27/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro põe militares e integrantes do PSL na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos

Publicado em 02/08/2019 12:00 -

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Na mesma semana em que fez ironias sobre a morte do pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o presidente Jair Bolsonaro decidiu trocar quatro dos sete membros da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos . A presidente da comissão Eugênia Augusta Fávero, que esta semana criticou Bolsonaro pelas declarações, está entre as excluídas. Ela foi substituída por Marco Vinicius Pereira de Carvalho, advogado, filiado ao PSL e assessor da ministra da Mulher e dos Direitos Humanos Damares Alves. O ato que muda a composição da comissão é assinado por Bolsonaro e Damares, a quem o grupo está vinculado.

Ex-integrante da Comissão da Verdade e defensora de perseguidos políticos, Rosa Maria Cardoso da Cunha dará lugar a Weslei Antônio Maretti , coronel reformado do Exército. Já João Batista da Silva Fagundes, coronel da reserva e ex-deputado, deixará o posto para Vital Lima Santos, oficial do Exército. O deputado federal Paulo Roberto Severo Pimenta (PT-RS) foi trocado pelo parlamentar Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro, do PSL.

A mudança na composição da comissão chegou dois dias depois de Bolsonaro contrariar dados de documentos oficiais e atribuir a morte do ex-militante Fernando Santa Cruz, desaparecido desde 1974, a guerrilheiros de esquerda. Em nota, a presidente substituída, Eugênia Gonzaga, disse que lamentava pelas famílias de mortos e desaparecidos. Para ela, "ao que tudo indica", a decisão do governo foi "uma represália".

Ao deixar o Palácio do Planalto na quinta-feira (91), Bolsonaro disse que a mudança reflete a orientação política de seu governo. "Agora o presidente é de direita" , afirmou.

A Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério dos Direitos Humanos havia emitido, em 24 de julho, um atestado de óbito que contrastava com a versão paralela do presidente para o desaparecimento de Fernando Santa Cruz. O documento afirma que o estudante "faleceu provavelmente no dia 23 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro/RJ, em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985".

Por meio de nota, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou que as trocas na comissão "apesar de concluídas agora, foram solicitadas em 28 de maio como parte de iniciativa para otimizar os trabalhos". Justificou que a medida visa "acelerar o serviço para que os familiares requerentes obtenham a respostas sobre o paradeiro de seus entes queridos".

Eugenia Gonzaga classificou como "constrangedora" a declaração de Jair Bolsonaro de que poderia contar ao presidente da OAB como o pai dele morreu na ditadura. Segundo ela, o que o chefe do Planalto dizia saber "é tudo o que as famílias desejam saber".

“É constrangedora [a declaração]. Não tem outra palavra. No nosso entendimento, revelação do destino dos corpos é dever de todas as autoridades especialmente da Presidência da Repúblia. O Brasil já foi condenado internacionalmente a promover a revelação desses fatos. Nós da comissão, no final do ano passado, enviamos ofício para o presidente eleito, como faríamos com qualquer presidente, reiterando esse direito dos familiares. Pedimos providências. Não houve resposta”, contou Eugenia.

O deputado federal do PT Paulo Pimenta classificou a mudança como um ato de "extrema violência" contra a memória do país.

Na terça-feira (30), um dia depois de insistir que não havia documentos sobre a morte de Fernando Santa Cruz, Bolsonaro contestou o trabalho da Comissão Nacional da Verdade , que apura violações dos direitos humanos no período da ditadura militar, e minimizou registros formais da repressão do Estado no regime.

Em abril, a revista Época reportou que o ministério preparava mudanças na composição da comissão e em sua atuação. Ao extinguir conselhos e equipes da administração pública federal direta, um decreto de Jair Bolsonaro acabou com a equipe de 30 pessoas que fazia a identificação de ossadas e restos mortais da Cemdp em todo o país.

Comissão reconheceu 479 vítimas

Ao longos das últimas três décadas, o governo criou, por meio de leis aprovadas no Congresso Nacional, três comissões para reconhecer a responsabilidade do Estado frente a desaparecimentos, assassinatos, torturas e perseguição durante a ditadura militar.

No caso dos desaparecidos, a ditadura omitia as prisões de pessoas que depois foram mortas. Por anos, sem a certidão de óbito, ficaram em suspenso questões de ordem prática como divisões de herança, acesso a contas bancárias, entre outros. A Lei 9.140, de 1995, veio para reconhecer as vítimas e ajudar nessas questões. No ato da promulgação foram reconhecidos 136 desaparecidos. Fernando Santa Cruz de Oliveira foi o número 41 desta lista.

Assim, instaurou-se ainda a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (Cemdp) para reconhecer as demais vítimas que morreram sob tortura ou circunstâncias que envolviam agentes da ditadura. Esses casos passaram a ser analisados por sete membros. Três representantes dos familiares, um parlamentar, um integrante do MPF e um do Ministério da Defesa. Essa comissão, criada por lei, segue em atuação até hoje e tem como responsabilidade localizar e identificar corpos de desaparecidos que ainda não foram devolvidos às famílias.

A Cemdp reconheceu assim 479 vítimas entre mortos e desaparecidos. Esse trabalho, porém, é permanente e só no ano passado, a comissão obteve  mais duas identificações de corpos da Vala de Perus, descoberta em São Paulo em 1991 e ainda em investigação.

Contradições

A ditadura militar produziu uma grande quantidade de documentos – antes sigilosos e hoje públicos – que confirmam as torturas e assassinatos cometidos pelo próprio Estado no Brasil entre 1964 e 1985.

"E eu não estou nem falando da Comissão da Verdade", diz o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em referência à fala do presidente Jair Bolsonaro que questionou o trabalho do colegiado que entre 2012 e 2014 ouviu testemunhas, vítimas e agentes da repressão e analisou documentos com o intuito de investigar as violações aos direitos humanos cometidas durante o regime.

No último dia 30, Bolsonaro foi questionado sobre a conclusão da comissão a respeito da morte do pai de Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que apontou que ele foi executado pelo regime ditatorial em 1974.

Antes disso, o presidente havia afirmado que Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, então militante do grupo Ação Popular, fora morto pelos próprios correligionários.

Questionado então sobre as evidências que contrariam sua versão – para a qual não apresentou provas -, Bolsonaro respondeu: "Você acredita em Comissão da Verdade?".

Fico pontua que o presidente não é o primeiro a relativizar os abusos cometidos pela ditadura. A propaganda política e a censura durante o regime, ele ressalta, tinham entre os objetivos justamente esconder a violência cometida pelo Estado.

O material da época, que o historiador avaliou em sua pesquisa, mostra que 80% do conteúdo vetado pelos militares dizia respeito à repressão.

Ao lado da propaganda política do regime, que "vendia a imagem de um país próspero, do boom econômico", a censura teve influência direta na constituição da memória brasileira sobre a ditadura e explica, para o historiador, porque a lembrança do período não é tão traumática quanto é para os argentinos, por exemplo.

"Na Argentina, os militares falavam nos jornais que iam matar até o último comunista, enquanto os brasileiros tentavam negar a repressão e usavam a censura para isso."

Para ele, essa característica também ajuda a explicar porque as declarações do presidente – que chegou a afirmar, em entrevista ao programa Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, que o regime militar não foi ditadura e que a censura buscava evitar transmissão de ordens para crimes por grupos de esquerda – não geram uma comoção social e repúdio mais amplos entre os brasileiros.

A "negação da realidade" pelo presidente, diz o especialista, reforça o autoritarismo que ainda marca as relações sociais no Brasil e dificulta a consolidação da democracia no país, especialmente porque vem acompanhada de uma apologia à violência – como no caso da defesa ao coronel Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-CODI de São Paulo, elogiado por Bolsonaro.

A seguir, quatro falas do presidente que são refutadas por fatos históricos:

Morte de Vladimir Herzog

Direito de imagem Instituto Vladimir Herzog

Image caption Herzog morreu nas instalações do DOI-CODI do Exército em São Paulo em outubro de 1975, aos 38 anos

Em 2018, Bolsonaro disse em entrevista à RedeTV que não há provas de que o jornalista Vladimir Herzog tenha sido assassinado.

Herzog morreu nas instalações do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Internado) do Exército, em São Paulo, em outubro de 1975. Ele havia comparecido voluntariamente ao órgão para prestar esclarecimentos sobre seu vínculo com o PCB (Partido Comunista Brasileiro).

O Exército afirmou à época que Herzog se suicidou em sua cela e divulgou uma foto na qual o jornalista aparecia pendurado por uma corda.

Mas peritos a serviço da Comissão Nacional da Verdade examinaram os laudos da morte do jornalista. Eles analisaram a "existência de dois sulcos, ambos com reações vitais, no pescoço" de Herzog. Os peritos concluíram que Herzog foi inicialmente estrangulado e, em seguida, fixado em uma forca para simular um suicídio.

Membros da Congregação Israelita Paulista, responsáveis pelo funeral de Herzog, também foram ouvidos pela CNV e "atestaram evidências concretas da existência de torturas no corpo de Vladimir".

Desaparecimento de Fernando Santa Cruz

Direito de imagem Arquivo Nacional / Reprodução

Image caption Fernando Santa Cruz (foto) desapareceu antes de completar 30 anos, na década de 1970

Na última segunda-feira (30), Bolsonaro disse que o então estudante Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da OAB, foi morto por militantes do grupo esquerdista Ação Popular.

O presidente da República afirmou que membros da Ação Popular do Rio de Janeiro desconfiaram da decisão de Fernando de sair do Recife para se encontrar com a cúpula do grupo, já que ele era um afiliado menor, e, por isso, resolveram matar o jovem.

Mas um documento de 1978, originário do Ministério da Aeronáutica, reconhece que Santa Cruz foi preso no dia 22 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro. Ele havia sido visto pela última vez por sua família ao deixar a casa do irmão, o advogado Marcelo de Santa Cruz Oliveira, durante o carnaval de 1974.

Uma das hipóteses da comissão para o sumiço do corpo é que ele tenha sido incinerado em uma usina de açúcar em Campos dos Goytacazes (RJ) – versão endossada por um depoimento de Claudio Guerra, ex-delegado do DOPS-ES.

Desaparecimento de Rubens Paiva

Em 2012, quando era deputado federal, Bolsonaro disse no plenário da Câmara dos Deputados que o engenheiro e político Rubens Paiva foi morto por membros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo guerrilheiro que tinha entre seus comandantes o militar desertor Carlos Lamarca (1937-71).

Segundo Bolsonaro, os guerrilheiros suspeitaram que Rubens Paiva houvesse os denunciado ao ser preso pelo Exército. Quando ele foi solto, "foi capturado e justiçado (morto) pelo bando do Lamarca", disse Bolsonaro.

Porém, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), Rubens Paiva foi "executado em janeiro de 1971 por agentes de repressão do Estado".

Ele foi capturado em sua casa por seis militares armados com metralhadoras e levado para o Quartel da 3ª Zona Aérea, no Rio de Janeiro – um documento do DOI do 1º Exército confirma a passagem do engenheiro pelo local.

Cinco ex-militares (José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos) que atuaram na ocultação do cadáver de Rubens Paiva estão respondendo pelo crime, mas o processo foi suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Tortura sofrida por Miriam Leitão

Em 19 de julho, Bolsonaro comentou a prisão da jornalista Míriam Leitão durante a ditadura militar.

"Ela (Leitão) estava indo para a guerrilha do Araguaia quando foi presa em Vitória. E depois conta um drama todo, mentiroso, que teria sido torturada, sofreu abuso etc. Mentira, mentira", afirmou o presidente.

A Comissão da Verdade, no entanto, diz que Leitão foi vítima de tortura com animais, "incluindo a utilização de uma jiboia pela equipe de interrogatório do DOI-CODI do 1º Exército, comandada pelo coronel Paulo Malhães".

Quando foi presa, Leitão era estudante universitária e militante do PCdoB. Ela diz que nunca integrou e nem considerou integrar a guerrilha do Araguaia, limitando-se a participar de reuniões, distribuir panfletos e pichar muros com mensagens contra a ditadura militar.

Leitão estava grávida quando sofreu as torturas.

Juristas contestam

Primeiro coordenador da Comissão da Nacional da Verdade, o ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp considera inoportuna a declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre a atuação do órgão criado para apurar as violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura militar do Brasil (1964-1985).

“É um desconhecimento absoluto do que seja a Comissão Nacional da Verdade, uma declaração totalmente vazia e gratuita. Não é uma comissão de governo, mas do Estado brasileiro, motivo pelo qual é muito grave para o estado democrático de direito chamá-la de balela”, disse o jurista. Segundo ele, o colegiado foi criado após “ampla discussão prévia”, inclusive com a participação das Forças Armadas.

Gilson destaca a atuação do órgão, que apontou o envolvimento de 377 agentes responsáveis direta ou indiretamente pela prática de tortura e assassinatos. “Foi um trabalho histórico confirmado por documentos do Ministério da Defesa”, acrescentou. Entregue em dezembro de 2014, o relatório final da comissão estava dividido em três volumes, resultado de dois anos e sete meses de trabalho.

Instituída em maio de 2012, a comissão responsável pela apuração de violações dos direitos humanos na ditadura colheu 1.120 depoimentos, produziu 21 laudos periciais e realizou 80 audiências públicas em 15 estados. Em seu período de funcionamento, houve sete diligências em Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

“Você acredita em Comissão da Verdade? Qual foi a composição da Comissão da Verdade? Foram sete pessoas indicadas por quem? Pela Dilma [Rousseff, ex-presidente]”, disse o Bolsonaro. “Nós queremos desvendar crimes. A questão de 64, existem documentos de matou, não matou, isso aí é balela.”

Ex-procurador-geral da República, o jurista Claudio Fonteles afirma que o presidente age de forma lamentável. “É lamentável o presidente da República recorrer a frases de efeito com o claro intuito de manipular as mentes das pessoas”, condenou. Segundo ele, Bolsonaro segue um padrão. “Sua declaração é irresponsável como todas as outras que atacam a democracia”, completou. Ele acrescenta que o grupo surgiu com o intuito de reconstruir a verdade histórica, demonstrar a violação de direitos básicos do cidadão e recuperar a memória nacional.

Último coordenador da Comissão da Verdade, o jurista Pedro Dallari definiu o caso como “um papel melancólico”. Ele lamenta o ataque de Bolsonaro atacou ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Nesta semana, Bolsonaro disse que militantes da Ação Popular (AP), e não militares, mataram Fernando Santa Cruz, pai de Felipe. No entanto, registro secreto da Aeronáutica de 1978 aponta que o pai do advogado foi morto 'pelo Estado brasileiro'.

"O papel do presidente Bolsonaro neste episódio é melancólico", disse Dallari. "O relatório da Comissão Nacional da Verdade mostrou, através inclusive do uso de dois documentos oficiais do governo brasileiro, um da Aeronáutica e outro da Marinha, que Fernando Santa Cruz foi preso e quando estava sob custódia das Forças Armadas desapareceu", disse.

Em nota, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão vinculado ao Ministério Público Federal (MPF), afirmou que Bolsonaro tem o dever de revelar eventuais informações sobre crimes ocorridos na ditadura militar, em especial sobre o caso de Fernando Santa Cruz.

Resultados de dois anos de trabalho

"Acho que a comissão da verdade poderia ter ido além, mas as condições políticas não permitiram. Os ânimos estavam acirrados. Não conseguiu muita informação e documento. Fez o que podia devido às circunstancias", avaliou Dipp. Veja alguns resultados:

Agentes responsáveis pela repressão: 377;

Mortos e desaparecidos na ditadura: 434;

Sindicatos sob intervenção: 536;

Militares que a ditadura perseguiu: 6.591.

Forças Armadas reconhecem mortes

Em setembro de 2014, as Forças Armadas reconheceram pela primeira vez a ocorrência de desaparecimentos e mortes durante a ditadura militar. O documento afirma que o ordenamento jurídico reconheceu a responsabilidade do Estado “pela morte e desaparecimento de pessoas durante o regime militar, bem como pelos atos de exceção praticados no período”.

Rejeitados pedidos de reconhecimento de anistiados

O desprezo às violações tem reflexo na Secretaria da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Entre março e julho, a ministra Damares Alves negou 1.381 pedidos de reconhecimento de anistiados políticos. No total, o ministério concedeu 26 pedidos, todos por decisão da Justiça.


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