29/03/2024 - Edição 540

True Colors

‘Estamos à beira de uma ditadura civil’, diz militante trans sequestrada e torturada na zona leste de SP

Publicado em 31/07/2019 12:00 - Paloma Vasconcelos - Ponte

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Era mais um dia comum na vida de T.*. A jovem de 26 anos estava inscrita em um concurso público, mas percebeu que o nome no documento da prova estava errado: não constava o nome que escolheu ser chamada e sim o nome que foi registrada quando nasceu. T. é uma jovem transexual que já fez a retificação de nome no cartório, portanto o nome na prova deveria ser o nome que consta na sua atual certidão de nascimento.

Esse foi o motivo que fez T. sair de sua casa naquela manhã do dia 16 de julho para solicitar a alteração do seu nome no Poupatempo de Itaquera, na zona leste de São Paulo. No ônibus, a caminho de Itaquera, começou a passar mal. “Comecei a sentir uma agonia. Sabe quando você sente que vai acontecer alguma coisa? Um pressentimento horroroso”, disse.

Ela decidiu, então, descer do ônibus para acender um cigarro e se acalmar. Deu sinal e desceu em um dos pontos da principal avenida que cruza a zona leste: a Radial Leste. Foi quando um carro parou ao seu lado e uma voz, chamando seu nome, saiu pela janela do banco do passageiro. “Se estava chamando pelo meu nome é alguém que eu conheço”, pensou a jovem.

Ao se aproximar do veículo, T. percebeu que não só não conhecia aquelas pessoas, que estavam encapuzadas, como estava prestes a ser sequestrada. “Quando eu me aproximei, o rapaz abaixou o vidro e colocou a arma na minha testa e disse: ‘pode entrar no carro, sua comunistinha de merda’. Na hora eu travei, olhei para os lados ver se tinha alguém ou se tinha aquelas câmeras de segurança de trânsito, mas eu estava em um local sem nada. Nisso eu pensei: ‘morri, fodeu’. Ele me puxou pelo braço e eu entrei no carro”, relata.

T. é militante LGBT+ do Psol de São Paulo, onde atua no diretório municipal de Guarulhos, integra o setorial LGBT+ e faz parte da direção do Quilombo Raça e Classe da CSP-Conlutas (Central Sindical e Popular Conlutas). Além da pauta LGBT+, a jovem luta pelas causas das profissionais do sexo e de pessoas soropositivas.

Assim que entrou no veículo, as agressões, físicas e psicológicas, começaram. Uma sacola foi colocada na cabeça de T., para tentar sufocá-la, ou pelo menos a fazer pensar isso. Só quando a jovem quase perdeu a consciência que a primeira tortura terminou.

Na sequência, começaram as torturas psicológicas. “Um deles ficou falando ‘vamo esquartejar, vamo começar arrancando o silicone, depois a gente arranca o nariz, arranca a orelha’ e começaram a me aterrorizar. Eu estava deitada, sem saber para onde estava indo, vendada, com dois homens que eu nunca vi, encapuzados e com luvas nas mãos”, relembra T.

O carro andou por volta de 25 minutos. T. estava com os olhos vendados, mas percebeu, pela audição, que o veículo estava entrando em uma estrada de terra, pois conseguia ouvir o barulho da terra batendo no chão e nos pneus do carro. Quando o carro parou, as violências físicas voltaram.

“Eles me tiraram de dentro do carro pelo cabelo, me arrastaram pra fora do carro. Quando eles me arrastaram, eles começaram a empurrar a arma pra cima de mim, chamando o povo do Psol de verme, falando que o erro do regime militar foi não ter matado esses vermes, porque verme não se cria, se mata. Ficaram falando que éramos um bando de ratos e que iriam matar um por um desses comunistinhas de merda e eu seria um recadinho”, conta.

A pior parte das agressões, relata T., começaram quando os dois homens encapuzados tiraram a venda dos seus olhos. Com insultos transfóbicos, os agressores se mostravam apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PSL). “Um deles puxou o meu braço para trás, acho que para quebrar. Eles me bateram, me bateram com gosto. Um deles fez menção para estupro, mas o outro falou ‘não estupra porque essa porra tem Aids’. Então é alguém que me conhece mesmo, para saber que sou soropositivo”, indaga.

“Depois daquilo, um deles pegou a minha bolsa e ficou mexendo, nisso eu falei que tinha dinheiro na minha bolsa. Eu tinha R$ 170, tinha cartões. Eu falei que dava todo o meu dinheiro, só pedi para me deixar viva. Aí ele jogou a bolsa na minha cara e disse que não queria um centavo meu, mas que queria os ‘contatos desses bostas’ e citou um monte de nome, como a Sâmia Bomfim [deputada estadual do Psol-SP] e a Luiza Erundina [deputada estadual do Psol-SP]”, relata.

Quando as agressões pararam, um dos homens colocou uma arma na nuca de T. e mandou a jovem correr. “Agora você vai andar, vamos ver até onde essa merda vai”, disse o agressor à jovem. T. começou a correr na direção de um barranco quando os tiros começaram. Os homens começaram a disparar em sua direção, mas a jovem não foi atingida. Ou melhor, sua mochila sim. Um de seus aparelhos celulares tem a marca de um dos tiros.

“Eu fiquei tão desnorteada que sai correndo, quando vi estava na beira de uma pista, que eu não sei se era a Dutra ou a Ayrton Senna. Vinha passando carros e eu me joguei na frente de um carro, que desviou de mim, parou e brecou”, relembra.

O motorista do carro desceu e viu que a jovem estava machucada e ensanguentada. Neste momento, lhe ofereceu uma carona. Mas apenas até o ponto de ônibus mais próximo do local em que encontrou a T. “Eu pensei que eles iam me levar em uma delegacia, mas eles pararam em um ponto de ônibus. O cara disse ‘pode descer do meu carro, porque eu não sei quem você é, eu não sei se você é bandido'”, relembra.

A última lembrança que T. tem desse dia é o momento em que pena um ônibus. Ônibus esse que ela sequer se recorda qual destino tinha. A psicóloga disse à T. que os momentos que foram apagados de sua memória são decorrência do estresse pós-traumático. Foi como se a sua memória tivesse congelado ali e voltado quando ela estava em casa.

“Quando eu fui me dar conta eu já estava dentro de casa, sentada, com o alarme disparando. Eu não sabia se eu estava sonhando, não sentia dor na hora. Estava tão nervosa, tão em pânico, que parecia que tinha um monte de formiguinha andando pelo corpo inteiro. Eu falei com algumas pessoas, mas eu não lembro. Minha mente apagou esse momento”, conta T.

Foram cerca de quatro horas entre o momento que T. entrou no carro até o momento que chegou em sua casa. Por volta das 13h daquela terça-feira, seu marido chegou em sua casa, depois de ser contatado por ela mesma por telefone, e a levou para o hospital, onde foram constadas lesões no ombro, joelho e na coluna.

Os dias seguintes foram complicados para a jovem, que precisou prestar depoimento na 65º DP, de Artur Alvim, fazer corpo de delito e retornar ao médico. Foi nesse momento que T. percebeu que um item da sua bolsa havia ficado com os seus espancadores: um dos seus aparelhos celulares, o que ela usava para salvar o contato de membros do Psol e para participar de grupos do WhatsApp referentes as suas militâncias.

Doze dias depois do pior momento de sua vida, T. conta que sente medo de continuar no Brasil. “A impressão que eu tenho é que estamos à beira de uma ditadura civil, não mais uma ditadura militar, mas uma ditadura civil como a da Itália, que não rasgou a Constituição, mas que começaram a fazer torturas. A culpa sempre é do comunista. Nós perdemos Marielle, Jean saiu do Brasil. Temos presos políticos, golpe atrás de golpe. Depois do que eu vivi isso só reforçou mais essa sensação. O corpo do Amarildo até hoje não apareceu, Marielle foi assassinada, Jean saiu do país”, confessa a jovem.

Em nota publicada em uma rede social (confira a nota completa aqui), o Psol-SP enxerga o ocorrido como crimes gravíssimos motivados por razões políticas e transfóbicas. “Criminosos que o praticam são movidos pelo ódio e conduta assassina, de cunho fascista, e têm por objetivo intimidar militantes como a companheira e o conjunto da militância de um partido de esquerda coerente e reconhecido pela sociedade, como o PSOL. Tais pessoas e seus possíveis mandantes não apenas não terão êxito nesses objetivos, como terão de responder criminalmente por seus atos, pois o partido não permitirá que o caso passe impunemente”, diz nota, que termina com “condenamos o ódio, a transfobia, a intolerância política e os métodos de milícia típicos de uma ideologia de traços fascistas Não seremos intimidados!”.

Procurada pela reportagem, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) ainda não se manifestou sobre o ocorrido.

O nome da jovem foi preservado para garantir a sua segurança.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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