28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Procuradora-geral da República pede para federalizar investigações do caso Marielle

Publicado em 12/09/2019 12:00 -

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Após receber um relatório da Polícia Federal (PF) apontando a existência de “uma trama” no Rio de Janeiro para atrapalhar a elucidação dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocorridos em março de 2018, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu na noite do último dia 10 a federalização das investigações.

A solicitação foi encaminhada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Caso seja atendida, o caso será retirado da Delegacia de Homicídios (DH) do Rio e transferido para a PF.

O objetivo de Dodge é apurar com mais profundidade os indícios de que o mandante do crime seria Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Rio e ex-deputado estadual pelo MDB.

Além de suspeito de ordenar a execução de Marielle e Anderson, Brazão teria usado a estrutura do seu gabinete para obstruir a investigação.

A apuração paralela da Polícia Federal aponta para a existência de infiltrados da milícia na Delegacia de Homicídios, aos quais Brazão também estaria ligado.

A PF analisou oito inquéritos de assassinatos relacionados a milicianos e agentes do jogo do bicho. Nenhum deles foi solucionado pela DH.

Quinto de Ouro

Brazão foi afastado em 2017 do TCE após a denúncia de recebimento de propinas para não fiscalizar obras, dentro da Operação “Quinto do Ouro” da PF, que resultou em sua prisão temporária e de outros cinco conselheiros do Tribunal.

Ele teria ligações com o delegado federal Hélio Khristian, que apresentou o policial militar Rodrigo Ferreira como a testemunha que, em maio de 2018, apontou o vereador Marcello Siciliano (PHS) e o miliciano Orlando de Curicica como mandantes do assassinato de Marielle e Anderson.

O PM contou ter ouvido uma conversa entre Curicica e Siciliano, num restaurante no Recreio dos Bandeirantes, em junho de 2017, em que Marielle foi citada. Brazão e Siciliano teriam uma disputa territorial por votos numa área dominada pela milícia na zona oeste do Rio, o que teria motivado a acusação contra o vereador.

O conselheiro afastado também foi citado na CPI das Milícias em 2008. Marcelo Freixo (PSOL), à época deputado estadual no Rio de Janeiro, presidiu a Comissão, que pediu o indiciamento de 225 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis.

Miliciano

O policial civil responsável por chefiar a equipe que investiga a morte de Marielle e do motorista Anderson Gomes ajudou e protegeu o sargento da PM e miliciano Rodrigo Jorge Ferreira, testemunha que apontou o vereador Marcelo Siciliano (PHS-RJ) como mandante do crime. Segundo a Polícia Federal, Marco Antonio de Barros Pinto, policial responsável por coordenar a apuração do episódio, cometeu “irregularidades” ao lidar com Ferreira, que está preso desde maio deste ano por participar da milícia de Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando de Curicica.

Entre novembro de 2018 e maio deste ano, a Polícia Federal investigou as tentativas de atrapalhar a apuração do caso e concluiu que Rodrigo Jorge Ferreira, conhecido como Ferrerinha, e sua advogada, Camila Nogueira, inventaram uma história para confundir a Polícia Civil do Rio. Em depoimento à PF, ele admitiu que criou a informação que relacionava Orlando Curicica e Marcelo Siciliano ao assassinato de Marielle, com o objetivo de reagir às ameaças de morte a que sofria. A vereadora foi morta no dia 14 de março de 2018 e o mandante do crime ainda é investigado.

No âmbito dessa “investigação da investigação”, foram encontradas diversas mensagens entre Ferrerinha e o policial Marco Antonio, lotado na Delegacia de Homicídios. De acordo com o inquérito, era ele quem coordenava o trabalho de campo das apurações do caso, comandado pelo delegado Giniton Lages até março deste ano. E a PF concluiu que, entre outros pontos, Marco Antonio não duvidou da versão apresentada por Ferreirinha e sim, além de protegê-lo, agiu para “corrigir falhas e fazer ajustes em seus depoimentos, em vez de tomá-las como alerta e buscar auditar a versão de forma escorreita”.

O ápice dessa relação íntima ocorreu na manhã do dia 21 de fevereiro deste ano. A Polícia Federal deflagrou operação contra Ferreirinha e foi buscá-lo em sua casa. O miliciano estava em São Paulo e avisou Marco Antonio da presença dos agentes, que levaram sua mãe e sua ex-namorada para prestar depoimento. O policial civil lhe passou orientações: que Ferreirinha ficasse na capital paulista e, depois, que dissesse a sua advogada para entrar numa representação na corregedoria da PF contra a operação.

Meses antes, em junho do ano passado, quando a versão de Ferreirinha para morte de Marielle dominava o noticiário e pautava as ações da Polícia Civil, o policial Marco Antonio, em mensagens trocadas com Camila, advogada do miliciano, deixa claro que o seu objetivo era “manter a credibilidade do amigo (Ferreirinha)” e de como a versão foi construída. “Pode até ser uma questão retórica, ou falha na expressão do servidor, mas parece claro que o interesse maior dos investigadores não deveria ser ‘manter a credibilidade do amigo’, mas aferir a credibilidade da testemunha”, diz o relatório da PF.

A PF também encontrou outros registros de conversas do miliciano e do policial civil. Em um áudio, enviado em 7 de dezembro de 2018, Marco Antonio reafirma seu empenho em ajudar Ferreirinha a mudar de batalhão da Polícia Militar. “Amigo, bom dia. Calma, calma, já falei pra você, calma. Ontem o Dr Giniton [delegado responsável pela primeira fase da investigação da morte de Marielle e Anderson] conversou com o chefe de polícia, ele falou que está resolvido. Está resolvido. Entendeu? Calma. Mantenha a calma. Camila tá… porra, ligando, tá me mandando duzentas mensagens, dizendo que a gente, que vocês… que acabou a importância de vocês pra gente. Pô, pô, umas viagens absurdas. Isso não existe! Pô, você me conhece, pô! Entendeu? A gente tem uma afinidade, não existe isso”, disse.

No mesmo mês, a PF encontrou outra conversa dos dois, classificada como “preocupante”, onde o policial chama Ferreirinha à delegacia para “alinharmos um monte de coisa futura”.

Há, ainda, registros de orientações de Marco a Ferreirinha, com instruções sobre qual deveria ser seu comportamento perante audiências do Tribunal do Júri nas quais ele figuraria como testemunha. Apesar de reconhecer que as condutas foram irregulares, a PF não indiciou Marco Antonio – o relatório da investigação foi encaminhado ao Ministério Público para “providências cabíveis”. Em nota, a Polícia Civil informou que “o caso está sob sigilo” e não respondeu as perguntas da reportagem.

O documento aponta, ainda, que o conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio, Domingos Brazão, é “principal suspeito de ser o autor intelectual dos crimes contra Marielle e Anderson”. Ele nega. De acordo com a PF, Brazão não teria participação no surgimento do policial Ferreirinha como testemunha do crime.

Anistia Internacional cobra de Witzel

A Anistia Internacional cobrou novamente o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), a garantir esforços pela elucidação do crime, descobrindo seus mandantes e objetivos.

Há seis meses, os ex-policiais Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz foram presos acusados de serem os executores do crime. Desde então, não há nenhum avanço importante no sentido de identificar os mandantes do crime e suas motivações.

A Anistia Internacional e a família de Marielle foram recebidas pelo governador e ouviram dele o compromisso de empenhar esforços na investigação. A organização encaminhou novos pedidos a Witzel e ao procurador-geral de Justiça do Estado, José Eduardo Gussen, renovando sua cobrança por resolução dos assassinatos e por informações atualizadas sobre os inquéritos policiais e outras ações investigativas em curso.

“No dia em que nos reunimos pessoalmente, 13 de março, o governador se comprometeu a empregar esforços e recursos para chegar à resolução do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. O procurador-geral de justiça assumiu o mesmo compromisso, mas desde então parece que pouco foi feito para descobrir quem mandou realizar o assassinato de Marielle e por que. Ou para garantir que todos os envolvidos sejam levados à justiça. Isso coloca em questão o compromisso das autoridades com uma ação célere”, disse Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil.

A organização ressaltou que a prisão dos dois suspeitos de serem os autores materiais do assassinato de Marielle foi um passo importante. No entanto, os mandantes do crime ainda não foram identificados. “Não descansaremos até que tudo tenha sido esclarecido, até que todos os responsáveis por esse crime, tanto seus autores materiais quanto seus mandantes, tenham sido levados à justiça em um julgamento justo e até que o Estado ofereça proteção e apoio psicossocial às famílias de Marielle e Anderson.”

“Se os assassinos e os mandantes não forem condenados, será uma decepção muito grande para nós, para a sociedade no Brasil e no mundo também. É inadmissível que uma defensora de direitos humanos seja morta e, com toda a tecnologia que temos, não se chegue a essas respostas. Enquanto não chegarmos, não vamos parar”, afirmou Antônio Francisco, pai de Marielle.

No início do ano, a Anistia divulgou 23 questionamentos que ainda precisavam ser respondidos sobre o assassinato de Marielle. Algumas foram respondidas ao longo do ano, sobretudo com a prisão dos ex-policiais. No entanto, ainda não há explicações sobre as conclusões das investigações realizadas pela Polícia Federal e o trajeto do carro usado no crime.

“Nunca é demais lembrar que o Brasil continua sendo um dos países mais perigosos para os defensores e as defensoras dos direitos humanos. Resolvendo o crime contra Marielle, o Estado poderia mostrar que não vai tolerar nenhum ataque contra os defensores dos direitos humanos. As autoridades precisam transmitir uma mensagem clara de garantia de proteção para quem luta pelo que acredita: a garantia dos direitos humanos para todos”, disse Jurema.


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