25/04/2024 - Edição 540

Poder

Ricardo Salles e a missão de implodir o ministério do Meio Ambiente

Publicado em 21/06/2019 12:00 -

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Desta vez, o vexame aconteceu longe de casa. Ricardo Salles cumpria agenda em Dubai, nos Emirados Árabes, quando se tornou pública a recusa dos governos da Alemanha e da Noruega de apoiarem as mudanças propostas pelo ministro do Meio Ambiente do Brasil no Fundo Amazônia, criado para financiar projetos que reduzam as emissões de gases de efeito estufa causadas pelo desmatamento na região. Dos quase 3,4 bilhões de reais captados, 99% provêm de doações dessas duas nações europeias. Antigo aliado dos ruralistas, Salles pretendia usar parte dos recursos para indenizar proprietários de terras desapropriadas na criação de unidades de conservação. Não sem antes acusar o BNDES de má gestão e falta de zelo na fiscalização dos contratos, o velho hábito de desdenhar do objeto de cobiça.

Em meados de maio, o ministro convocou uma coletiva de imprensa na sede do Ibama em São Paulo para anunciar, com estardalhaço, que a pasta havia analisado um quarto dos 103 projetos apoiados pelo fundo. Na ocasião, assegurou ter identificado “problemas em 100% dos contratos de ONGs”. Não especificou quais, tampouco comprovou as supostas irregularidades. Entre os indícios de “inconsistências”, pontuou Salles, haveria uma “absorção muito elevada” de gastos para pagamento de pessoal, entre 40% e 60% das verbas destinadas, como se fosse um robusto indício de fraude ou corrupção.

Bastou a palavra do ministro para o BNDES afastar a chefe do Departamento de Meio Ambiente, Daniela Baccas, responsável pela operação do Fundo Amazônia, mesmo após o Tribunal de Contas da União ter atestado, em auditoria realizada no ano passado, que os recursos “estão sendo utilizados de maneira adequada e contribuindo para os objetivos para o qual foi instituído”. Há tempos, Salles pressionava executivos do banco estatal para ter acesso aos contratos do fundo, alguns deles com dados confidenciais. Só recebeu a papelada após fazer uma solicitação formal.

Os financiadores europeus não caíram na conversa. Em carta endereçada a Salles e ao então ministro Santos Cruz, da Secretaria de Governo, os embaixadores Nils Gunneng, da Noruega, e Georg Witschel, da Alemanha, defenderam a competência do BNDES para gerir o fundo, constituído em 2008 para contribuir na preservação da floresta. “Nenhuma das auditorias financeiras ou de impacto realizadas descobriu quaisquer atos ilícitos ou má administração dos recursos”, diz o texto datado de 5 de junho, mas só revelado na terça-feira 11 pelo jornalista André Trigueiro, da TV Globo. “Na ausência de quaisquer mudanças acordadas na governança do Fundo Amazônia, esperamos, portanto, que o BNDES continue a administrar o fundo e a aprovar projetos em andamento, de acordo com os acordos e diretrizes existentes.”

“Podem se manifestar à vontade”

Em casa, o revés foi mais ruidoso. Em 6 de junho, durante uma sessão solene do Senado em homenagem ao Dia Mundial do Meio Ambiente, Salles foi vaiado ao negar o desmonte do Ibama, responsável pela fiscalização de crimes ambientais, e do ICMBio, autarquia que cuida das unidades de conservação federais. “Podem se manifestar à vontade, o desmonte foi herdado de gestões anteriores. Quem recebeu a fragilidade orçamentária fui eu, quem recebeu déficit gigantesco de funcionários fui eu, quem recebeu frotas sucateadas e prédios abandonados fui eu”, disse. Ao sair da audiência, enfrentou outro protesto puxado por ambientalistas e indígenas, a repetir aos brados: “Fujão! Fujão!”.

Autuado por pesca ilegal no litoral fluminense, seu chefe, Jair Bolsonaro, prometeu em campanha acabar com a “indústria das multas” ambientais. Eleito, chegou a anunciar a extinção do Ministério do Meio Ambiente, que teria a estrutura incorporada pela pasta da Agricultura. Até mesmo representantes do agronegócio manifestaram-se contra a iniciativa, que poderia resultar em barreiras comerciais aos produtos brasileiros. A nomeação de Salles permitiu-lhe manter o projeto inicial, de forma sorrateira e talvez até mais efetiva.

Ex-diretor da Sociedade Rural Brasileira e fundador do movimento Endireita Brasil, o advogado foi secretário particular do tucano Geraldo Alckmin e chegou a chefiar a pasta do Meio Ambiente no governo paulista, mas terminou a sua gestão com um rumoroso processo por improbidade administrativa. Filiado ao partido Novo, disputou uma vaga na Câmara Federal com o número “3006”, peculiar homenagem a um tipo de munição para fuzis. Em peças de propaganda, sugeriu o uso das balas “contra a praga do javali” e “contra a esquerda e o MST”.

No processo por improbidade, Salles foi acusado de adulterar mapas e a minuta do decreto do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental Várzea do Rio Tietê, em benefício de empresas de mineração filiadas à Fiesp. Segundo um laudo técnico do Ministério Público, as mudanças trazem graves prejuízos ambientais, como impermeabilização do solo resultante da instalação de novas indústrias e a contaminação da água e do solo por agroquímicos. Em dezembro, ele foi condenado ao pagamento de multa e à suspensão dos direitos políticos por três anos. Desde então, recorre da decisão.

Não foi a primeira estripulia do então secretário. Em 2017, Salles foi alvo de outra investigação do MP paulista por tentar vender o prédio do Instituto Geológico para um amigo. Apesar de ter sido alertado por parecer contrário da própria Consultoria Jurídica da Secretaria do Meio Ambiente, apontando “risco inaceitável” para o patrimônio público, ele deu prosseguimento à oferta de uma imobiliária, que ofereceu 5 milhões de reais em 36 parcelas. O caso foi revelado por Maurício Tuffani, editor do site Direto da Ciência, que teve acesso a documentos da transação por meio da Lei de Acesso à Informação. À época, Salles reconheceu a amizade com o empresário que fez a oferta, mas negou qualquer favorecimento. O negócio foi cancelado após parecer contrário da Procuradoria- Geral do Estado e o inquérito, arquivado.

Agora Salles faz de tudo para agradar ao novo chefe. Logo nos primeiros dias do ano, a multa de 10 mil reais por pesca irregular aplicada a Bolsonaro foi anulada, fato que levou o Ministério Público Federal a instaurar um inquérito civil para apurar o caso. O servidor que lavrou a infração acabou exonerado pouco depois. A quantidade de multas aplicadas pelo Ibama por crimes ambientais no primeiro bimestre de 2019 foi a menor desde 1995. Foram 1.139 autuações, redução de 28% em relação ao mesmo período do ano anterior. No ICMBio, o volume de autuações no primeiro trimestre de 2019 despencou 35%.

Para acabar com o “arcabouço ideológico” do setor, o ministro decidiu militarizar as diretorias dos dois órgãos, além de anunciar a intenção de contratar PMs de folga para fiscalizar unidades de conservação federais. Desde o início do ano, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) emitiu mais de 4 mil alertas de desmatamento, mas o Ibama só conseguiu atuar em 20% deles, denuncia o Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais da Área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial.

O cenário é preocupante. Em maio, a devastação na Amazônia bateu novo recorde. Foram derrubados 739 quilômetros quadrados de floresta, o equivalente a dois campos de futebol por minuto, segundo cálculos do Observatório do Clima, com base em dados do Inpe. Na comparação com o mesmo período do ano passado, o aumento foi de 34%. Embora o intervalo de um mês seja curto para apontar uma tendência, os indicadores de maio alarmam os especialistas por ser o primeiro após o período de chuvas, quando as queimadas na região são retomadas.

“Na verdade, o desmatamento está crescendo desde 2012. A grande questão é se o ritmo acelerou ou não. Teremos dados mais confiáveis nos próximos meses, mas é inegável que a redução das atividades de fiscalização, bem como esse perigoso discurso de ‘indústria da multa’, servem de estímulo aos desmatadores”, alerta Carlos Souza Jr., pesquisador do Imazon, com Ph.D. em Geografia pela Universidade da Califórnia. Entre agosto de 2018 e abril de 2019, foram perdidos 2.169 quilômetros quadrados de floresta, alta de 20% em relação ao ano anterior, segundo o sistema de alertas do Imazon.

Salles prefere punir o mensageiro. Há tempos afirma que o monitoramento do Inpe é impreciso e não permite distinguir o que é desmatamento legal ou ilegal. O instituto, por sua vez, esclarece que seus sistemas possuem 95% de precisão. De acordo com uma recente reportagem da Folha de S.Paulo, o ministro cogitava trocar o Inpe por uma empresa privada de geoprocessamento, a paulista Santiago & Cintra, representante da americana Planet, para produzir imagens com resolução superior.

Depois, o Ministério do Meio Ambiente divulgou uma nota, informando que não pretende substituir o Inpe, e sim agregar informações da MapBiomas, que tem acordos de cooperação com a pasta e o Ibama e fornece gratuitamente as imagens de alta resolução. “Fornecemos de graça esses dados ao governo. Se for para ter a Planet no monitoramento florestal, não faz sentido contratar”, afirma Tasso Azevedo, coordenador da entidade.

Não bastasse, o governo federal tem um plano de reduzir 60 unidades de conservação ambiental, onde existem estradas, ferrovias e aeroportos. Entre as unidades ameaçadas, figuram os parques nacionais Serra da Bocaina (SP), Serra dos Órgãos (RJ) e Mapinguari (RO), informa o Estado de S. Paulo, que teve acesso ao plano traçado pelo Ministério de Infraestrutura.

Salles parece concordar com as mudanças, propostas para eliminar “interferências” e dar “segurança jurídica” aos equipamentos. Por meio de nota, o Ministério do Meio Ambiente diz “buscar a solução para uma situação jurídica conflituosa que envolve os empreendimentos de infraestrutura existentes no País e as unidades de conservação”. Trata-se de um argumento muito semelhante ao usado pelo ministro para defender o uso de recursos do Fundo Amazônia para pagar indenizações aos proprietários de terras desapropriadas.

“Salles está no lugar certo”, afirmou Bolsonaro, sem esconder a satisfação em um evento promovido pela Fiesp na quarta-feira 12. “Consegue fazer o casamento do meio ambiente com a produção. Eu falei para ele: ‘Mete a foice em todo mundo no Ibama’. Não quero xiita.” Aparentemente, o ministro cumpre a missão com louvor.

PEC 80 submete a terra aos apetites do capital, segundo especialistas

Numa era em que as mudanças climáticas e o esgotamento das matérias-primas são elementos incontornáveis da equação econômica, as disputas de terras tendem a se acirrar, e caberá aos governos garantir o uso adequado do espaço e dos recursos naturais. Este é o panorama considerado por pesquisadores ouvidos sobre as tentativas de flexibilização do conceito de função social da propriedade no Brasil. Ao mesmo tempo em que se ameaça a soberania alimentar, segundo eles, caminha-se para a destruição do meio ambiente e para o aumento da desigualdade.

A preocupação mais recente dos especialistas no tema é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80, apresentada em 21 de maio pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que propõe alterar a base conceitual e jurídica das reformas agrária e urbana. 

A proposição do filho mais velho do presidente da República modifica os artigos 182 e 186 da Constituição Federal com base no entendimento expresso de que a propriedade privada constitui um “bem sagrado”. A PEC 80 foi subscrita por 27 senadores e senadoras – um terço da casa, o que já garante sua tramitação.

No artigo 186, de aplicação no contexto rural, a redação mantém os parâmetros atuais: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho, exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Porém, a utilização teria de atender “ao menos” uma das exigências listadas – o que quer dizer que pode ser apenas uma.

O projeto exige que o uso se dê “sem ofensa a direitos de terceiros” e estabelece que eventuais desapropriações sejam feitas por valor de mercado. Estas só poderão ser feitas após autorização legislativa ou decisão judicial. Como justificativa, o senador alega que a propriedade privada “deve ser protegida de injustiças”. O objetivo da emenda seria, assim, “evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação” nos processos de desapropriatórios. A intenção, acrescenta, é “diminuir a discricionariedade do poder público” nessa vigilância. 

Às possíveis mudanças legislativas, soma-se o fato de que o próprio ministro Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem submetido a agenda ambiental aos interesses do agronegócio.

De volta aos anos 60 

“Essa emenda nos levaria para antes do Estatuto da Terra”, critica a cientista social Leonilde Medeiros, lembrando que a Lei 4.504, uma das primeira medidas da ditadura militar, já se referenciava na função social da propriedade, em termos bastante próximos aos que seriam inscritos 24 anos depois na Constituição Federal. 

A professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) observa que, historicamente, poucas desapropriações se basearam no entendimento pleno da função social da propriedade, mesmo nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula (PT), quando o volume foi muito superior aos demais. O critério determinante sempre foi o da produtividade – cujos parâmetros físicos fixaram-se em 1975 e nunca foram atualizados, apesar de ensaios em diferentes períodos. Medeiros acrescenta que, ao longo dos anos, a opção prioritária do poder público tornou-se a compra de terras mediante acordo com os donos. 

Os procedimentos de caráter não-conciliatório são, hoje, uma raridade. Em 2015, às vésperas do golpe contra Dilma Rousseff (PT), não houve nenhum. Sob a presidência de Michel Temer (MDB), houve uma em 2017 e quatro em 2018.

Para Guilherme Delgado, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “se a intenção fosse séria”, a PEC 80 deveria ir na direção inversa à do texto proposto, atualizando o conceito de produtividade ligado ao artigo 186 por uma lógica sustentável de produção. “Ainda mais hoje em dia, na crise climática global, é fundamental que você ligue o conceito de propriedade a questões de interesse geral do país inteiro, do planeta”, analisa. 

O economista diz que, em especial nos últimos dez anos, o uso intensivo de água e agrotóxicos tem evidenciado a relevância dos critérios propostos pela Constituição de 1988: não basta que uma terra seja produtiva para que ela cumpra sua função. “A produtividade passa a ser parte do problema. Ser produtivo nas condições de insustentabilidade é um gol contra”, compara o pesquisador. “Precisamos caminhar para uma agricultura sustentável, diversificada, democratizada”.

Integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Kelli Mafort afirma que esses valores são inegociáveis. “Não só a agroecologia, mas também a agrofloresta, em que produção convive com florestas, estão no centro da agenda dos sem-terra e dos trabalhadores assentados, e também da massa dos trabalhadores urbanos”.

Mafort lembra o aumento do uso de agrotóxicos e das intoxicações no seu manejo, bem como os casos de câncer e mortes associados a essas substâncias: “São questões que se encontram na centralidade das necessidades quando a gente pensa hoje em saúde, trabalho, terra e alimentação”. Para a dirigente, considerar esse conjunto não exclui a necessidade da reforma agrária. Pelo contrário, ela mantém-se como um imperativo.

Avanço interrompido

Delgado lembra que, no período FHC, após os massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, foram atingidos os maiores números de desapropriações. No segundo mandato do tucano, foram 287,9 mil famílias assentadas. No primeiro governo Lula, o número subiu para 381,4 mil, combinado a uma série de ações para melhorar as condições dos assentados e da produção. Após a reeleição do petista, deu-se mais ênfase a essas melhorias e a políticas de compra, o que teria se estendido aos primeiros quatro anos de Dilma. A reversão começa no segundo mandato da petista, segundo a análise do pesquisador, e se aprofunda com Temer e Bolsonaro. 

No governo Temer, o dever constitucional de prover terra para quem precisa foi mantido “inerte”, e agora a intenção seria descartá-lo. “A lição que a gente tira: há um sujeito oculto atrás disso”, pontua o economista, analisando que, conforme a correlação de forças se alterou, o pacto com o agronegócio sufocou a "concertação" que contemplava também a agricultura familiar. Delgado identifica os ruralistas entre os mentores do golpe que derrubou Dilma, ao lado dos sistemas financeiro e midiático.

“A reforma agrária é uma questão nacional e depende do rompimento desse pacto. Na hora em que esse governo maluco cair e se instaurar um governo de salvação pública, não podemos repetir os erros cometidos”, alerta.

Pressões 

Para a professora Leonilde Medeiros, a Lei 13.465, conhecida como Lei da Grilagem, que entrou em vigor no fim do governo Temer, é um elemento complicador quando se pensa em reforma agrária. A nova legislação garantiu agilidade na titulação dos lotes, dando prioridade à emissão de títulos definitivos. O produtor ou produtora pode vendê-los após dez anos, ao passo que, na Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), a negociação da terra e de suas benfeitorias exige anuência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O MST e outros movimentos populares do campo defendem a titulação coletiva, com contratos de CDRU para os assentados e assentadas.

“Houve uma verdadeira corrida de titulação, com técnicos do instituto sendo premiados por colaborar com essa aceleração”, recorda Medeiros. “Começou-se a titular assentamentos que nem sequer cumpriam as condições que a legislação estabelece, de um padrão mínimo de desenvolvimento que lhe permita caminhar pelas próprias pernas. Por esse caminho, essas terras voltam ao mercado”, lamenta.

Na análise da pesquisadora, o resultado é a fragilização dos acampamentos e assentamentos da reforma agrária. 

Kelli Mafort, do MST, sobe o tom ao citar a Lei da Grilagem. “Ela legaliza em toda a Amazônia Legal – estamos falando de quase metade do Brasil – propriedades de até 2 mil hectares. Terras públicas da União que deveriam ser repassadas para a reforma agrária seriam entregues para grandes grupos de empresários com abatimentos de até 90%”, critica. A dirigente também chama atenção para o estímulo ao pagamento direto, em vez de títulos da dívida agrária, na aquisição de terras pelo Incra. “Isso coloca o órgão como operador de mercado, como balcão de negócios”, resume.

“Essa lei e a PEC 80 estão em consonância com uma necessidade do capital, em relação ao nosso país, de um reordenamento fundiário. A intenção é tornar nossas terras rurais e urbanas subordinadas a esses interesses”, acrescenta Mafort. Ela reconhece que o cotidiano fica ainda mais duro para as famílias acampadas nesse contexto. “Apesar disso, as pessoas se mantêm no acampamento porque é um lugar de moradia, é um lugar de garantia de alimentação e, muitas vezes, de plantio. E é um lugar onde elas podem ter convivência comunitária”, diz.

Objetivo oculto?

“Se a reforma agrária recebia algum impulso, mesmo notoriamente insuficiente, dos governos anteriores, a sua execução tem ficado parada na tramitação administrativa ou na judicial das desapropriações”, constata o advogado Jacques Alfonsin, que assessora movimentos populares. “A lerdeza presente, tanto nos processos administrativos que preparam as desapropriações de terra, como nos tribunais, depois que elas são ajuizadas, é muito grande”. 

Ex-procurador estadual no Rio Grande do Sul, ele inclui nessa conta o empenho da doutrina jurídica posterior ao Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 2015) em aprimorar os meios de defesa de direito sob ameaça ou já violado. Assim, conforme sua leitura, juristas vêm procurando fazer prevalecer na doutrina jurídica – e juízes priorizam em suas decisões – o lado conservador de instrumentos como as tutelas de urgência, que buscam resguardar direitos fundamentais diante do risco de danos. No caso da ocupação de uma fazenda, por exemplo, uma aplicação seletiva e elitista tenderia a considerar o risco de estragos em construções ou pastos em detrimento da segurança alimentar e mesmo da integridade física dos sem-terra.  

Alfonsin conclui que, a exemplo de outras leis e normativos, a PEC 80 tem o objetivo oculto de garantir a ineficácia de instrumentos que oficialmente busca proteger e aperfeiçoar. Ele destaca que, para quem vive em sociedade, a própria condição individual não seria possível sem a participação de outras pessoas. E, por ser essencial à vida de todas e todos, um bem como a terra interessaria diretamente a todas e todos. “Existe todo um território não dominial, portanto, que deve ser respeitado em cada pedaço de terra, bastando lembrar-se o ar, o clima, a fauna, a flora, a água, enfim, todas as condições de vida em relação às quais o proprietário tem uma obrigação superior ao seu interesse próprio”, argumenta.

Quem age em desacordo com tal responsabilidade infringe, portanto, essa função social. “Uma infração tão grave que se tornou devastadora no mundo de hoje, a ponto de todas as atenções da humanidade consciente deste risco estarem voltadas agora para a defesa e a preservação do que ainda nos sobra de meio ambiente saudável no planeta todo”, pontua. O mesmo valeria para o interesse social difuso de acessar os bens essenciais à satisfação de necessidades vitais como alimentação e moradia – aquelas protegidas pelos direitos humanos fundamentais sociais.

Em nota enviada à reportagem, o senador Flávio Bolsonaro alegou que as mudanças pretendidas pela PEC 80 diminuiriam o número de conflitos, beneficiando todos os interessados. “A função social da terra é importante, mas não pode ser desculpa para desrespeitar algo fundamental como o direito à propriedade”, diz o texto, prometendo maior “razoabilidade” aos processos. "Garantir um procedimento mais adequado vai, inclusive, diminuir a litigiosidade e reduzir potenciais prejuízos para quem for desapropriado e para quem se beneficiar dessa operação".

A reportagem pediu ao Incra e ao Ministério da Agricultura posicionamentos sobre a PEC 80, a violência no campo e a possibilidade de aprimorar a regularização fundiária, mas não obteve resposta. As instituições também não enviaram os dados da reforma agrária em 2018. Com exceção da quantidade de decretos desapropriatórios, eles ainda não constam nas séries históricas no site da autarquia.

Exemplos de fora

Conselheiro da organização não governamental (ONG) Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, Alfonsin chama atenção para o caráter das Constituições aprovadas neste século por três nações vizinhas: Bolívia, Equador e Venezuela. “Se tivéssemos a humildade de olhar para os lados, constataríamos que elas procuram resgatar a terra das prisões que lhe impõem os apetites do capital e do mercado. A Constituição da Bolívia, por exemplo, trata a terra como mãe – ela é sujeito de direito”.

Em relação ao vizinho, governado por Evo Morales, Medeiros ressalta o autorreconhecimento como país interétnico. Ela também cita como exemplo o apoio estatal à agricultura familiar em diversos países europeus, com o fortalecimento da identidade regional dos produtos pela criação de selos de origem. 

Delgado aponta França, Alemanha, Itália e Portugal como experiências exitosas e nota que a adesão a uma política comum há seis décadas (no caso dos três primeiros) fez com que formulassem seus planos agrícolas e agrários em consonância com o Acordo de Paris e outros tratados assinados pela União Europeia.


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