19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

“O sistema brasileiro puxa o cientista para baixo”

Publicado em 12/08/2019 12:00 -

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Quando a cientista brasileira Suzana Herculano-Houzel tornou pública sua decisão de deixar o país ainda em 2016, ela chamava a atenção para a triste realidade das pesquisas no Brasil. A equação falta de verbas + desprezo pela ciência parecia mais complicada de resolver do que as questões relacionadas ao cérebro humano que ela costumava solucionar em seu pequeno laboratório na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro. A neurocientista é responsável por um trabalho revolucionário. Com um método engenhoso que consiste em destruir as membranas celulares e obter, em laboratório, uma sopa de cérebro (um líquido com núcleos livres), Suzana e sua equipe conseguiram provar que o cérebro humano é composto por 86 bilhões de neurônios, 14 bilhões a menos do que a literatura mundial sobre o assunto estimava.

A descoberta deixou as ciências mundiais em polvorosa, colocou o Brasil em posição privilegiada e despertou o interesse internacional para os experimentos de Suzana. Durante um período em que fazer ciência no país tinha um cenário ainda promissor, ela recusou propostas de diversas partes do globo. Mas a neurocientista cansou de remar contra a maré de pouco-caso. Até campanha de financiamento coletivo para sustentar o laboratório Suzana arriscou, depois que o orçamento para o então Ministério da Ciência e Tecnologia foi reduzido em 25% no ano de 2015 e as verbas que ela havia garantido junto às agências de fomento deixaram de ser pagas. “Fazemos ciência em condições miseráveis”, disse à revista Época em agosto de 2015, logo depois de um outro trabalho seu, ao lado do físico Bruno Mota, merecer reconhecimento internacional — desta vez, ela explicava a origem das dobras da parte mais externa e volumosa do cérebro, o córtex. “Ou eu mudo de profissão, ou eu saio daqui. A vontade é mesmo de chorar e ir embora”.

E ela chorou, em cada uma das entrevistas que deu, um ano mais tarde, quando deixou o país para ministrar aulas e fazer pesquisas na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. Agora, com uma rotina que lhe permite fazer de fato pesquisa científica, a pesquisadora desenvolve um projeto sobre vascularização do cérebro e sua relação com metabolismo, número de neurônios, saúde e longevidade, e “uma nova visão da evolução que dá muito mais valor a diversidade do que a competição”. Por email, ela disse que “é triste ver um país perder a pouca independência intelectual, científica e tecnológica que tinha alcançado”. Suzana Herculano não se arrepende de sua decisão. Confira a entrevista:

 

Não sem tristeza, em muitas entrevistas, você deixou claro os motivos que acabaram por levar você à decisão de deixar o país, em 2016. Sua partida acabou se tornando uma espécie de denúncia do momento ruim que as ciências e as pesquisas no Brasil vinham enfrentando. O que mudou de lá pra cá? Como avalia o momento atual?

A situação só continua a piorar, o que era infelizmente a minha expectativa desde quando, em 2015, vi recursos aprovados para o laboratório começarem a não ter expectativa de pagamento. Muito claramente, não era apenas um momento ruim, mas o começo de uma rota ladeira abaixo com cada vez mais velocidade.

Na sua opinião, do ponto de vista prático, como os cortes de bolsas e a redução do orçamento das instituições federais que vêm sendo anunciados pelo governo federal devem afetar as pesquisas e as ciências feitas no Brasil hoje?

Imediatamente, o resultado é paralisação da pesquisa, frustração dos cientistas que ainda tentam, e evasão dos jovens em formação conforme eles se dão conta de que se já não podiam contar com “salário”, agora nem “bolsa” eles terão. A médio prazo, o esperado é que cada vez menos jovens se interessem por investir seu tempo e recursos em aprender a pensar e fazer ciência; a procura por cursos universitários em biologia, química, física e afins deve cair rapidamente. A longo prazo, passaremos por no mínimo uma década sem nossos próprios cientistas. Recuperar-se disso se torna ainda mais difícil, pois passa a depender de convencer estrangeiros a ir fazer ciência no Brasil — uma proposta absurda já nos dias de hoje — e convencer jovens a embarcar em carreiras incertas que certamente dependerão de estágio no estrangeiro. É triste ver um país perder a pouca independência intelectual, científica e tecnológica que tinha alcançado.

Quais as principais diferenças entre fazer pesquisa nos Estados Unidos e no Brasil?

Nos EUA, como na Alemanha, Holanda, Suécia, Suíça e outros países que entendem que soberania nacional é independência intelectual, científica e tecnológica, pesquisa e pesquisador são apreciados tanto pelo público quanto pelo governo, além, claro, dos seus pares. Existe um espírito de camaradagem maravilhoso, de puxar os colegas cientistas para cima. No Brasil o pesquisador é com frequência visto como mais um funcionário público preguiçoso, pendurado no governo, e que quando tenta fazer seu trabalho (aliás supérfluo), está desviando recursos que alimentariam pessoas necessitadas. Mesmo no meio científico, quem de alguma forma consegue produzir é detestado por muitos por fazê-los parecer incompetentes. Se tecer críticas ao sistema, é atacado em público, como aconteceu comigo. O sistema brasileiro como um todo puxa o cientista para baixo.

O que foi mais difícil ou o que mais lamenta na decisão de ter deixado o Brasil e o que pesa na decisão de permanecer fora? Sem o clima de cortes e o descaso que já existiam naquele momento nas universidades, você acha que teria saído do país?

Eu recebi uma proposta de trabalho irrecusável num ambiente positivo, encorajador, numa universidade que tem todo o interesse em me ver produzir, crescer, e brilhar. Decisões de mudar de emprego são apenas normais para trabalhadores em qualquer outra ocupação — por que um pesquisador precisa se justificar ao decidir mudar de emprego?

Poderia contar em que pesquisa ou projeto está trabalhando atualmente e nos falar um pouco da sua rotina na Universidade de Vanderbilt?

Estou reduzindo o tamanho do meu laboratório no momento para poder me dedicar pessoalmente a novos projetos sobre vascularização do cérebro e sua relação com metabolismo, número de neurônios, saúde e longevidade, e uma nova visão da evolução que dá muito mais valor a diversidade do que a competição. Dou apenas 30 horas de aulas por semestre, para alunos que apreciam e valorizam a carga de leitura e empenho exigida deles, e conto com o suporte de uma infraestrutura administrativa extraordinária que me permite concentrar meu tempo no que eu sou paga para fazer: pesquisa científica. Dar aula nessas condições é um prazer, pois tenho a sensação de estar realmente cumprindo minha função de produzir conhecimento e preparar a próxima geração para levar o bastão.


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