20/04/2024 - Edição 540

Brasil

Rede de Médicos Populares denuncia contradições do Programa Médicos pelo Brasil

Publicado em 08/08/2019 12:00 -

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A Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP) lançou nota criticando o novo programa Médicos pelo Brasil anunciado, por meio da Medida Provisória 890/2019, pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), em 1º de agosto, em Brasília.

No documento, os médicos populares consideram o programa “contraditório” em vários aspectos, como a questão do vínculo trabalhista, quando “o mesmo governo pretende retirar da CLT os chamados ‘custos trabalhistas'”.

Também o consideram restrito, comparado ao Mais Médicos, por suprimir o provimento das periferias das grandes cidades, ponto que estava contemplado no programa anterior.

A nota também questiona a inexistência de “sinalização de aporte de recursos para reforma e construção de novas unidades básicas de saúde pelo país, bem como mudanças no marco da formação de especialistas no país, no caso tendo como principal modelo a residência médica”.

Outro alerta que faz o texto é sobre a privatização da Atenção Primária à Saúde. A Medida Provisória institui a “Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps)”, que terá plenos poderes para firmar “contratos de prestação de serviços com pessoas físicas ou jurídicas, sempre que considerar ser essa a solução mais econômica para atingir os objetivos previstos no contrato de gestão, observados os princípios da impessoalidade, da moralidade e da publicidade.”

O último ponto destaca a preocupação do “desmonte da residência em Medicina de Família e Comunidade”. “O novo modelo formativo pode ter inclusive a tutoria de médicos com residência em Clínica Médica. Como garantir que os princípios da Medicina de Família e Comunidade, aliados a um compromisso com práticas populares, com enfrentamento dos determinantes sociais da doença sejam ensinados por médicos com formação estritamente hospitalar e sem vivência comunitária?”, questiona o conteúdo.

Luta pelo SUS

Com a provocação “O SUS em xeque: Os desafios da Saúde no governo Bolsonaro”, a RNMMP realizou um debate, mediado pela médica de Família e Comunidade, Nathália Neiva (RNMMP), e participação dos sanitaristas, Lumena Castro Furtado, psicóloga e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Gastão Wagner, médico, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente da Abrasco.

Sem titubear, Lumena começou dizendo que há uma disputa do “Estado democrático de Direito”, que não é recente, mas se agudizou com o governo Bolsonaro (PSL), que naturaliza o extermínio.

“Agora está se colocando muito rapidamente ataques muito sérios à possibilidade, por exemplo, de organização, como ocorreu numa sala [de aula] no Nordeste em que professores estavam se organizando num ato de resistência ao Bolsonaro. Temos uma negação de que teve ditadura [no Brasil]. Agora esse episódio sobre o pai do presidente da OAB [Fernando Santa Cruz]. A gente encara como a barbárie passa a ser uma fala oficial. E aí a gente fica pensando que essa disputa é por uma democracia que para alguns viverem, outras vidas têm que morrer. Algumas valem mais que outras”, disse.

Ao retomar o que significava “cunhar saúde” na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), Lumena afirmou que o significado é a produção de saúde. Ela citou como exemplo a matriz agroecológica proposta pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): que partindo da pequena posse da terra contraria uma política que libera mais de 270 agrotóxicos e “altera a normativa para classificar qual é perigoso ou não”.

“Temos agora uma política oficial que diz: pode colocar agrotóxico, não precisa constar no rótulo mais. Temos o Minha Casa Minha Vida que foi retirada a prioridade social. Isso também é construir um outro tipo de saúde. Temos a venda da Amazônia de forma escancarada. Outros países estão reagindo, dizendo que a biodiversidade da Amazônia interessa ao mundo inteiro, e a gente está vendendo-a, fazendo garimpo em terras indígenas, enfim. O nosso conceito de saúde está sendo ameaçado de uma forma muito concreta com as ações do Bolsonaro”.

A disputa pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em sua opinião, está sob ataque frontal, referindo-se à disposição do ministro da Saúde Henrique Mandetta, manifestada em entrevista à Folha de S. Paulo, de vender serviços públicos de saúde e educação por meio de voucher. “A população comprar consultas e exames, como se saúde se limitasse a isso”.

A psicóloga também citou a ameaça de fechamento da Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa), por estar discutindo a possibilidade de produção de medicamentos à base do canabidiol. “Não está nem em discussão a liberação para uso recreativo da maconha, como outros países já fizeram”, destacou.

Sobre o fim do programa Mais Médicos, ela classificou como retrocesso a forma escolhida para financiamento da Atenção Primária à Saúde.

“Foi lançado agora um outro programa [Médicos pelo Brasil], que na verdade esconde a falta de médicos, esconde que os distritos indígenas tinham tido pela primeira vez médico permanente. Temos agora um retrocesso na forma de financiar a Atenção Básica. Antes era por procedimentos, por produção. Financiar a Atenção Básica por território, por população, foi o jeito de avançar em ações de promoção de saúde, sair só da consulta”.

Ela também denunciou os interesses da indústria farmacêutica, na disputa de rotulagem de ultraprocessados e a mudança profunda na saúde mental, onde as conquistas estão sendo atropeladas. “A disputa pelo SUS ficou fortemente enfraquecida pelo congelamento de 20 anos, da Emenda Constitucional 95”, acrescentou.

Segundo ela, há uma disputa de mundo com o atual governo. “Onde a gente tinha uma política que tentava se construir com todas as dificuldades, a partir da liberdade, hoje tem um incentivo de retomar ao isolamento, ao manicômio, às comunidades terapêuticas”. Em sua avaliação, isso ocorre por ter sido invertida, nas gestões Dilma e Lula, a curva de financiamento dos serviços abertos e dos manicômios. “O manicômio não rouba só a liberdade, rouba a vida, a possibilidade da pessoa se inventar o jeito que ela quiser”.

Enfrentamento

Lumena não vê outra forma de enfrentamento nessa disputa de mundo, senão o de se juntar, “sair do gueto” e também lembrar que não será uma lei ou decreto que será impeditivo. “Achei fantástico, a iniciativa de fazer aqui no Armazém do Campo. Precisamos nos juntar para fazer a política com solidariedade e generosidade. A marca do governo Bolsonaro é a cultura do ódio. A diferença é potência. Nós temos que gritar que toda vida vale a pena; e toda a vida é toda vida mesmo.”

A 16ª Conferência Nacional de Saúde, em sua análise, será importante para recolocar princípios e menos burocracia. A luta em favor do SUS tem que estar colada a outras lutas, a outras políticas públicas, para ter êxito. “Nós perdemos a disputa do imaginário da sociedade brasileira sobre o SUS, em razão da mídia que constrói no imaginário que os planos de saúde são bons. No entanto, uma auditoria que estou fazendo junto aos planos de saúde, as ações de complexidade são feitas no SUS. Ou os movimentos sociais colocam a bandeira do SUS nas suas manifestações e falas, ou não teremos vitória”.

A médica Nathália Neiva (RNMMP) afirmou que, além da crise de abastecimento nos medicamentos, as ações de desmonte do SUS citados por Lumena, nestes sete meses de governo Bolsonaro, apontam a necessidade de ação conjunta.

Ao parabenizar a iniciativa dos “médicos e médicas de verdade”, referindo-se à RNMMP, o professor da Unicamp, Gastão Wagner, afirmou que o SUS não está em xeque-mate. “Há espaço para lutar. Ou reconhecemos os problemas e criamos um projeto para enfrentar os desafios, ou ignorar a realidade”.

“O SUS não está em xeque-mate, ainda há muito espaço para lutar, pela democracia, pelo SUS. Setenta por cento dos brasileiros e brasileiras vivem o SUS, somente tem o SUS. Três a quatro milhões de brasileiros trabalham no SUS. O seguro privado atinge só 25% da população”.

Contemporâneo ao neoliberalismo, o SUS foi constituído em condições adversas, sob as burocracias e governos autoritários, segundo Wagner. No entanto, ele considera que o que permitiu a sua criação foi o movimento sanitário. “É um movimento ‘multitudo’, vários partidos tiveram influência, mas não mandam em nosso movimento”.

As unidades de saúde, conta Wagner, foram criados pela pressão da luta feminista, do movimento de bairro, das comunidades eclesiais de base, “infelizmente os setores mais organizados do sindicalismo assina tudo em favor do SUS, mas na hora de negociar com as empresas exige o convênio privado”.

“Oitenta por cento desses 25% que usam o setor privado, usa através de convênio sindical. Apenas 10% pagam do próprio bolso”.

Outro elemento importante desta criação, a partir da 8ª Conferência, que ele destaca é estar associado à democracia. Neste sentido, ele orientou a necessidade de um projeto de “políticas sociais e democracia” que indique um caminho para o futuro.

“A luta em defesa do SUS não pode ser separada da luta em defesa da democracia. Não pode estar separada da luta em defesa da educação, da segurança, da reforma urbana. Metade dos brasileiros vivem em territórios controlados pelo narcotráfico, pelas milícias. É um horror! Os filhos destas famílias estão ameaçados ou de ficar dependente químico ou ser recrutado pelo tráfico. Temos que ter política pública de segurança” .

Em sua opinião, é necessário fazer a discussão com quem está na base da sociedade. “Não vamos conseguir recompor emprego, sem política pública”, reforçou.

Novas possibilidades

Ele também mencionou iniciativas como a do “Mais Médicos de Campinas” e do Consórcio de governos do Nordeste, lançado oficialmente recentemente.

“O que me animou é que há um espírito de fazer tudo que for necessário, independente do Ministério da Saúde, com uma certa autonomia. Juntaram as secretarias estaduais e municipais do Espírito Santo, da Bahia, da Paraíba, Rio Grande do Norte, do Piauí…e a gente avançar nessa integração sanitária, na construção das regiões de saúde, organizar as filas dos pacientes por risco, não por ordem de chegada. Comprometer os hospitais com atendimento imediato, ampliar o investimento na Atenção Primária”.

Para ele, as mudanças passam pela construção de um Estado que prime pelo desenvolvimento humano e social para enfrentar um Estado autoritário. “O plano do Bolsonaro é criar um Estado autoritário. Ele é anti-congresso. O Congresso Nacional é formado por 25% de deputados e senadores de centro-esquerda e esquerda, a maioria é hiperconservadora. Oitenta por cento dos prefeitos são conservadores. Dois terços dos governadores são conservadores”, estimou.

Em sua opinião, é preciso ter envolvimento do movimento da saúde com outros movimentos sociais. “E tentar reduzir os danos”.

Após uma hora e meia de debate, que teve espaço a perguntas dos participantes e internautas, além de propostas para novas edições do “Pipoca e Saúde”, cada convidado foi presenteado com uma cesta com produtos da reforma agrária.

Sobrevivência da saúde pública

Durante a 16ª Conferência Nacional de Saúde, em ato em defesa do SUS, na Esplanada dos Ministérios, foi entregue ao presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, o manifesto “SUS, Saúde e Democracia: desafios para o Brasil”, assinado pelos ex-ministros da Saúde Humberto Costa, José Saraiva Felipe, José Gomes Temporão, José Agenor Alvarez da Silva, Alexandre Padilha e Arthur Chioro.

No documento, os ex-ministros alertam para o retrocesso no setor. Políticas de saúde estão sendo desconstruídas, sem que o Ministério da Saúde ou o parlamento sejam ouvidos, fala o documento.

No conteúdo de cinco páginas, os ex-ministros listam as restrições de políticas voltadas para direitos sexuais e reprodutivos, as mudanças no estatuto do desarmamento, na lei de trânsito, a liberação sem critério de agrotóxicos, a redução do preço do cigarro, o incentivo fiscal para indústria de refrigerantes, que poderá trazer um impacto nos indicadores de obesidade do País, entre outras medidas.

A carta adverte também para retrocessos de normas de segurança do trabalho, ataques ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o contingenciamento da educação pública e da ciência e a nova política de drogas, que coloca a abstinência em substituição à redução de danos, assim como comunidades terapêuticas, como os serviços preparados, quando há uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), para o atendimento na comunidade.

Destaca a importância do financiamento para a universalização da saúde e que a política de aprofundamento dos cortes ameaçam o SUS.


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