16/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro pune o “mensageiro” e reforça que transparência não é seu forte

Publicado em 06/09/2019 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Bolsonaro exonerou o presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Luiz Augusto de Souza Ferreira. Ele havia acusado o secretário de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia, Carlos da Costa, de fazer "pedidos não republicanos".

Creio que você, como eu, ficou bem curioso em saber o que eram os tais "pedidos não republicanos". Em um primeiro momento, Bolsonaro também parecia dividir conosco tal sentimento. Tanto que, no último dia 2, disse que ordenou ao ministro da Economia, Paulo Guedes, investigar o caso.

"Não pode ter uma acusação dessas. Vão dizer que ele ficou lá porque tem uma bomba debaixo do braço. Não é esse o meu governo. Já determinei para apurar e um dos dois, ou os dois, perderão a cabeça", atestou.

"Vai lá, mito!!! Mostra mesmo a safadeza desses caras!", "Se fosse os petistas imundos, ia tudo pra baixo do tapete", "Capitão botandu (sic) ordem na casa!" e outras mensagens similares circularam pelas redes. Pelos perfis, provavelmente eram robôs ou ciborgues. Mas o que importa era o sentido da construção da narrativa.

Parecia até aquele Bolsonaro da campanha, que prometeu jogar água sanitária na administração pública e dar transparência a tudo com o objetivo de acabar com a corrupção.

Pena que durou menos que um "talkey".

Questionado sobre a situação após a demissão de Ferreira ser publicada, nesta quarta (4), ele afirmou que o caso "está decidido" e que "o prejudicado vai ao MP [Ministério Público], onde ele quiser e diz o que ele viu de errado no governo e pronto. Instaura um processo" – no registro do jornal O Globo.

Ou seja, não deu satisfação à sociedade, não disse se Ferreira mentiu, não negou os tais "pedidos não republicanos" e terceirizou ao Ministério Público o trabalho de verificar se um de seus subordinados estava fazendo ou não sacanagem com dinheiro público.

O ex-presidente da ABDI havia revelado à revista Veja os tais pedidos não republicanos sem dizer quais seriam. Depois disse ao jornal O Estado de S.Paulo que sofreu pressão para usar recursos a fim de alugar salas comerciais para escritórios da secretaria. Costa retrucou dizendo que o desempenho de Ferreira era insuficiente e que tudo isso não passava de calúnia.

Não é possível dizer quem estava certo ou errado porque, até agora, o governo se calou sobre isso.

O episódio deveria deixar um gosto agridoce na boca dos seguidores mais fiéis do presidente que acreditam que ele é um baluarte na luta contra a corrupção e um herói da transparência.

Mas se, até agora, mesmo com funcionária fantasma vendendo açaí, auxilio-moradia tendo imóvel próprio, carona para familiares em helicóptero das Forças Armadas, nepotismo ao indicar o próprio filho para embaixador nos Estados Unidos, laranjal do ministro do Turismo, negócios obscuros envolvendo o filho senador e tendo um Queiroz para chamar de parça, eles não viram nada de errado, não é com uma denúncia mal explicada envolvendo funcionários de uma agência que poucos ouviram falar que eles vão começar a se preocupar.

Bolsonaro usou padrão semelhante àquele que adota com reportagens que o desagradam: ataca o mensageiro e não se preocupa com o conteúdo da mensagem. Vai provando, com isso, que a questão não é a existência de problemas, mas ser importunado por eles.

Novas denúncias

Em entrevista a VEJA, o ex-presidente da ABDI cita dois casos em que interesses escusos estariam operando na máquina pública: o projeto do governo para acabar com a tomada elétrica de três pinos e a escolha de uma empresa que ficará responsável pela certificação dos processos digitais do Inmetro. Ambos, segundo Guto, atrelam gigantescos interesses comerciais a financeiros.

Em 2006, o ex-presidente Lula sancionou uma lei que obrigava as indústrias a produzir aparelhos eletrodomésticos com a controversa tomada de três pinos, que seria mais segura. O governo Bolsonaro quer revogar essa lei e mudar outra vez o padrão das tomadas. Guto conta que, embora a ABDI não tenha rigorosamente nada a ver com esse projeto, o secretário Carlos da Costa encomendou ao órgão um parecer que defenda a mudança. “A nota técnica da ABDI daria respaldo à proposta no meio industrial e no Congresso. Obviamente, isso teria um impacto muito grande”, explica o ex-presidente da agência, que se recusou a produzir o documento. “Substituir a tomada de três pinos é o sonho de consumo do Carlos. Depois disso, muita gente vai ficar bilionária no Brasil”, diz ele, insinuando o malfeito, mas sem apresentar provas.

A segunda acusação também envolve o secretário do ministro Paulo Guedes. De acordo com o ex-presidente da ABDI, Carlos da Costa estaria por trás da estruturação de outro negócio estranho e bilionário — a certificação digital. O Inmetro vem desenvolvendo um projeto para combater fraudes nas bombas dos postos de combustível. Guto afirma que a mudança vai beneficiar diversas empresas, entre elas a Cermob Tecnologia, que, segundo sua versão, seria ligada a pessoas próximas ao secretário de Produtividade. Procurado, Carlos da Costa não quis se pronunciar. Em nota, o Ministério da Economia disse que Guto “não apresentou quaisquer provas de ilegalidade” e esclareceu que até o momento não foi detectada nenhuma ilicitude. José Carlos da Silva Neto, sócio da Cermob, diz que o próprio setor de distribuidores de combustível, ao qual presta consultoria, se organizou para implantar a certificação digital. “O setor resolveu trocar todas as bombas de combustível. Se for calculado todo o investimento privado, o valor chega a 8 bilhões de reais”, afirma o empresário, garantindo que não receberá recursos públicos. Ou seja: a acusação de Guto não faria sentido.

Indicado pelo ex-ministro do Desenvolvimento Marcos Pereira (Repu­blicanos-­SP), Guto Ferreira assumiu a ABDI em junho de 2016. A agência desenvolve projetos nas áreas de inovação e competitividade da indústria brasileira. Após ser convidado para continuar no governo de Bolsonaro, ele passou a prestar contas ao secretário Carlos da Costa. Desde março, no entanto, os dois começaram a se estranhar. O primeiro bate-boca ocorreu quando o ex-presidente da ABDI questionou a intenção do chefe de alugar um espaço em São Paulo ao custo de 500 000 reais por ano. A conta seria paga pela agência, que já tinha um escritório na cidade, sem custo. “O TCU vai engolir eu e você juntos”, alertou Guto Ferreira. “Nunca pedi nem nunca pedirei nada que não seja o correto”, rebateu Costa. As mensagens vazaram, e o secretário começou a suspeitar de seu subordinado.

Em meio à disputa, surgiram dos­siês que envolvem os dois servidores em acusações variadas. Guto, por exemplo, foi acusado de ter ligações com políticos de oposição ao governo. Insatisfeito, o ex-presidente da ABDI relatou a situação ao ministro Paulo Guedes. Pouco tempo depois, ele também reuniu todas as mensagens trocadas com Carlos da Costa, as denúncias, e encaminhou tudo ao ministério. “Falei tudo para o Paulo Guedes”, garante ele. E acrescenta: “Fiquei sabendo que o ministro se encontrou com o presidente Bolsonaro e disse que, se houvesse apuração sobre o caso, ele entregaria o cargo. Não tem sentido não haver apuração, não tem sentido o ministro falar que entrega o cargo”. Se depender do ex-presidente da ABDI, a confusão no posto Ipiranga está longe de acabar. Ele pretende continuar levando adiante essa batalha. “Fiz uma escolha de não baixar a cabeça para vagabundo. Fiz uma escolha de não baixar a cabeça para pedido errado”, afirmou em discurso a funcionários da agência, horas antes de receber a notícia oficial sobre sua demissão. O Ministério da Economia declarou que, após a demissão de Guto, determinou a abertura de uma investigação.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *