25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Future-se não vai dar certo porque a empresa brasileira não está interessada na universidade’

Publicado em 09/09/2019 12:00 -

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O diagnóstico de que o Future-se não tem como dar certo porque parte de uma premissa de que as universidades públicas têm que buscar mais financiamento na iniciativa privada, quando, na verdade, as empresas nacionais não têm interesse na pesquisa acadêmica, é feito pelo professor Renato Peixoto Dagnino, do Instituto de Geociências da Unicamp e um dos pioneiros no Brasil dos estudos sobre ciência e tecnologia.

Em uma entrevista de cerca de uma hora, Dagnino faz um diagnóstico histórico sobre o papel da ciência, tecnologia e inovação acadêmica no Brasil. Ele argumenta que as empresas brasileiras não têm vocação de investimento em pesquisa porque, dada a natureza periférica do capitalismo nacional, é mais vantajoso para elas “roubar, copiar ou comprar” a tecnologia estrangeira. O professor afirma que, mesmo quando havia uma política nacional-desenvolvimentista que ambicionava aproximar a indústria nacional da pesquisa acadêmica, objetivando desenvolver o País pelo investimento em ciência e tecnologia, isso não acontecia.

Diante destas circunstâncias, a avaliação de Dagnino é que o Future-se não terá o resultado que o Ministério da Educação do governo Bolsonaro espera, que é o de aumentar a participação do financiamento privado nas universidades públicas brasileiras. Ele destaca que, mesmo nos EUA, onde há uma forte integração entre iniciativa privada e academia, apenas 1% das custos das universidades, em média, são financiados por recursos de parcerias com empresas.

O professor defende que, para além de simplesmente rejeitar o Future-se, a comunidade acadêmica, deve ajudar no desenvolvimento de uma nova política cognitiva brasileira, termo que ele usa para se referir às políticas de educação e de ciência e tecnologia, em que o objetivo não seja apenas o de produzir o mesmo tipo de pesquisa que é feito nas principais universidades do mundo, mas sim o de buscar aproximar a academia com soluções reais para os problemas da sociedade brasileira.

A seguir, confira a íntegra da entrevista com o professor Renato Peixoto Dagnino.

 

Professor, o senhor é um dos pioneiros nos estudos sobre ciência e tecnologia no Brasil e da inovação tecnológica desde os anos 1970 na universidade. Tem se feito uma avaliação de que a Ciência e Tecnologia está em risco nesse momento, principalmente em razão de cortes de recursos e bolsas. Qual é o tamanho do risco para a inovação no Brasil?

A resposta é longa. A gente tem que fazer uma retrospectiva histórica. O Brasil é um país periférico, que tem uma dependência cultural congênita. Se você olhar aqui e lá fora, tudo que é ‘made in Brazil‘ já era produzido no norte. Mas isso tem uma consequência que é muita clara. Tem três bons negócios com tecnologia. Roubar, copiar e comprar. Nenhum país e nenhuma empresa vai desenvolver tecnologia se puder roubar, copiar ou comprar. Quem gosta de fazer pesquisa é pesquisador, empresário gosta de ganhar dinheiro. Se ele não ganhar dinheiro, ele sai do mercado. Não é que ele seja ruim, é uma questão do sistema. Então, o empresário brasileiro, seja ele multinacional ou de capital nacional, vai preferir roubar, copiar ou comprar. Os casos que nós temos em que existe um sucesso ou um êxito na inovação são casos em que uma elite econômica ou política, através do estado, aloca recursos para o desenvolvimento técnico-científico. Então, você explica dessa forma que a praga do café originou o Instituto Agronômico. A febre amarela originou a Fiocruz. O petróleo de água profunda a Petrobras. Os militares voltaram da Segunda Guerra querendo um aviação, criou-se o DCTA, o ITA, a Embraer. O agronegócio queria exportar, era necessário criar a Embrapa. Por quê? Porque ninguém sabia como cultivar a soja no cerrado ou outras coisas que a Embrapa desenvolveu.

Então, a gente tem que entender que quando há um êxito de você partir da pesquisa básica — eu não acredito muito nesses termos, mas que seja — até colocar algo no mercado, isso só vai ocorrer na medida em que essas elites de poder econômico ou político conseguem, através do estado, satisfazer essa demanda por conhecimento novo. Mas por quê? Porque não pode roubar, copiar ou comprar. Essas exceções nos permitem entender melhor as regras que ocorrem e entender que, em todas essas iniciativas, você tem o estado financiando. Não é à toa que você tem Embrapa, Embraer, Petrobras, Telebras, porque o recurso é do estado. Essa característica não é um atributo específico dos países periféricos, isso ocorre no mundo inteiro. Mas a nossa condição periférica causa essa situação. E a nossa universidade é um enclave, ela não brotou como brotou nos países de capitalismo avançado das relações sociais de produção capitalistas. Ela é um enclave das elites brasileiras. A primeira universidade brasileira é a USP, em 1934, em função de uma iniciativa dessa burguesia industrial paulista de constituir as bases de um capitalismo nacional-desenvolvimentista. A ideia de que você deveria desenvolver tecnologia para satisfazer essas demandas da indústria nascente. Ora, isso permaneceu até o governo militar, que, diferentemente do que aconteceu na Argentina, por exemplo, eram militares nacionalistas. Vinham de um pensamento de Escola Superior de Guerra, da Doutrina de Segurança Nacional, tinham um projeto Brasil Grande Potência, e, como consequência, assentaram as bases para a realização de pesquisa, formação de recursos humanos. A Capes e o CNPq são lá do começo dos anos 1950, mas, a partir do final dos anos 1960, há uma intensa mobilização dos militares para constituir o tempo integral nas universidades, pesquisa nas universidades, cursos de mestrado e doutorado. Começou a se montar um sistema de formação de recursos humanos e realização de pesquisa nas universidades públicas.

Esse processo dura até o começo dos anos 1990, quando, em função de uma globalização que se dá a nível internacional, as elites brasileiras decidem radicalizar uma abertura de mercado que torna desnecessária e até disfuncional essa estrutura que vinha sendo criada. Para encurtar a história, chamo a atenção para um dado que eu considero bastante esclarecedor. De 2006 e 2008, nós formamos no Brasil 90 mil mestres e doutores em ciência dura. Engenharia, Química, Física, Matemática. Tudo isso que as empresas precisam para fazer pesquisa nos países avançados. Desses 90, nos EUA, a metade, 45 mil, seriam contratados pelas empresas para fazerem pesquisas, porque é para isso que eles são formados. No caso brasileiro, nesse período a economia estava bombando, o salário estava crescendo, o que se esperava? Segundo a lógica da economia e da inovação, que não é minha, esperava-se que as empresas fizessem pesquisa, contratassem gente para fazer pesquisa. Desses 90 mil, foram contratados 68 para fazer pesquisas em empresas.

Sessenta e oito?

Sessenta e oito dos 90 mil. Então, isso dá uma ideia muito clara de como é a nossa política cognitiva de uma forma geral — a política de educação e a política de ciência, tecnologia e inovação. A esquerda não percebeu ainda que essas duas coisas têm que ser tratadas em conjunto. A extrema-direita já percebeu isso. Tanto é que o atual governo dá uma paulada na educação básica, na educação superior e na ciência e tecnologia, porque trata-se de mudar a política cognitiva. Agora, o que eu quero chamar a atenção é que, com toda a crítica que a gente pode e deve fazer ao atual governo, nós temos que entender que essa disfuncionalidade da nossa universidade tem que ser discutida no âmbito da esquerda, coisa que não ocorreu. Acho que uma das principais críticas ou autocríticas que a esquerda tem que fazer com relação a esse tema é o fato de que nós mantivemos a política neoliberal na expectativa de que a empresa brasileira se tornasse competitiva, gerasse bons empregos, bons salários, produtos de qualidade crescente e preço cadente, etc. E isso é incompatível, é incoerente com a nossa perspectiva de construir uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais responsável do ponto de vista ambiental.

Você falou que existia no início das universidades um desejo da elite, ao menos da paulistana, de ter uma estratégia de desenvolvimento nacional. Os próprios militares ao chegarem ao poder já tinham décadas de pensamento sobre a visão de desenvolvimento que eles tinham, que também era desenvolvimentista. Em que momento ocorre a ruptura das elites com essa ideia de que o desenvolvimento do Brasil passa por uma ação conjunta entre iniciativa privada e estado, com investimento em ciência e tecnologia nacional, e passam a descartar qualquer ideia de haver uma indústria de inovação nacional? O melhor exemplo do que a gente tem hoje talvez seja a Havan, em que o “grande empresário” atual compra quinquilharias a preço baixo para revender aqui.

Em toda a América Latina, a gente teve o que a gente chama de Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade, PLACTS. Qual era a proposta? Era a articulação de um triângulo em que você tinha estado ou governo, universidade e empresa. Essa empresa era nacional, fundamentalmente, as empresas estatais tinham muita importância. Na Argentina, sobretudo, onde nasce esse pensamento latino-americano, mas também no Brasil e em outros países, qual era a ideia? Articular esses três atores no sentido de buscar uma autonomia tecnológica. O processo de industrialização via substituição de importações não criava uma demanda por conhecimento autóctone, uma vez que nós viemos a produzir coisas que já eram produzidas no norte. Não obstante isso, era necessário fazer adequações, o que a gente chamava na época de tropicalização da tecnologia importada. Ou seja, adaptar à realidade social, climática, etc., brasileira. Como a gente disse, os militares no Brasil se envolveram de uma forma muito importante na construção dessa base tecno-científica para fazer essa adaptação da tecnologia, mas não só isso, e também entrar em algumas áreas que eram consideradas tecnologia de ponta, inclusive na área nuclear, etc.

Bom, o que muda e quando muda? A adoção das ideias neoliberais fazem com que em todos os países da América Latina que tinham algum tipo de indústria tenha havido uma abertura de mercado, uma diminuição muito drástica das barreiras alfandegárias. De tal forma que, já nos anos 1970, a indústria argentina, que era a mais completa e densa da América Latina, tinha sido desmontada. O Brasil, com os militares, permanece com a sua indústria funcionando e com bastante eficiência. Você tinha as multinacionais e você tinha todo um parque industrial que satisfazia as demandas das multinacionais. O caso emblemático é no setor metal-mecânico, sobretudo a indústria automobilística, em que você tinha as montadoras multinacionais e você tinha um miríade de empresas nacionais que produziam as peças, equipamentos, auto partes, etc., para a indústria automobilística.

O período de 1985 até 1990 é um período de rearticulação, do processo de redemocratização. Você tem um monte de coisas acontecendo, mas a política industrial e a política de ciência e tecnologia ficam numa reacomodação. A abertura de mercado que se dá a partir de 1990 é tão drástica que, para fixarmos números, em 1990, 90% da linha branca era nacional. Fogão, geladeira, etc. Dez anos depois, no ano 2000, 90% era estrangeira. Então, há um processo intenso de privatização das estatais, que eram empresas que desenvolviam tecnologia, basicamente eram só essas, e as empresas brasileiras de capital nacional praticamente deixaram de existir.

Em que momento a elite industrial abre mão? Teoricamente isso seria prejudicial para ela também.

Aí você teria que abordar a relação entre a burguesa industrial, a tecnocracia, que no fundo é quem aloca recursos, quem subsidia um tipo de atividade em detrimento de outro. Se você observar como é que se dá o processo de industrialização brasileira, você vai ter, já nos anos 1930, a oligarquia rural de um lado e a burguesia industrial de outro. No trânsito de um modelo primário exportador para um modelo de substituição de exportações. Nos anos 1990, você tem outra articulação, na qual coisas vão se somando. A oligarquia rural continua presente, revitalizada, inclusive, em alguns aspectos. Se você pegar o pró-álcool, por exemplo, o que é? É um acordo com os usineiros. O preço do açúcar estava caindo, então vamos produzir álcool como combustível. E a coisa é tão impressionante, analisando posteriormente, que você monta uma estrutura de distribuição e consumo de álcool do lado daquela da gasolina. Então, você tem bombas de álcool e bombas de gasolina. Quando, na realidade, teria sido muito mais simples misturar álcool na gasolina. Isso dá uma dimensão da importância desses pactos que se estabelecem entre as elites. Essa elite sucroalcooleira consegue impor um ônus para o estado de utilização dos recursos públicos que vai desde a produção do álcool, distribuição, consumo, até a pesquisa do carro álcool. Quer dizer, então a gente começa a perceber a dimensão desses acordos. É claro, o que nós estamos vivendo hoje da Lava-Jato, toda a questão do petróleo, da corrupção, a gente sabe muito bem que tem todo um discurso pensando para satisfazer determinados interesses, mas a gente tem uma ideia do que está em jogo nesses lobbies e nessas alianças.

Agora, o que mudou? Há um processo de globalização que é geral. A partir dos anos 1980, o que você tem no mundo inteiro é uma tomada de consciência, vamos dizer assim, dos países líderes e das suas multinacionais de que não era mais conveniente ter barreiras alfandegárias, quer dizer, pular fronteiras pagando o que era produzido em um país na Europa ou nos EUA em outro país. A regra do processo de globalização é baixar barreirar alfandegárias. A América Latina toda entrou nessa onda para satisfazer essas elites que cada vez mais deixaram de ser elites produtivas ou industrias para serem elites que capitalizavam o mercado nacional. Se você pensar sobre essa onda de privatizações que ocorreu, o que as empresas multinacionais compraram não foi a planta industrial, não foi a capacidade produtiva, foi a marca, a rede de assistência técnica e a rede de comercialização. Era isso que era importante. As empresas propriamente ditas foram sucateadas e já não valiam mais nada. Já era um maquinário totalmente depreciado, obsoleto. Mas o que era importante eram as redes de comercialização e de assistência técnica. Foi esse o ativo que foi comercializado.

Eu acho que houve um mudança de estratégia da elite brasileira. ‘Se o jogo está difícil, eu vou me dedicar a ganhar dinheiro de outra forma’. Na realidade, o capitalismo não é um capitalismo industrial. A indústria é uma oportunidade de ganhar dinheiro. Quando essa oportunidade de ganhar dinheiro se fecha na periferia do sistema, eles vão procurar outra coisa. Logo, logo, esse mesmo capitalismo neoliberal, a se financerizar na velocidade e na intensidade que ele passa a fazer a partir da década de 90, abre perspectivas, abre oportunidades para essa classe dominante brasileira se tornar ainda mais rentista do que era no passado.

E quais são as consequências desse modelo? Para onde que esse capitalismo cada vez mais rentista, cada vez mais financeiro, que não valoriza ciência, tecnologia, inovação e produção nacionais está nos levando do ponto de vista da dependência dos outros países?

A gente tem que entender essa valorização. Eram casos excepcionais, como esses que a gente falou. Do Instituto Agronômico, Embraer, petróleo de água profunda, Embrapa, porque não tinha de onde roubar, copiar ou comprar. Esse é o ponto que a gente tem que marcar. Essa autonomia tecnológica é impossível num país periférico. Mesmo que as multinacionais não tivessem a importância que foi concedida a elas, sobretudo a partir do período Kubitschek, mesmo que fossem empresas de capital nacional, a regra seria roubar, copiar ou comprar. Como é no mundo inteiro. O problema é que, numa sociedade periférica, isso que é uma propensão a roubar, copiar ou comprar, se tornou quase que mandatório. Você vai ter casos que são excepcionais. Se você pensar na Embraer. Ela começou de um jeito, mas, a partir da sua privatização, ela mudou radicalmente. Como eu fiz a minha tese de doutorado sobre a indústria de armamentos, eu conheço bem a história tecnológica da Embraer. E posso te garantir que ela mudou de maneira radical quando se dá o processo de privatização. Se fosse pensar, quase 90% do custo do avião vendido pela Embraer são produtos importados, são aviônicos, as turbinas. O Brasil não produz nem chapa de alumínio de qualidade aeronáutica. Só para você ter uma ideia do caráter de enclave que é a Embraer. É uma empresa que, desde a sua fundação, é condenada a ser deficitária e não é à toa.

Durante muito tempo, as grandes empresas da área aeronáutica não entraram no segmento de commuter, porque os EUA era, ao mesmo tempo, o maior comprador de aviões de médio porte e o maior produtor de aviônicos e turbinas. Então, pressionava para baixo o preço do avião, porque era o maior comprador, e pressionava para cima o preço dos componentes, e não entrava nesse segmento. Você tinha a bombardier, canadense, e a Embraer, brasileira. Então, eu acho que a gente tem que relativizar um pouco esse tema da autonomia tecnológica porque nós nunca deixamos de ser dependentes em termos tecnológicos. Cada vez que você internalizava, no Brasil, a capacidade de produção de bens de maior intensidade tecnológica ao longo do processo de substituição de importações, você aumentava a dependência tecnológica. Agora, houve um toda uma estratégia de buscar essa substituição de tecnologia, mas isso foi um processo que foi interrompido.

A gente teve nos governos no PT, especialmente a partir da expensão das universidades e institutos federais, também uma expansão do volume de bolsas e pesquisas, no número de mestres e doutores formados no Brasil. O senhor falou que esses profissionais acabaram não sendo absorvidos pela indústria nacional e pela iniciativa privada. Esse investimento feito não está sendo desarticulado hoje antes de ter o efeito que era esperado? Ele foi um investimento que não foi acompanhado de uma estratégia de aproveitamento desses pesquisadores? Como o senhor analisa esse investimento?

Eu até discordo do termo do investimento, porque isso não é investimento, isso é gasto. Investimento é formação bruta de capital fixo, mas isso é outro detalhe, não vem ao caso. Toda a política cognitiva brasileira sempre esteve pautada na ideia de que a empresa privada é o alavancador do desenvolvimento. Não apenas do crescimento, mas do desenvolvimento. A esquerda nunca propôs outra rota de desenvolvimento do País que não passasse pela empresa privada. Ora, o governo neoliberal, sobretudo a partir de meados da década de 1990, destinou uma parcela importante do gasto de ciência e tecnologia para alavancar a inovação, a pesquisa e desenvolvimento nas empresas. Qual era a expectativa? Era que essas empresas se tornassem mais competitivas e, dessa forma, carreassem para o interior do País uma parte maior da apropriação de mais-valia no plano internacional. Dessa maneira, através de um mecanismo de transbordamento, as empresas, ao se tornarem mais lucrativas, permitiriam uma melhoria das condições de vida da classe trabalhadora. Basicamente, era essa a lógica. Daí o fato de a política de ciência e tecnologia não ter sido alterada. Nós permanecemos com uma orientação em tudo semelhante ao que os governos neoliberais, sobretudo os do Fernando Henrique, propuseram nessa área.

Existem vários mal-entendidos e várias ingenuidades nessa postura, mas eu vou citar apenas uma, que me parece a mais importante, pelo menos no plano ideológico, que é o fato de que mesmo que as empresas se tornassem mais competitivas, qual é a probabilidade de que elas fossem transferir para a classe trabalhadora os benefícios dessa maior competitividade? Essa hipótese não encontra lastro na realidade observada no Brasil. Nós somos uma sociedade extremamente desigual, uma sociedade em que muito dificilmente ocorreria esse repasse que se pretendia e que, de certa forma, ocorreu em países de capitalismo avançado, onde, sim, houve um processo de redistribuição de renda paralelo ao crescimento da competitividade das empresas dessas países. O que a gente critica nesse terreno ideológico ou político é a essa ideia ingênua de que isso poderia acontecer. Além disso, tem essas considerações a respeito da nossa condição periférica, na qual as empresas não têm porque ganhar dinheiro fazendo pesquisa. As empresas ganham dinheiro de outra forma. Tem essa crença ingênua de que o empresariado brasileiro é atrasado, que o empresário brasileiro não sabe a importância da pesquisa, da inovação, que é uma coisa que a direita fala e a esquerda, lamentavelmente, repete. Na realidade, se você pensar bem, o Brasil durante muito tempo teve a taxa de juros mais alta do mundo. Ora, se alguém produz um alfinete no Brasil, é porque a taxa de lucro é mais alta que a taxa de juros. As empresas multinacionais do setor automobilístico dizem que a sua taxa de lucro no Brasil é três vezes a taxa de lucro nos países de origem. Que empresário atrasado é esse que consegue ter uma taxa de lucro, senão a maior, uma das maiores do mundo? Esse mito de que o empresário brasileiro é atrasado e por isso não faz pesquisa, nós temos que pensar sobre isso. No meu entender, o empresário brasileiro, se é que pode se chamar assim as multinacionais e o capital nacional, ele absolutamente não é atrasado, ele é um dos melhores do mundo. Por isso que ele não faz a pesquisa.

Ele é o melhor do mundo em ganhar dinheiro.

Exatamente. Mas a empresa é para ganhar dinheiro. Quem gosta de fazer pesquisa é pesquisador.

Nesse cenário, onde se encaixa e como você vê o Future-se?

O que eu posso dizer é que o Future-se é uma reedição de algo que está há muito tempo presente no cenário da política cognitiva brasileira. Essa política tem um ator hegemônico, que é a comunidade de pesquisa. Na realidade, é o alto clero da ciência dura que formula, implementa e avalia a política cognitiva. Esse alto clero da ciência dura está muito mais em contato com os seus pares no exterior do que com a realidade brasileira. Então, a maior parte da pesquisa feita no Brasil não tem uma relação com a nossa realidade local. A nossa agenda de docência e de pesquisa é uma agenda mimética. Isso está fundamentado num mito de que tecnociência é neutra e pode ser utilizada para qualquer projeto político. O que nós temos que fazer, segundo essa visão, é o que fazem os países de capitalismo avançado. E esse conhecimento, mal ou bem, vai servir para implementar o nosso projeto, e agora estou falando da esquerda, de construção de uma sociedade mais igualitária, justa e responsável do ponto de vista ambiental. Nós já vimos esse filme antes. Nós vimos como o nascente socialismo na União Soviética se burocratizou porque importou uma tecnologia capitalista, segmentada, hierarquizada, que precisava de um patrão para funcionar. Como não tinha patrão, criou-se a figura do burocrata, que fez funcionar a tecnologia capitalista e, quando ganhou poder na produção, passou a dominar a sociedade como um todo. Hoje tem mais milionários por metro quadrado em Moscou do que em Manhattan. Quem são esses milionários? São os burocratas, filhos dos burocratas, netos e etc, que se apropriaram da riqueza amealhada pelo povo soviético.

Eu estou contextualizando dessa forma para a gente perceber que esse alto clero da ciência dura tem uma perspectiva de mudança social, mas acham que esse conhecimento, que é criado no capital, para o capital e pelo capital, pode ser usado para construir uma sociedade melhor. Esse é o ponto central da nossa reflexão que conduz ao tema da economia solidária e da tecnociência solidária. Quer dizer, a ideia de que o capitalismo brasileiro não tem saída, sobretudo numa situação internacional que nós temos hoje, mas também do ponto de vista do pacto entre as elites. O próprio pacto federativo está se desfazendo. Isso torna cada vez mais difícil a gente reprisar aquilo que ocorreu em meados dos anos 2000, onde se conseguiu cooptar essa burguesia, a classe proprietária, para um projeto de atenuação da desigualdade econômica e social brasileira. Quer dizer, os empresários brasileiros pagaram para ver. Noventa por cento do investimento no Brasil é investimento privado. O que gera emprego é a empresa, o investimento. Isso se conseguiu fazer. Agora, a probabilidade da indústria nacional hoje investir para gerar emprego é muito baixa. Então, todos esses elementos aí fazem com que a gente não possa acreditar, não possa confiar na viabilidade do programa Future-se.

A crítica que nós fazemos para chamar a atenção de que esse círculo virtuoso que o Future-se pensa em implementar, de que as empresas vão demandar conhecimento da universidade e que a universidade vai poder vender conhecimento e poder se autofinanciar a partir daí, não resiste a uma avaliação mais séria.

Não condiz com essa trajetória que o senhor está expondo.

Exatamente. A gente utiliza dois procedimentos para analisar a política pública. Um que a gente chama de cross-section, que quer dizer inferir o comportamento dos atores sociais na periferia do sistema capitalista com o que ocorre nos países avançados. A gente compara com o que é nos EUA. Nos EUA, a gente vê que, do total de gasto em pesquisa da empresa estadunidense, somente 1% é contratado junto à universidade. Ou seja, 99% é feita intramuros. Quando a gente pergunta para as pessoas, mesmo as pessoas da área, dizem que é 50%, 30%. Mas ninguém diz que é somente 1% o que a empresa contrata com a universidade. Ora, se lá é assim, imagina como que é aqui. O que a gente tem que entender, e aí eu volto ao exemplo lá dos 90 mil e dos 68, é que o que é importante nos EUA para a empresa não é conhecimento desincorporado, é o conhecimento incorporado em pessoas. No Brasil, esse conhecimento incorporado em pessoas não é utilizado. Então, a probabilidade de que as empresas brasileiras venham a demandar resultado de pesquisa da universidade brasileira é uma probabilidade extremamente baixa.

Por outro lado, por coincidência, o gasto em pesquisa das empresas é igual ao custo da universidade estadunidense. É uma coincidência, mas é interessante que esse 1% que vem de contratos para P&D com as empresas é também 1% do custo da universidade estadunidense. Ora, esse 1% é uma média. Há exceções. O MIT tem 15% do seu custo amortizado com projeto de pesquisas contratados por empresas. A gente não tem dados sobre o Brasil, mas a gente tem o caso da Unicamp, que seria o nosso MIT, é a universidade que mais contratos de pesquisa tem com empresas. Se você levar em conta que apenas 1,5% do orçamento da Unicamp vem de projetos de pesquisa com as empresas, você se dá conta que é totalmente absurdo pensar que a universidade pública brasileira possa se autofinanciar de uma maneira significativa vendendo pesquisa para empresa. Isso não vai ocorrer. No entanto, essa é a estrutura do Future-se.

Claro que o Future-se propõe outras coisas que nem precisa mencionar o quão absurdo, obscurantista e contrário ao caráter que nós sempre quisemos dar a universidade pública brasileira, como venda de ativos, transformação da universidade em OS, que é uma privatização branca. Isso tudo tem sido bastante criticado por vários colegas em vários artigos e análises que têm sido feitas. Mas, o que a gente está analisando é uma coisa talvez posicionada do ponto de vista ideológico, que é a inviabilidade econômica e estrutural do programa Future-se. Ou seja, não vai rolar. Não vai rolar simplesmente porque o papel da universidade, no mundo inteiro, não é produzir conhecimento para a empresa. O papel da universidade no mundo capitalista é produzir recursos humanos capacitados para a empresa. Mas isso a empresa brasileira não tem interesse. Então, é uma situação complexa que não é percebida de uma forma muita clara pela nossa esquerda.

O que se vislumbra para o futuro da universidade e da ciência e tecnologia nacional a curto prazo?

O que a gente fala, meio de brincadeira, citando o Dadá Maravilha [ex-jogador de futebol], que falava na solucionática, é que a gente tem que dar uma no cravo e outra na ferradura. Qual é a solucionática? O que a gente está propondo. A gente está simplesmente constatando que a maior parte das necessidades coletivas do Brasil, para não falar das necessidades da maioria da população, são necessidades que têm um conteúdo cognitivo muito denso e complexo. Em outras palavras, você não tem como resolver o problema de água de potável, de saneamento de 100 milhões de brasileiros, com tecnologia de prateleira. Não tem conhecimento técnico e científico para resolver os problemas de saneamento, de saúde, de educação, de transporte, etc e tal, de uma maneira eficaz sem criar um enorme descompasso do ponto de vista social, econômico e ambiental.

O que eu estou chamando a atenção é que você tem demandas técnico e científicas extremamente sofisticas e complexas que dificilmente poderiam ser equacionadas por uma empresa ou mesmo por um pool de empresas ou por um think tank muito sofisticado da melhor empresa de consultoria do mundo. Não tem. O potencial que nós temos na universidade pública brasileira de cruzamento disciplinar para atacar essas demandas cognitivas complexas é algo que está totalmente subutilizado porque nós estamos adotando uma agenda de pesquisa mimética, importada. Nós fazemos aquilo que os países líderes consideram a tecno-ciência sofisticada, o que a nossa comunidade de pesquisa considera que é o nosso dever fazer. Então, no centro de toda essa problemática, você tem o mito da neutralidade da tecno-ciência, que é um mito, lamentavelmente, ainda muito presente no pensamento marxista. O Marx é meio dúbio na sua obra. Tem momentos que ele é muito determinista e neutro, em outros momentos não. Tem uma frase muito citada da Ideologia Alemã em que ele diz que o moinho de vento nos deu a sociedade feudal e a máquina a vapor nos dará o capitalismo industrial. Quer dizer, essa determinação do tecnológico para o econômico é algo muito presente ainda na visão marxista. Se você pensar que a esquerda com maior sofisticação do ponto de vista da realidade, no mundo inteiro, continua dizendo mais ou menos o seguinte: ‘Olha, a tecno-ciência ou as forças produtivas se desenvolvem linear e inexoravelmente. A de hoje é melhor que a de ontem, a de amanhã vai ser melhor que a de hoje. Elas tensionam as relações sociais de produção, dando origem a modos de produção cada vez melhores’.

Então, é por isso que você vai do feudalismo, escravismo, capitalismo, socialismo ao comunismo. Porque você tem um motorzinho das forças produtivas impulsionando a sociedade. Esse pensamento está muito arraigado na esquerda brasileira, sem falar na esquerda de uma forma geral. Esse pensamento aponta para o seguinte: ‘Nós temos que fazer o que fazem os países líderes em ciência e depois a gente vê como usa isso para alcançar o socialismo’. Como eu te disse antes, nós já vimos esse filme. Uma das críticas que me parecem mais importantes ao socialismo real é justamente essa a que eu acabei de chamar a atenção. Nós corremos o risco de, passado esse cataclisma que estamos vivendo, repetir em um momento de ascenso do movimento popular os erros que temos cometidos, seja no passado recente, seja do ponto de vista da própria interpretação teórica da relação entre forças produtivas e relações sociais de produção. Mas isso é uma história bem mais complexa do que o Future-se.

Basicamente, em relação ao Future-se, o que a gente está focando é a inviabilidade dele. Mas é claro que existem setores da comunidade de pesquisa brasileira que inspiram ou até escrevem o que Future-se coloca. Essa ideia do Future-se está há muito tempo na praça. Ela tem, no mínimo, 20 anos. Porque para eles é conveniente. Se você pensar o pessoal que faz pesquisa na universidade e recebe recurso público, porque é só o que chega para fazer pesquisa, eles dizem: ‘Olha, eu recebi o compromisso de fazer uma pesquisa, recebi o dinheiro e não posso gastar. A lei 8.666 não me permite gastar na velocidade que eu preciso, as universidades têm uma estrutura extremamente burocratizada, então eu quero, sim, transformar em OS, porque dessa forma eu vou poder honrar o meu compromisso, etc, etc’. Eu chamo a atenção de que não é um problema de desonestidade ou de coisa parecida, mas de que eles acham que o papel deles é fazer essa ‘pesquisa de ponta’, sem perceber que nós somos 210 milhões de brasileiros, 160 milhões em idade de trabalhar e desses apenas 30 têm carteira assinada. Você tem 80 milhões de brasileiros que nunca tiveram emprego e nunca vão ter. Haja vista o que tende a ocorrer com a indústria 4.0, a inteligência artificial, tudo isso vai ser um descalabro. Não é uma coisa conjuntural o que estamos vivendo.

E não estamos preparados para isso.

E justamente aí vem a proposta da economia solidária. Ela é uma proposta que tem como meta de longo prazo uma sociedade socialista baseada na propriedade coletiva dos meios de produção e na autogestão, e não na propriedade privada e no controle da classe operária. Ao mesmo tempo, é uma solução de curto prazo para evitar o que pode ocorrer no Brasil, o que nós já estamos vivendo há algum tempo, que é uma guerra civil, uma situação em que a classe trabalhadora está extremamente fragilizada. A economia solidária aparece ao mesmo tempo como esse proposta de longo prazo e uma proposta de mais curto prazo de que é necessário articular políticas públicas que alavanquem, em particular, utilizando o poder de compra do estado, para demandar bens e serviços passíveis de serem produzidos agora já pela economia solidária. Você tem 18% do PIB que é compra pública e que é dinheiro que o estado aloca junto às empresas para adquirir os bens e serviços em troca do imposto que pagamos. Só que tem uma enorme quantidade de coisas que não precisam ser feitas por empresas. Comida por preso, para escola, uniforma, poda de jardim, conservação de praça, conservação de estrada, uma série de coisas que já agora podem ser realizadas pelos empreendimentos solidários. E você tem uma série de coisas que, caso nós tivéssemos a universidade alavancando a pesquisa e o desenvolvimento nesse direção, nós poderíamos ganhar uma eficácia, uma eficiência e uma efetividade bastantes grandes, permitindo uma competição com as empresas privadas. Isso é possível e acho que essa é a alternativa que estamos propondo ao Future-se. Agora, é claro que isso envolve um mudança de mentalidade na nossa comunidade universitária e o Future-se é uma reedição mais sofisticada daquilo que já está sendo proposto há muito tempo.


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