser soterrada ao voltar do trabalho de camelô na rua. Não de sofrer uma metamorfose ao ler um gibi.

Crivella, dessa forma, além reforçar conexão com a parte mais conservadora de seu eleitorado, procura também o grupo da população que representa o bolsonarismo-raiz, cru, visceral. Aquele eleitor que digita em um smartphone do século 21 mensagens da Inquisição Espanhola do século 15. Procura o naco da sociedade que acha que homossexualidade é transmissível e que homofobia é um ato de amor a Deus.

O problema (para nós) é que ele tem concorrência.

Supremo precisa censurar a censura ao beijo gay

Certas decisões judiciais, por obscenas, deveriam circular envoltas em plástico preto. É o caso do despacho do desembargador Claudio de Mello Tavares. O acesso ao despacho do doutor deveria ser precedido de um aviso: "Decisão judicial pornográfica, imprópria para crianças de zero a 99 anos."

Para Tavares, o beijo gay viola o ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, a publicação não poderia ser comercializada senão escondida em embalagens lacradas, com advertência sobre o conteúdo.

Não há no ECA vestígio de menção a beijo entre personagens do mesmo sexo em publicações destinadas ao público infanto-juvenil. O que o estatuto anota é o seguinte: as obras "não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família".

Depreende-se que, a exemplo do prefeito Crivella, o desembargador Tavares entende que o fatídico beijo dos quadrinhos é um atentado contra os valores da família brasileira. O diabo é que, por decisão da Suprema Corte, a união homoafetiva foi formalmente incorporada ao conceito de família no ano da graça de 2011. Quer dizer: o beijo gay tem o mesmo amparo legal do beijo heterossexual. Espanta que um desembargador queira sapatear sobre decisão do Supremo.

No âmbito familiar, o doutor Tavares pode cultivar os valores que bem entender. O que não se admite é que um desembargador faça opção preferencial pelo preconceito. Sob pena de tropeçar em outra decisão do Supremo, tomada neste ano de 2019 —aquela que equiparou a homofobia ao crime de racismo.

O presidente do tribunal do Rio sustenta que seu despacho não se confunde com um "ato de censura". Conversa mole. A liberdade de expressão, como bem sabe qualquer criança de cinco anos, é um dos valores fundamentais protegidos pela Constituição. A censura é uma abjeção esconjurada pelo mesmo texto constitucional. Vale a pena ler manifestação do ministro Celso de Mello, decano do Supremo, sobre a encrenca:

"Sob o signo do retrocesso –cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do Estado–, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático!!", escreveu Celso de Mello em manifestação enviada à Folha.

Repare que Celso de Mello arremata a frase com um par de pontos de exclamação. Foi como se quisesse realçar o quão espantosa é a época atual. A exclamação parece ter sido abolida dos hábitos do brasileiro. O absurdo adquire uma persuasiva naturalidade. Diante de uma censura embrulhada em hipotéticos valores da família, pouca gente faz a concessão de um espanto.

A tática de utilizar a família como biombo para o preconceito é no mínimo inusitada. A família, como se sabe, pode ser o inferno do ser humano. Muitas delas, mesmo as que são tidas como dignas e decentes, uma hora se desvirtuam. Lá um dia surge, do nada, um avô desembargador e meio esquisito, um tio prefeito que confunde prefeitura com púlpito. Tudo ao mesmo tempo. Na frente das crianças.

Conheça a revista

Mas afinal, qual era o conteúdo da HQ quer tanto incomodou Crivella?

O livro não é tão novo assim: foi lançado em 2012 nos Estados Unidos e chegou ao Brasil em 2016, pela Editorial Salvat em parceria com a Panini Comics. A edição é escrita pelo norte-americano Allan Heinberg e ilustrada pelo britânico Jim Cheung.

A publicação conta a história de jovens super-heróis que surgem depois que a Feiticeira Escarlate enlouquece e perde o controle de seus poderes, fazendo com que ondas de inimigos ataquem os Vingadores. Com isso, os heróis Gavião Arqueiro, Visão e Scott Lang acabam morrendo.

Isso abre caminho para o aparecimento de adolescentes com poderes (que se tornam os Jovens Vingadores) e agora irão ajudar a combater o crime. Entre os novos heróis estão Wiccano e Hulking, o casal centro da polêmica da proibição do livro.

Wiccano, filho da Feiticeira Escarlate, é um jovem com poderes quase ilimitados, e Hulkling, tem a capacidade de mudar de aparência para parecer com outras criaturas — sua forma preferida é a do Hulk. Mesmo sendo um casal assumido, o primeiro beijo dos dois aconteceu justamente em A Cruzada das Crianças.

Além do casal, temos os jovens Célere (irmão de Wiccano), Rapaz de Ferro, Visão (ressucitado pelo Rapaz de Ferro), Patriota, Gaviã Arqueira e Estatura.

Apesar de os personagens terem uniformes e poderes inspirados nos Vingadores originais, eles se destacam pelas personalidades diferentes, com muitos problemas de adolescentes e de relacionamento. Ou seja, existe o objetivo da Marvel de criar personagens mais diversos e inclusivos. 

Mas nem mesmo a censura de Crivella fez com que o livro fosse barrado e, inclusive, chegou a esgotar seus estoques no evento. A Bienal diz que "dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+. A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor."

“Ficamos orgulhosos com a posição da organização da Bienal do Rio em defesa da liberdade de expressão e da diversidade. Ela mostra com dignidade a vocação e vontade dos editores. Posturas como a do prefeito Marcelo Crivella e do governador João Doria – que recentemente mandou recolher uma apostila escolar que falava sobre diversidade sexual – tentam colocar a sociedade brasileira em tempos medievais, quando as pessoas não tinham a liberdade de expressar suas identidades", afirmou em nota Luiz Schwarcz, CEO e fundador da editora Companhia das Letras. "Eles desprezam valores fundamentais da sociedade e tentam impedir o acesso à informação séria, que habilita os jovens a entrar na fase adulta mais preparados para uma vida feliz."


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