26/04/2024 - Edição 540

Saúde

Antibióticos sob ameaça

Publicado em 27/08/2019 12:00 -

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O paciente tem uma infecção. Uma infecção grave. A medicação não faz efeito. Outro remédio. Nada. Um terceiro. Sem resultado. O paciente contraiu uma bactéria, vírus ou parasita resistente. A situação acima, infelizmente, já é frequente e pode se tornar cada vez mais comum. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que no ano 2050, caso não sejam tomadas ações efetivas para controlar os avanços da resistência aos antimicrobianos, 10 milhões de pessoas irão morrer por ano por conta de infecções por microrganismos resistentes, uma a cada 3 segundos. Esse número superaria mortalidade relacionada ao câncer, atualmente com 8 milhões de óbitos por ano.

Hoje em dia, o número de pessoas que morrem em decorrência de infecções por cepas resistentes de bactérias causadoras de infecções comuns, ou que adquirem uma versão do vírus HIV, do bacilo da tuberculose ou do protozoário da malária que não reagem a medicamentos somam 700 mil por ano no mundo, conforme os dados compilados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em relatório com as diretrizes nacionais para o combate ao problema. Anualmente, somente de tuberculose resistente a múltiplos medicamentos morrem cerca de 200 mil pessoas todos os anos, e “possivelmente esses números são subestimados devido à fraca vigilância em muitos lugares do mundo”, aponta o texto. “É assustador e alarmante” resumiu a microbiologista Ana Paula Carvalho Assef, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em evento promovido sobre o tema em junho, no Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz).

A história dos antibióticos, iniciada com a penicilina, descoberta pelo biólogo inglês Alexander Fleming, em 1928, sempre foi uma corrida contra o tempo, pois alguns anos após o desenvolvimento de novas substâncias, já eram detectadas cepas resistentes. Esse tempo vem diminuindo cada vez mais. A farmacêutica Mara Rúbia Gonçalves, que integra a equipe da Gerência de Vigilância e Monitoramento em Serviços de Saúde (GVIMS) e da Gerência Geral de Tecnologia em Serviços de Saúde (GGTSS) da Anvisa, alerta para o fato de que há 30 anos não são desenvolvidos novos princípios ativos de antibióticos. “Há uma falta de interesse e de investimento das indústrias farmacêuticas. Por um lado, as patentes expiram em alguns anos e os medicamentos deixam de ser lucrativos, por outro as bactérias desenvolvem resistência em relativamente pouco tempo”, contou ela, quando apresentou o Programa Nacional de Prevenção e Controle de Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde 2016-2020 no evento do INCQS. Em alguns casos, como ela mostrou, as cepas resistentes são detectadas antes mesmo do lançamento comercial do remédio.

“As bactérias nunca nos deixam descansar”, resumiu Ana Paula. Ela lembrou que as bactérias resistentes são velhas conhecidas das Unidades de Tratamento Intensivo, mas que elas vêm causando um percentual cada vez mais alto das infecções que acometem as pessoas internadas nesses ambientes. “Elas provocam infecções primárias de corrente sanguínea, trato urinário e respiratórias associadas à ventilação mecânica, principalmente”. Das infecções da corrente sanguínea causadas pela bactéria Acinobacter spp no país em 2015, 77,4% foram causadas por cepas que não cedem a potentes antibióticos da família dos carbamapenemas. Isso fez com que o microrganismo entrasse para a lista dos 12 patógenos listados pela OMS como “críticos”, cujo combate é prioritário (ver box sobre superbactérias). Na área hospitalar, a Anvisa monitora as infecções da corrente sanguínea em UTIs, associadas ao uso de instrumentos para aplicação de remédios, como o cateter. Somente em 2015, foram mais de 25 mil infecções desse tipo, a maioria causada por bactérias com altos índices de resistência.

A prevenção a infecções e o saneamento continuam sendo as melhores formas de controlar o desenvolvimento de resistência. As bactérias não estão apenas nos hospitais, estão em todo o ambiente. “A presença de genes de bactérias que conferem resistência, como a KPC, já foi detectada no Brasil em praias, rios e lagos, inclusive na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro”, destacou Ana Paula. “A presença já foi constatada em lugares onde o esgoto hospitalar é despejado, inclusive após tratamento”. Em linguagem leiga, isso quer dizer que a bactéria é tão resistente que sobreviveu ao tratamento do esgoto.

PREOCUPAÇÃO GLOBAL

 A resistência aos antimicrobianos é uma das maiores preocupações globais em saúde pública. Apesar de ocorrer naturalmente, o uso inadequado dos antibióticos na saúde humana e animal tem agravado o problema. Em 2015 a OMS lançou o plano de Ação Global em Resistência a Antimicrobianos. Um estudo do pesquisador britânico Jim O’Neill, que corroborou o alerta emitido pela OMS, prevê que as perdas econômicas somarão 100 trilhões de dólares, de 2014 a 2050, com perdas de vidas, gastos com tratamentos e internações, além de perdas de produtividade.

Os efeitos na economia também podem ser devastadores. Países como o Brasil estariam sob o risco de perder até 4,4% de seu PIB em 2050, segundo estimativas do Banco Mundial. “Se não tomarmos medidas importantes para melhorar a prevenção das infecções e não alterarmos nossa forma de produzir, prescrever e utilizar os antibióticos, o mundo sofrerá uma perda progressiva desses bens de saúde pública mundial, com repercussões que serão devastadoras”, alertou Keiji Fukuda, subdiretor geral da OMS para Segurança Sanitária, em documento publicado pela instituição já em 2014.

ONE HEALTH

Considerar o problema da resistência antimicrobiana uma questão apenas da assistência à saúde humana não é o caminho, apontam os especialistas. Isso porque há resíduos de antibióticos usados na produção de alimentos, na pecuária e na criação de e aves e porcos, por exemplo. Os medicamentos utilizados na saúde animal são utilizados também em animais saudáveis, no melhoramento da performance dos rebanhos, e tudo isso também causa resistência. “Existe uma falta de conhecimento do problema e os veterinários no país ainda prescrevem antibióticos para melhorar o desempenho dos animais de produção”, afirmou a professora de Medicina Veterinária Bruna Torres, da Universidade Federal de Viçosa. A pesquisadora explicou que um microrganismo transfere para o outro os genes que concedem o “superpoder” da resistência, e assim diferentes espécies logo “aprendem” a viver e a se reproduzir no ambiente com a presença de antibióticos. “Ao nos alimentarmos com a carne e derivados de animais que foram tratados maciçamente com antimicrobianos, bactérias presentes na nossa flora intestinal também podem desenvolver resistência”.

Por isso, conforme explicou Bruna, o mote dos documentos da OMS sobre o problema da resistência antimicrobiana é a abordagem One Health (Saúde Única), que preconiza um envolvimento multissetorial entre saúde humana, ambiental e produção de alimentos. “Os alimentos são considerados matrizes para a troca de genes de resistência entre as bactérias”, resumiu. Bruna Torres explicou como as bactérias “ensinam e aprendem” geneticamente com outras a sobreviver aos antibióticos, através de mecanismos de transferência de genes que fabricam as enzimas da resistência. A veterinária lembrou que é proibido no país utilizar antibióticos como penicilinas e cefalosporinas para melhorar o desempenho dos animais. Em 2018, a colistina, um antibiótico considerado a última opção de tratamento a bactérias resistentes, também teve seu uso proibido em animais saudáveis.

As principais causas que aceleram ou agravam o problema são uso impróprio de antimicrobianos; falta de programas de prevenção e controle de infecções inadequados ou inexistentes; má qualidade dos medicamentos; baixa capacidade laboratorial; vigilância inadequada; regulação do uso de antimicrobianos insuficiente (veja ilustração abaixo). Outros fatores associados ao agravamento da resistência em âmbito mundial são programas de prevenção e de controle de infecção inexistentes ou insuficientes, baixa qualidade dos medicamentos, vigilância inadequada e regulação insuficiente quanto ao uso de antimicrobianos.

Se bem utilizados, no entanto, os antibióticos salvam muitas vidas. O problema da resistência é complexo, porque, de um lado, nos países em desenvolvimento ainda se observam problemas no acesso adequado aos antimicrobianos, como lembraram as pesquisadoras. Os estudos mostram que as mortes em todo o mundo por pneumonia poderiam ser reduzidas em 75% se os doentes tivessem acesso à assistência correta, com o uso de antibióticos. “O enfrentamento da resistência em muitos países também perpassa o acesso a diagnósticos e à assistência oportunos e às vacinas e outras medidas de prevenção”, registra o relatório da Anvisa de 2018.

“A luta contra a resistência antimicrobiana passa pela prevenção de infecções e atitudes simples, como lavar as mãos, que continuam sendo de grande eficácia”, lembrou Mara Rúbia. Segundo ela, alguns dos objetivos da Anvisa ao elaborar o plano nacional de combate a bactérias resistentes, a pedido da OMS, são fortalecer o conhecimento científico sobre o tema e expandir a rede de saneamento básico no país para ajudar a prevenir infecções. São ao todo 14 objetivos, 33 intervenções estratégicas e 75 atividades previstas. Entre elas, educar melhor profissionais e pacientes sobre a urgência do tema. “Entrar em pânico ou enfiar a cabeça na areia, como avestruzes, são duas atitudes que não vão contribuir para o enfrentamento do problema. Devemos por em prática as ações que estão sendo estabelecidas mundialmente”, recomendou a farmacêutica.


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