19/04/2024 - Edição 540

Poder

Capitão submete meio ambiente à lógica do caos

Publicado em 30/08/2019 12:00 -

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Depois de difamar ONGs, Jair Bolsonaro desperdiçou o tempo de governadores da região amazônica, chamados a Brasília para uma reunião, com o que chama de "indústria da demarcação de reservas indígenas". Se atrasarmos o relógio, veremos que essa é uma obsessão antiga. A reserva Yanomami, citada pelo presidente, foi homologada em 1992. Num pronunciamento de 1995, o então deputado Jair Bolsonaro disse o seguinte:

"Com a indústria da demarcação das terras indígenas, assim como Quebec quase se separou do Canadá, num curto espaço de tempo, os Yanomamis poderão, com o auxílio dos Estados Unidos, vir a se separar do Brasil". Já lá se vão 24 anos. E a realidade que Bolsonaro previa para um "curto espaço de tempo" ainda não chegou.

Os Yanomamis continuam sob o descaso do Estado brasileiro, com as terras submetidas aos mineradores ilegais. Os Estados Unidos ainda não invadiram a Amazônia. Agora eles são mocinhos. Donald Trump alia-se a Bolsonaro numa guerra de tuítes contra o neocolonizador francês Emmanoel Macron.

Simultaneamente, o Brasil vive o caos ambiental. O governo afrouxa a fiscalização, facilitando a vida de criminosos. Com o Tesouro quebrado, o presidente esnoba doações de nações ricas. Rasga radiografias do Inpe em vez de combater o câncer florestal. Culpa ONGs pela doença. Retratato como um vexame planetário, o Brasil mobiliza suas forças armadas para fazer por pressão o que deixou de fazer por obrigação.

Esse modelo decisório caótico é tão lógico que, se Bolsonaro fosse uma dona de casa, guardaria açúcar numa lata de sal na qual estaria escrito café.

Sem verba

Num instante em que Jair Bolsonaro esnoba doações de países ricos e assegura que o Brasil não precisa de socorro externo para preservar a floresta amazônica, o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) reconheceu: falta dinheiro e estrutura para realizar a fiscalização ambiental no país. Disse que o GEF, Grupo Especializado de Fiscalização, uma espécie de pelotão de elite do Ibama, dispõe de apenas 13 fiscais em todo país.

Em entrevista ao programa Roda Viva, Salles lamentou a falta de auxílio dos governos estaduais. "A nossa estrutura por si só, sem o apoio dos estados, não é suficiente". Contou, por exemplo, que coleciona pedidos frustrados de colaboração com o governo paraense. Foram "doze ofícios pedindo apoio policial, desde fevereiro, para operações no estado do Pará".

Na prática, o controle da fiscalização ambiental foi transferido para as Forças Armadas pelo menos até a primeira quinzena de setembro. Para atenuar o drama financeiro, o ministro Paulo Guedes (Economia) desbloqueou R$ 39 milhões do Ministério da Defesa. Recorreu-se à farda depois de uma sequência de tolices protagonizadas por Bolsonado —do questionamento de dados científicos sobre o desmatamento às agressões aos doadores estrangeiros, passando pela calúnia de atribuir às ONGs a responsabilidade pelo surto de queimadas.

Por que o governo não agiu antes de a crise ambiental virar uma manchete planetária? Ricardo Salles afirmou que os militares só poderiam atuar depois que o presidente editasse decreto autorizando a soldadesca a exercer o "poder de polícia" em território nacional. Batizada de GLO, Operação de Garantia da Lei e da Ordem, esse tipo de atividade está prevista na Constituição. Faltou esclarecer por que Bolsonaro agravou deliberadamente a crise que abriu os quarteis.

A certa altura, Salles comentou o caso batizado de "dia do fogo". Trata-se de um conluio supostamente urdido num grupo de WhatsApp por fazendeiros do sudoeste do Pará, para provocar queimadas em série ao longo da BR-163 no último dia 10 de agosto. O ministro reconheceu que o Ibama foi avisado pelo Ministério Público paraense com três dias de antecedência. Acionou a polícia estadual. E nada.

Um dos entrevistadores lembrou que também a Força Nacional de Segurança, subordinada ao Ministério da Justiça, foi acionada pelo Ibama. E Salles, em timbre de resignação: "Pois é".

Criticado por ter desossado o aparato de fiscalização ambiental de sua pasta, o ministro se escorou no funcionalismo que desprestigia. "A equipe nossa tem tomado as medidas que são possíveis". Atribuiu a falta de cooperação estadual à penúria financeira e à existência de governos novos. "O fato é que, havendo alinhamento com os estados, dá para fazer melhor trabalho. Não havendo alinhamento, isso fica mais prejudicado."

Perguntou-se a Ricardo Salles por que um governo descapitalizado sabota o Fundo Amazônia, maior projeto de preservação ambiental do planeta, custeado com verbas doadas por Noruega e Alemanha. "Nós não sabotamos o fundo", afirmou o ministro, antes de reiterar o lero-lero habitual sobre as tentativas da gestão de Bolsonaro de alterar o funcionamento de um programa que recebeu R$ 3,4 bilhões em doações nos últimos dez anos.

Após muita desconversa, o ministro foi ao ponto: "O governo do presidente Bolsonaro é um governo eleito em 2018. Um governo que trouxe uma escolha política da sociedade brasileira". Acrescentou: "Entre outras questões que mudaram com a eleição do presidente Bolsonaro também está o direito ou a legitimidade ou a vontade de ter maior direcionamento, maior participação nos destinos da atribuição das verbas ou dos projetos ou daquilo que se faz no âmbito do Fundo Amazônia".

É improvável que o eleitor de Bolsonaro tenha lhe concedido o voto para que o capitão rasgasse dinheiro. Entretanto, o vaivém ambiental da atual gestão não produziu senão a suspensão de verbas geridas sem a interferência dos doadores e sob supervisão do BNDES. A Alemanha reteve o envio de R$ 150 milhões. A Noruega bloqueou o repasse de R$ 133 milhões. Bolsonaro deu de ombros. Fez gracejos sobre as florestas alemãs e ironizou o hábito dos noruegueses de caçar baleias.

Pouco antes do início da entrevista de Ricardo Salles, o Planalto decidira refugar também a mais recente oferta de auxílio financeiro internacional. Bolsonaro recusa-se a aceitar os US$ 20 milhões oferecidos pelo G-7, grupo que reúne sete das nações mais ricas do mundo.

Informado de que o chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni confirmara a novidade, Salles tentou estabelecer um contraponto. Mas soou contraditório. Primeiro, disse ter lido na imprensa que a doação seria materializada na forma de um envio de aeronaves canadenses, para lançar água sobre as chamas. "Sendo assim, me parece ajuda importante de ser aceita." E quanto a Onyx? "Ele tem um papel político. […] Eu sou ministro do Meio Ambiente. E tenho outra visão técnica."

De repente, Salles trocou de figurino. Disse que não lhe cabe mensurar "se esse acréscimo de aeronaves é necessário ou não." Heim?!?" Sou mais político do que técnico. Então, essa definição sobre a pertinência da necessidade do emprego desses equipamentos deverá ser corroborada pelos técnicos, seja do Ministério da Defesa ou do grupo de combate ao fogo nos estados ou federal."

Foi como se o entrevistado se desse conta de sua nova condição temporária. Enquanto os comandantes militares derem as cartas, Salles será uma espécie de ex-ministro no exercício do ministério. Vem daí a desenvoltura com que Onyx, cuja sala está separada do gabinete presidencial por um lance de escada, se imiscui com tanta desenvoltura no ambiente inteiro do hipotético ministro do Meio Ambiente.


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