29/03/2024 - Edição 540

Brasil

A mulher que lutou pela criação da Lei Maria da Penha Virtual

Publicado em 06/06/2019 12:00 -

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A história da mulher que está de frente para mim é dessas de embrulhar o estômago. “Meu ex disse que não tinha ninguém que poderia segurá-lo, nem a polícia, nem Deus”, ela conta. Apesar das inúmeras aparições em programas de TV e reportagens jornalísticas, nunca tinha ouvido a história de Rose Leonel até o momento em que me reuni com a equipe de vídeo para começarmos um novo projeto. De antemão, me disseram que era algo muito pesado. Mas só comecei a sentir o baque quando a olhei nos olhos pela primeira vez. E, como chamamos internamente, foi on camera, mais especificamente no aeroporto de Brasília.

Voltemos para 2005, ano em que a paraense terminou um relacionamento de quatro anos com o então namorado. Ambos morando na mesma cidade, Maringá. “Ele falou que se eu terminasse o relacionamento, ele iria destruir a minha vida”, rememora Rose que, ná época, era colunista social e mantinha uma página num jornal local. Um inferno pior do que o traçado e detalhado por Dante Alighiere começava.

Tudo era ainda tão novo e absurdo que, quando ouviu a ameaça, a jornalista não imaginou que as fotos íntimas que os dois tiraram durante o namoro (como algumas em que ele pedia para que ela, só de calcinha, segurasse o jornal impresso no qual trabalhava) seriam divulgadas por anos a fio, insistentemente.

Depois de processar as palavras que saíram da boca do sujeito, Rose se precaveu e foi ao cartório. Mesmo recebendo uma notificação de que, se alguma imagem íntima dela fosse publicada na internet, ele seria o culpado, o ex desdenhou e colocou, então, em prática sua estratégia de vingança.

O nome, o telefone, o e-mail, o MSN (na época, a ferramenta de comunicação mais utilizada na internet) e o telefone do filho foram vazados como bônus junto de fotos e montagens de Rose internet afora. Não foi só isso. “Ele também gravou o material em CDs e distribuiu nos principais condomínios residenciais da cidade. Ele pagou pra meninos de bicicleta distribuírem no comércio.”

Até o chefe da colunista recebeu essas imagens. E, claro, ela foi demitida.

“Rose, eu sou sua fã”

Vaias. Rose era recebida com vaias quando adentrava algum local. As pessoas de Maringá achavam que ela era prostituta, já que anúncios com seu telefone surgiam pela cidade e pela internet. As mães das amiguinhas de sua filha clamavam: “Não brinca com essa menina porque a mãe dela não presta”. O filho mais velho teve de mudar de colégio. Pedia para que a mãe parasse o carro longe. Não queria que soubessem do escândalo. Nada adiantava. A colunista achou por bem que ele morasse com o pai em outro continente.

“Tinha gente que fazia CDs e vendia na rua. Eu me lembro que até um tempo atrás uma moça falou: ‘Rose, eu sou sua fã. Sabe que eu comprei um CD seu? Tenho até hoje guardado’”, relembra, nitidamente horrorizada.

“Meus filhos tiveram a vida interrompida, trincada. Eles tiveram a infância roubada. Nada vai fazer as coisas voltarem atrás, nada vai devolver a nossa vida.”

Não é pornô. É pornô de vingança

Em um vídeo gravado durante uma transa em 2014, a atriz pornô Lola olha para a câmera e dispara: “Você pensou que fosse mais uma garota caindo na net, mas não. Eu fiz esse vídeo pra você compartilhar porque eu concordei com isso. Já as outras meninas são vítimas desse crime, vítimas de você. O que pra você é mais um minutinho de curtição, pra elas é muito sofrimento e até suicídio”. A filmagem, nomeada “Caiu na net porque quis”, tinha como objetivo conscientizar as pessoas sobre um novo tipo de crime que começava a acontecer constantemente: o revenge porn ou pornô de vingança, em português.

No Brasil, sequer existem dados oficiais que abordam esse tipo de crime. Entretanto, a ONG SaferNet, que defende os direitos humanos na internet, recebe denúncias. Se em 2005 foram cinco casos denunciados, em 2016 foram 301. Nesse mesmo ano, 67% das denúncias foram feitas por mulheres – denotando que há um recorte de gênero importante a ser debatido.

A condenação do ex

Ná época da divulgação das fotos, Rose recorreu à Justiça. Ela acredita que seu advogado não tinha muita experiência no assunto. O ex pagou uma multa de R$ 3 mil e ficou por isso. Um ano depois, a jornalista procurou ajuda em Maringá, mas afirma que ninguém quis pegar sua causa. Ela, então, procurou por um advogado e se deparou com um perito digital que iria colaborar na investigação. Depois da apreensão dos computadores utilizados pelo criminoso, ele foi condenado em 2013 a um ano, 11 meses e 20 dias de reclusão, além de pagar uma indenização de aproximadamente R$ 30 mil para Rose. A pena foi revertida em cestas básicas e serviço comunitário, fazendo com que ele se esquivasse da prisão. Até hoje, ela afirma não ter visto um centavo sequer da indenização.

Foram 12 anos tendo suas imagens insistentemente vazadas e distribuídas.

Rose quer mudar a lei

A história de Rose Leonel, que se confunde com a de tantas mulheres que têm suas vidas destruídas por ex-parceiros amorosos, não para por aí. Além de fundar a ONG Marias da Internet para apoiar vítimas de pornô de vingança, a jornalista começou uma nova jornada para conseguir alterar a legislação brasileira. Seu nome e sobrenome batizam o Projeto de Lei 5.555/2013, cujo objetivo é alterar a Lei Maria da Penha e criminalizar o vazamento de fotos e vídeos íntimos. Em sua origem, a PL estabelece reclusão de três meses a um ano, mais multa. Porém, a senadora e relatora do projeto Gleisi Hoffman (PT-PR) ampliou essa pena de reclusão para dois a quatro anos, mais multa.

Foi em um dos momentos mais importantes da vida de Rose que nos conhecemos: em dezembro de 2017, no aeroporto de Brasília, em frente às câmeras, rumo ao Senado Federal para acompanhar a votação da PL que poderá mudar a vida de tantas mulheres, assim como fez a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006. No dia nosso encontro, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) votou a favor do encaminhamento da emenda para o plenário. Essa nova votação irá decidir se a PL será oficialmente conduzida para a presidência da República, que poderá sancioná-la ou revogá-la.

Rose está confiante: “Precisamos fazer a sociedade entender que a mulher é a vítima, que o culpado é o expositor. E que isso vai virar crime”.


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