20/04/2024 - Edição 540

Viver Bem

Exercícios para ‘treinar o cérebro’ funcionam mesmo?

Publicado em 13/08/2019 12:00 -

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Você provavelmente já viu anúncios de aplicativos que prometem deixar você mais esperto com apenas alguns minutos por dia. Centenas dos programas chamados de “treinadores do cérebro” podem ser comprados e baixados na palma da sua mão. Esses jogos simples são desenhados para desafiar as capacidades mentais, com o objetivo final de melhorar o desempenho em tarefas importantes do dia a dia.

Mas, será que só clicar em animações de peixes nadando ou sinais de trânsito que piscam em seu telefone pode realmente ajudar a melhorar a forma como seu cérebro funciona?

Dois grandes grupos de cientista e especialistas em saúde mental publicaram declarações, em 2014, sobre a eficácia desses jogos para o cérebro. Ambos incluíram pessoas com anos de experiência em pesquisa e conhecimento em cognição, aprendizagem, neurociência e demência. Eles levaram em consideração a mesma quantidade de evidência disponível na época. No entanto, emitiram declarações absolutamente opostas.

Um concluiu que há pouca evidência de que jogos para o cérebro melhoram habilidades cognitivas ou que isso ajuda uma pessoa nas tarefas rotineiras. O outro argumentou que “uma quantidade substancial e crescente de evidências mostra que certos treinamentos cognitivos podem melhorar significativamente a função cognitiva, inclusive de forma a melhorar o cotidiano”.

Essas duas declarações, que competem entre si, destacam uma discórdia profunda entre especialistas e uma disputa fundamental sobre o que pode ser considerado evidência convincente para algo ser verdade.

Em 2016, a Comissão Federal do Comércio dos EUA (FTC, na sigla em inglês) entrou na briga com uma série de legislações, incluindo um julgamento de US$ 50 milhões (mais tarde reduzido para US$ 2 milhões) contra um dos pacotes de treinamento para o cérebro com a maior publicidade no mercado. A FTC concluiu que os anúncios do Lumos Labs — que promoviam a capacidade do programa de treinamento para o cérebro Lumosity de melhorar a cognição dos consumidores, melhorar o desempenho na escola e no trabalho, proteger contra o Alzheimer e ajudar a tratar sintomas de déficit de atenção — não eram baseados em evidências.

Diante das declarações conflitantes e das diferentes evidências científicas, publicidade e legislações, no que os consumidores devem acreditar? Vale a pena investir tempo e dinheiro em treinamento para o cérebro? Que tipos de benefícios, se houverem, você pode esperar? Ou seria melhor gastar seu tempo com outra coisa?

Eu sou um cientista cognitivo e membro do Instituto para Longevidade Bem-sucedida da Universidade do Estado da Flórida. Estudo cognição, desempenho e os efeitos de diferentes tipos de treinamento há quase duas décadas. Conduzi estudos de laboratório que diretamente colocaram à prova as ideias que são fundamentais para as empresas de treinamento cerebral.

Baseado nessas experiências, minha resposta otimista para a questão seria “nós simplesmente não sabemos”. Mas a resposta verdadeira pode muito bem ser “não”.

Quão bem as pesquisas medem os avanços?

Meus colegas e eu argumentamos que a maioria dos estudos pertinentes falham em fornecer evidências definitivas. Alguns desses problemas são puramente estatísticos.

Estudos de treinamento do cérebro frequentemente olham para seus efeitos em vários testes cognitivos — de atenção, memória, habilidade de raciocínio e assim por diante — ao longo do tempo. Essa estratégia faz sentido para revelar a amplitude dos ganhos em potencial.

Mas para cada teste administrado, existe uma chance de que as pontuações vão melhorar. Quanto mais testes forem administrados, maior é a probabilidade de pesquisadores verem ao menos um alarme falso.

Estudos de treinamento do cérebro que incluem muitos testes e depois reportam somente um ou dois resultados significativos não são confiáveis a menos que controlem o número de testes sendo administrados. Infelizmente, muitos não o fazem e colocam em xeque suas descobertas.

Outro problema de desenho dos estudos tem a ver com grupos de controle inadequados. Para afirmar que um tratamento teve efeito, o grupo que recebeu o tratamento deve ser comparado a um que não recebeu. É possível, por exemplo, que pessoas que recebem treinamento para o cérebro melhorem no teste simplesmente por já terem essa experiência — antes e depois do treinamento. Como o grupo de controle também faz o mesmo teste duas vezes, melhorias cognitivas baseadas nos efeitos da prática podem ser excluídas.

Muitos estudos que foram usados para defender a eficácia do treinamento para o cérebro compararam os efeitos do treinamento com um grupo de controle que não fez nada. O problema é que qualquer diferença observada entre o grupo de treinamento o de controle nesses casos pode facilmente ser explicada pelo efeito placebo.

Efeitos placebo são melhorias que não são um resultado direto do tratamento, mas da expectativa dos participantes de sentirem que melhoraram o desempenho depois de receber um tratamento. Essa é uma preocupação importante em um estudo de intervenção, seja voltado para entender o efeito de um novo medicamento, seja para um produto novo que vise treinar o cérebro.

Pesquisadores agora percebem que fazer alguma coisa gera uma maior expectativa de melhoria do que não fazer nada. Reconhecer a probabilidade do efeito placebo está mudando os padrões para os testes de efetividade de jogos para o cérebro. Novos estudos têm muito mais probabilidade de usar um grupo de controle ativo que faz alguma atividade alternativa do que um que não realiza qualquer exercício.

Ainda assim, esses controles ativos não vão muito longe para controlar a expectativa. Por exemplo, é pouco provável que um participante em uma condição de controle que usa quebra-cabeças computadorizados ou vídeos educacionais vá esperar tantas melhorias quanto um participante que deve experimentar produtos de treinamento para o cérebro especificamente comercializados com esse fim. Entretanto, estudos com esse modelo inadequado continuam afirmando que fornecem evidências de que o treinamento para o cérebro funciona. São raros os estudos que medem as expectativas para melhor entender e contrabalançar efeitos place em potencial.

Participantes em nossas pesquisas de fato desenvolvem expectativa baseadas em suas condições de treinamento e são especialmente otimistas com relação aos efeitos de treinamento cerebral. Expectativas não correspondidas entre grupos são uma preocupação séria, porque há cada vez mais sugestões de que testes cognitivos são suscetíveis a efeito placebo, inclusive testes de memória, inteligência e atenção.

Há algum mecanismo possível para melhoria?

Existe outra questão importante que deve ser levada em conta: os treinamentos para o cérebro deveriam funcionar? Quer dizer, dado que cientistas sabem como as pessoas aprendem e adquirem novas habilidades, deveríamos esperar que o treinamento em uma tarefa ajude a melhorar o desempenho em outra, para a qual não houve treinamento?

Essa é a reivindicação principal feita por empresas que criam esses jogos — que jogos no computador ou no celular vão melhorar seu desempenho em todos os tipos de tarefas que não somente o jogo em questão.

Um exemplo é o “treinamento de velocidade de processamento”, incorporado em produtos de treinamento para o cérebro comerciais. O objetivo é melhorar a detecção de objetos periféricos, o que pode ser útil para evitar um acidente de carro. Um jogo para o cérebro pode ter o formato de cenas da natureza com pássaros que aparecem na periferia; jogadores devem localizar pássaros específicos, mesmo que as imagens só apareçam brevemente. Mas será que encontrar pássaros em uma tela ajuda você a detectar e evitar, por exemplo, um pedestre saindo da calçada quando você dirige?

Essa é uma questão crucial. Poucas pessoas se importam muito com melhorar suas notas em um jogo abstrato para treinar o cérebro. O importante é melhorar a habilidade de desempenhar atividades diárias que têm relação com segurança, bem-estar, independência e sucesso na vida. Mas mais de um século de pesquisas sugere que os ganhos de aprendizado e treinamento tendem a ser extremamente específicos. Transferir ganhos de uma tarefa para outra pode ser um desafio.

Considere um indivíduo conhecido como SF, que conseguiu, com muita prática, melhorar sua memória para números de sete a 79 dígitos. Depois de treinar, ele conseguia ouvir uma lista de 79 dígitos gerados aleatoriamente e imediatamente repetir essa lista de números, perfeitamente, sem atrasos. Mas eles só conseguia lembrar e repetir cerca de seis letras do alfabeto.

Esse é só um dos muitos exemplos nos quais indivíduos podem vastamente melhorar seu desempenho em uma tarefa, mas não demonstrar ganhos de treinamento quando encaram um desafio minimamente diferente. Se os benefícios de treinar lembrar dígitos não são transferidos para a memória de letras, por que treinar a visualização de pássaros ajudaria a dirigir, melhoraria a vida acadêmica e a memória no dia a dia?

Permanecendo mentalmente ágil

Programas de treinamento para o cérebro são um atalho tentador, um esquema de “fique esperto rápido”. Mas melhorar e manter a cognição provavelmente não vai ser rápido e fácil. Em vez disso, pode requisitar toda uma vida — ou pelo menos um longo período — de desafios cognitivos e aprendizagem.

Se você está preocupado com sua cognição, o que deve fazer?

Primeiro, se você de fato joga os jogos para o cérebro, e sente prazer nisso, por favor continue jogando. Mas mantenha suas expectativas realistas. Se você joga só para obter benefícios cognitivos, considere outras atividades que podem ser tão estimulantes quanto, ou ao menos mais recompensadoras — como aprender uma nova língua ou tocar um instrumento.

Algumas evidência sugerem que até exercícios físicos podem ajudar a manter a cognição. Mesmo que o exercício não tenha nenhum efeito na cognição, ele claramente tem benefícios para a saúde física — então por que não mover o corpo?

A lição mais importante da literatura em treinamento é a seguinte: se você quer melhorar seu desempenho em uma tarefa que é importante para você, pratique a tarefa. Jogos para o cérebro podem só tornar você melhor em jogar esses jogos especificamente.

Walter Boot – Professor de Psicologia Cognitiva na Universidade do Estado da Flórida


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