19/03/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro pode ser responsabilizado por crime contra humanidade

Publicado em 23/08/2019 12:00 -

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O presidente Jair Bolsonaro (PSL) está a uma denúncia de ser processado pela Corte Penal Internacional (CPI). Em artigo publicado no jornal francês Le Monde logo após a eleição que confirmou o nome do capitão do Exército, os juristas franceses Jessica Finelle e François Zimeray, um ex-embaixador daquele país encarregado de questões relativas a  Direitos Humanos, chamavam atenção para a gravidade dos “projetos anti-ecológicos” de Bolsonaro e para os riscos que trazem para as empresas que vierem a firmar parcerias com o governo em empreendimentos na Amazônia.

E mais do que isso, já advertiam que questões ambientais estão ganhando cada vez maior importância na Corte. Tanto que este que é o primeiro tribunal penal internacional permanente, criado em 2002, em Haia, na Holanda, já declarou, segundo os advogados, “que autores de crimes ambientais podem ser julgados no mesmo patamar de criminosos de guerra”.

No artigo, eles já abordavam a indiferença de Bolsonaro a alertas e as sinalizações de que deixaria de lado acordos como o de Paris. Além, é claro, de expulsar populações indígenas de suas terras na Amazônia, estimulando assim atividades econômicas. “Se forem executados, alguns de seus projetos podem ser considerados como crimes contra a humanidade, principalmente em razão das transferências forçadas de população indígenas”, escreveram os juristas, que pediram o engajamento de organizações.

Longe de parecer uma “ficção jurídica”, lembraram situação semelhante, ocorrida no Camboja. Em 2014, uma queixa-crime foi registrada após a expulsão de quase um milhão de pessoas, ao longo de mais de uma década, como consequência de contratos assinados entre o governo e empresas estrangeiras. Embora a sentença da CPI ainda não tenha sido dada, abriu o precedente para que processos de crimes ambientais contra a humanidade se tornassem assunto prioritário.

ONGs

Bolsonaro voltou a insinuar que as ONGs sejam responsáveis por focos de incêndios que estão consumindo a floresta. “É, no meu entender, um indício fortíssimo que é esse pessoal de ONG que perdeu a teta deles, é simples”, afirmou em entrevista em Brasília.

Ontem, a Associação Brasileira de ONGs (Abong) divulgou nota pública assinada por 172 organizações, segundo a qual Bolsonaro não precisa das ONGs para queimar a imagem do Brasil no mundo inteiro. “Os focos de incêndio em todo Brasil aumentaram 82% desde o início deste ano, para um total de 71.497 registros feitos pelo INPE, dos quais 54% ocorreram na Amazônia. Diante da escandalosa situação, Bolsonaro disse que o seu ‘sentimento’ é de que ‘ONGs estão por trás’ do alastramento do fogo para ‘enviar mensagens ao exterior’”, destaca o documento.

A Abong lembra ainda que o aumento das queimadas não é um fato isolado. E que em curto período de governo, cresceram o desmatamento, a invasão de parques e terras indígenas, a exploração ilegal e predatória de recursos naturais e o assassinato de lideranças de comunidades tradicionais, indígenas e ambientalistas.

“Ao mesmo tempo, Bolsonaro desmontou e desmoralizou a fiscalização ambiental, deu inúmeras declarações de incentivo à ocupação predatória da Amazônia e de criminalização dos que defendem a sua conservação”.

“A declaração é, antes de tudo, covarde, feita por um presidente que não assume seus atos e tenta culpar terceiros pelos desastres ambientais que ele mesmo promove no País”, disse hoje ao Estadão o coordenador de políticas públicas do Greenpeace, Marcio Astrini. “A Amazônia está agonizando e Bolsonaro é responsável por cada centímetro de floresta que está sendo desmatada e incendiada.”

Ao mesmo jornal, o WWF afirmou que a prioridade do governo deveria zelar pelo patrimônio, e não criar “divergências estéreis e sem base na realidade” do que ocorre na região. “O WWF-Brasil lamenta a nova tentativa do presidente Jair Bolsonaro de desviar o legítimo debate da sociedade civil sobre a necessidade de proteger a Amazônia e, consequentemente, combater o desmatamento que está na origem dos incêndios fora de proporção que assolam o país e comprometem a qualidade do ar em várias regiões”, declarou.

Sair do armário

A área mais "competente" da atual gestão federal, sem sombra de dúvida, é a que trata de políticas para o Meio Ambiente. Em um curto espaço de tempo, conseguiu alcançar seus objetivos (enfraquecendo os órgãos e sistemas de fiscalização e monitoramento) e trazer grande visibilidade internacional ao Brasil (que corre o risco de se tornar um pária global por ir na contramão deste momento da História).

O naco anacrônico do agronegócio celebra a sensação de liberdade para derrubar e queimar vegetação nativa, expulsar e aterrorizar indígenas e outras populações tradicionais, manter o ciclo da grilagem de terras e da zorra fundiária e cometer concorrência desleal e dumping socioambiental, dando uma rasteira nos empresários que agem dentro da lei.

Diante disso, Bolsonaro deveria ter orgulho de sua criatura e assumi-la publicamente. Ao invés de chamar dados de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) de mentirosos e acusar cientistas de manipularem informações, seria mais bonito ver o presidente reconhecendo para o Brasil e o mundo que o país operou um milagre, retrocedendo 50 anos em alguns meses, ao adotar políticas ambientais da época da ditadura militar.

Até os ataques aos críticos dessa política de terra arrasada é a mesma ladainha rasa, conspiracionista e paranóica: antipatrióticos, que não amam o país, agentes de interesses externos. E enquanto denuncia uma suposta trama internacional, o próprio presidente sugere "abrir para Donald Trump explorar a região amazônica em parceria".

Bolsonaro deveria sair do armário e gritar a plenos pulmões "sim, nós desmatamos mesmo". Não creio que ele tivesse pudores em dizer isso uma vez que não corou ao afirmar "Pretendo beneficiar filho meu, sim", ao tratar da indicação do deputado federal Eduardo Bolsonaro ao cargo de embaixador em Washington DC. E não piscou ao dizer "Eu vou negar o helicóptero a ir para lá e mandar ir de carro?", ao justificar que uma aeronave das Forças Aéreas serviu como bonde para o casamento de seu filho. 

O governo sabe que, se não criar uma narrativa para esconder a política da destruição, vai expor o nosso país a retaliações comerciais de países que já assinalaram a imposição de "tarifas climáticas" a quem não estiver cumprindo o Acordo de Paris. A soja, matéria-prima de óleos, rações e presente em boa parte dos alimentos industrializados e que é um dos principais itens de nossa pauta de exportação, pode sentir os efeitos disso. Boa parte de sua produção encontra-se na Amazônia Legal e no Cerrado. Isso sem falar da produção de carne bovina.

Nossa matriz energética já é vista internacionalmente como mais limpa (no que pese os profundos impactos negativos da construção de hidrelétricas). Por isso, nosso esforço de cumprimento do acordo, apesar de significativo, é mais baseado no combate ao desmatamento ilegal. O que é, já em si, positivo e não passa por reformular e fechar bilhões de dólares em usinas de carvão – como é o caso de alguns outros países. Além disso, o acordo valoriza o sequestro de carbono, que é um serviço que o Brasil pode suprir, e com isso ganhar muito, seja via reflorestamento, seja via a produção de biocombustíveis e outras fontes renováveis de energia, em que temos grandes vantagens comparativas. Ou seja, além de queimar florestas, vamos queimar dinheiro. Dólares, euros, yuans.

Claro que há interesses econômicos estrangeiros de quem deseja usar a situação para alavancar o seu próprio protecionismo. Mas a verdade é que o Estado brasileiro permitiu que a exploração do meio ambiente e do ser humano, como o trabalho escravo, acontecesse. Ao invés de criar narrativas para fantasiar a realidade, deveríamos continuar fazendo nossa lição de casa (e há muito a fazer) e mostrar o resultado ao mundo. O que é, ao mesmo tempo, a melhor vacina contra barreiras sob justificativas ambientais e trabalhistas e uma forma de ganhar dinheiro.

O medo de perder mercados diante do comportamento predatório produz uma retórica covarde – que nega a maior conquista de Bolsonaro até agora, e diz que o país continua protegendo o meio ambiente e caminhando na direção de um desenvolvimento sustentável. É como se, alguém coberto de estrume (para aplicar um termo amplamente usado na retórica presidencial) chamasse de produtor de fake news quem relatasse a cena e atestassem que o cheiro, na verdade, é de lavanda.

O governo pensa que, com isso, age de forma estratégica. Na verdade, diante de um mundo que vê a Amazônia arder em chamas em tempo real, está sendo apenas ridículo.


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