25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Amigas da mama

Publicado em 06/06/2019 12:00 -

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E no dia seguinte, elas decidiram começar de novo. Apesar de todos os medos, angústias e interrogações que atormentam quem acaba de receber o diagnóstico de câncer de mama, mulheres que passaram pela experiência contam à Radis como conseguiram se reinventar. De acordo com o último levantamento realizado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) sobre a incidência da doença no mundo, o câncer de mama é um dos três tipos de maior ocorrência, juntamente com o de pulmão e o colorretal. Mas as histórias que você vai ler aqui estão por trás das estatísticas. São relatos de sobrevivência de quem vem driblando as dificuldades e de como um clube de amigas na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, tem feito a diferença na vida de cada uma delas.

O diagnóstico veio, assim, de supetão, há 16 anos. Lurdes Araújo Cardoso, mais conhecida como Lurdinha, mal teve tempo de processar o turbilhão de informações que lhe atravessaram a vida entre o dia em que foi dormir com o seio dolorido e aquele em que recebeu nas mãos a biópsia com o resultado de um “câncer rastreador, muito raro de acontecer e que precisava de cirurgia imediata” — assim ela lembra ter ouvido do médico. A doméstica, que trabalhava de segunda a sábado em casa de família, foi internada no Instituto Nacional do Câncer (Inca) para a retirada do tumor. Fez um ano de quimioterapia e, por três vezes, tentou reconstituir a mama. “Cheguei a fazer cirurgia plástica. Não sei se foi de tanto subir e descer de ônibus, mas a prótese vazou. Um dia, disse para o doutor: ‘Eu não nasci com prótese. Vou seguir sem ela’”. Hoje, Lurdinha usa um modelo que considera muito mais confortável, confeccionado por um grupo de mulheres de forma quase caseira. Mas isso é uma outra história. Vamos por partes.

O câncer de mama é o que mais acomete mulheres em 154 países dos 185 analisados pelo estudo do Iarc. No mundo inteiro, uma a cada quatro mulheres com um caso de câncer diagnosticado tem câncer de mama. No Brasil, segundo o Inca, com exceção dos tumores de pele não melanoma, o câncer de mama é o mais frequente entre a mulheres. Para cada ano do biênio 2018-2019, o instituto estimou quase 60 mil novos casos no país, com um risco previsto de 56 ocorrências a cada 100 mil mulheres. Se os números assustam e revelam uma infinidade de desafios para a saúde pública, eles estão longe de definir a vida de quem se depara com o diagnóstico.

“Essa não era a minha sentença de morte”, disse Maria da Conceição Lima, que descobriu um câncer de mama em 2003. Tinha 43 anos e trabalhava como cozinheira em uma escola. “Um dos alunos me perguntou: ‘Tia, vou rezar pra senhora ficar boa e voltar, mas você não está com aquela doença ruim não, né?’ Eu sabia que estava com câncer. Ele, não”. Conceição não voltou. Na cirurgia, precisou remover o quadrante — faz com as mãos uma linha imaginária que percorre boa parte da mama direita até a axila. Agora, aos 58 anos, depois de 36 sessões de radioterapia, um ano de quimioterapia e outros cinco tomando remédios, está aposentada. Continua seguindo todas as recomendações médicas e até hoje faz fisioterapia. Mas ela sabe que “aquela doença ruim”, cujo nome muitos ainda não pronunciam — o câncer —, não é o fim do mundo. “Nós somos guerreiras. Nós sobrevivemos”, disse.

Arlete da Silva Costa pensa parecido. Ela tem 70 anos e descobriu o câncer de mama por meio do autoexame, quando notou um nódulo na mama direita — justamente o lado do braço que usava para cozinhar e também para fazer rodopiar a bandeira da escola de samba do bairro. Não que isso tenha lhe tirado das quadras. “O samba continua. E a gente dança conforme a música”, arrematou sorrindo a “Musa Negra da Terceira Idade”, título que ostenta com orgulho. Vaidosa, usou de toda a leveza que conseguiu para passar por algo tão pesado. Quando os efeitos colaterais da quimioterapia lhe provocaram a queda do cabelo, foi até a barbearia do sobrinho com um pedido: queria passar a máquina na cabeça — mas tinha que ser ao som de “Love by Grace”, música ouvida pela personagem de Carolina Dieckmann na antológica cena em que a atriz corta o cabelo depois da leucemia, na novela “Laços de Família”. “Levei um CD e pedi que ele tocasse”. A filha tentou lhe repreender: “Mas que palhaçada é essa? Isso aqui é sério, mãe!”. Isso foi há 14 anos. Hoje, mãe e filha dão risadas da história e, na cabeleira bonita, Arlete usa uma faixa cor de rosa que combina com a sapatilha.

O clube

As vidas de Lourdinha, Conceição, Arlete e de pelo menos outras 60 mulheres cruzaram-se lá atrás, no Clube das Amigas da Mama. O projeto, que começou ainda em 2001, por iniciativa do médico José Haddad, em Mesquita, ganhou vida própria e, depois de um período desativado, voltou a se erguer desde o ano passado. O clube era uma espécie de “pronto-socorro emocional”, descreveu Roselene Lourenço no dia em que Radis participou de uma das reuniões do Clube das Amigas da Mama — que hoje mantém encontros na primeira quarta-feira de cada mês, no galpão de uma igreja Batista em reforma, em um bairro da periferia de Nova Iguaçu. “Lá a gente fazia fisioterapia, mas não era só isso. Quando cheguei, era só tristeza, não abria nem a boca. Foi quando percebi a quantidade de coisas que a vida ainda me reservava”, contou Rose, como é carinhosamente chamada.

Quando nasceu, o Clube funcionava como uma casa de acolhimento e ficava aberto diariamente, das 7 da manhã às 10 da noite. Era tão conhecido na região que muitas mulheres chegaram ali encaminhadas por seus mastologistas, fisioterapeutas e psicólogos da rede pública. Havia atividades em grupo para todo gosto e havia também a pequena fábrica de próteses mamárias, responsável pela confecção de um modelo especial com preenchimento de alpiste — de longe, a preferida entre as mastectomizadas do grupo. “Nós próprias construíamos nossas próteses. Enquanto uma costurava, outra colocava o alfinete, outra ainda fazia o preenchimento”, disse Rose. Em coro, elas prometeram que farão de tudo para reativar a confecção de próteses.

Aos poucos, o Clube vem voltando a reunir todas essas mulheres. Hoje, durante os encontros, elas fazem aulas de artesanato e pintura, cujos produtos acabam lhes valendo uma renda extra. As reuniões são animadas. O Clube ganhou um hino assinado por um compositor que integra o grupo Doutores da Alegria. Vez em quando, ele aparece por ali com o seu violão. Elas cantam e dançam. Mas o ponto alto das reuniões continua sendo a roda de testemunhos em que trocam informações sobre a doença. Contam como se sentem e compartilham orientações sobre os caminhos percorridos para acesso, diagnóstico e tratamento. Estimulam outras mulheres a buscar apoio. Constroem juntas uma teia de saberes que já extrapolou o espaço físico e hoje ocupa também o universo virtual em grupos de WhatsApp e redes sociais. Envolvem os familiares. Cuidam-se.

“A gente que viveu a experiência do câncer tem uma linguagem própria, quase uma linguagem única. É por isso que esse espaço se torna tão importante”. A fala é de Silvania Silva, que se aproximou do Clube, primeiro como voluntária, há 10 anos, quando entrou acreditando que podia ensinar receitas de bolo para as mulheres que passaram pelo câncer. Acabou aprendendo muito mais. Anos mais tarde, ao fazer uma mamografia e ouvir da médica que precisava conversar com um dos familiares sobre o resultado, Silvania respondeu: “Você pode conversar comigo mesma, porque eu faço parte do Clube das Amigas da Mama. E pretendo tirar de letra essa experiência do câncer”.

Para Silvania, ter sido voluntária do Clube fez toda a diferença sobre como levar a vida dali em diante. “Geralmente, quando a gente recebe o diagnóstico de câncer tem sempre alguém perto pra dizer que é horrível e pra fazer de você uma coitadinha”, continuou. “As pessoas nos penalizam e matam a gente antes de qualquer tratamento”. A angústia frente ao resultado da biópsia, as mudanças com o corpo e as alterações na rotina são por si só obstáculos imensos, ela sabe. “Mas nós sabemos também que há vida após o diagnóstico de câncer de mama”. Silvania acredita que ainda falta muito até que todas as mulheres diagnosticadas consigam encontrar informações acessíveis sobre o que fazer, a quem procurar e como proceder para seguir a vida dentro das limitações impostas. Tudo isso ela garante que encontrou no Clube.

A grande amiga

Joelma Araújo Ali é considerada por todas do grupo como a grande articuladora da volta do Clube das Amigas da Mama à ativa. “Depois do câncer, eu ganhei amigos que não tinha e descobri uma força para realizar coisas que estavam adormecidas”, disse Joelma, que hoje tem diploma de técnica de enfermagem e fez curso de massagista para trabalhar com pessoas que passaram por experiência parecida com a sua. “Se alguns insistem em dizer que a gente tem uma sobrevida, então, eu tratei de aproveitar a minha”. Com Joelma, aconteceu de passar por seis médicos que consideravam inofensivo o nódulo que ela tinha na mama esquerda — até 2001, quando recebeu o resultado de uma biópsia que detectava a presença de “células malignas”. Pouco depois, ainda na sala da médica, atendeu uma ligação do marido, ansioso e assustado:

– Jô, tudo bem? E aí?

– Tudo bem. Tô com câncer.

– (Silêncio demorado) E a sua cabeça, como está?

– Tá no mesmo lugar (risos).

Foi assim que Joelma relatou o episódio ocorrido há 18 anos. Do outro lado da linha — isso ela saberia depois —, o marido precisou de atendimento médico. Ela respirou fundo. Em casa, arrumou as malas e mudou-se para a casa da mãe, com ele e os dois filhos pequenos. “Pensei que, com a casa cheia e o apoio de todos, seria mais fácil encarar tudo o que viria”. Fez um ano de quimioterapia, retirou toda a mama e ainda não passou pela reconstituição. “Todo ano, penso que vai dar tempo e vou fazer. No dia em que tiver que colocar, eu coloco”.

A fisioterapeuta Clarice de Santana, que atua na reabilitação pós-câncer de mama, acredita que qualquer trabalho em grupo é muito importante para o tratamento. “Primeiro, porque elas descobrem que não estão sozinhas. E segundo, porque podem falar sobre queixas e medos que não conseguem em qualquer espaço”. Seja porque a família não percebe a real dimensão do caminho a percorrer, seja porque essas mulheres são o membro mais forte em casa, o fato é que, se ela desmoronar, todo mundo desmorona, continuou Clarice. “O clube e outros grupos como esse acabam trabalhando um suporte emocional para que elas possam se reinserir na sociedade e para que voltem a se enxergar como mulher, como pessoa produtiva, que não morreu, que está viva”.

O impacto do diagnóstico é devastador para muitas mulheres. Algumas querem se isolar da família e dos amigos. Muitas mergulham na depressão. “Para a mulher, a mama tem muito a ver com a feminilidade”, disse a psicóloga Isabelle Melo, para quem esses grupos costumam ser grandes aliados das terapias tradicionais. De acordo com Isabelle, que atende muitas mulheres do Clube, uma mastectomia, por exemplo, além das questões de ordem prática, afeta a autoestima e interfere nas relações afetivas e sexuais.

À Radis, Joelma confidenciou que leva a mesma vida de antes com o seu companheiro com quem acaba de completar 25 anos de casada. “Sei que muitas mulheres têm problemas na relação sexual com seus parceiros. Mas eu fiz sexo ainda com dreno”, disse, numa forma de naturalizar o que, para muitas, ainda é um tabu. “Uso decote, roupas mais ousadas e ainda ensino como fazer para manter a vaidade”. Mas ela sabe que essa é uma angústia compartilhada por muitas. Ali mesmo, no Clube, há relatos de mulheres que ainda não se sentem à vontade ou que tiveram que redescobrir o desejo e reinventar a relação com o parceiro aos poucos.

As reuniões do Clube atraem cada vez mulheres, inclusive quem não tem histórico de câncer. “Eu não passei pelo câncer como elas, mas sou uma voluntária assumida”, disse Henoisa Leite. “Já acompanhei meninas na quimioterapia, fui à cirurgia, fiz comida, limpei a casa e dei muito colo”. Foi ela quem sugeriu que o grupo passasse a se reunir no local atual. Aos 60 anos, Henoisa, que tinha apenas o ensino médio, decidiu voltar a estudar. Próximo ano, conclui a faculdade de Serviço Social. “Queria saber mais, não para guardar conhecimento pra mim, mas para ter melhores condições de ajudá-las”. Juntas, as garotas do Clube fazem cursos extras sobre assuntos diversos. Em maio, muitas delas participaram de um curso internacional ofertado pela Fiocruz. O tema era “Promoção da Saúde no envolvimento da ciência com a sociedade: experiências colaborativas de produção de conhecimentos e de empoderamento comunitário”.

Todas as meninas do Clube das Amigas da Mama fizeram ou fazem tratamento pelo SUS. Desde 2013, mulheres contam com mais um amparo legal na luta contra o câncer de mama. Sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff, a chamada Lei dos 60 dias assegura aos pacientes com câncer o início do tratamento em no máximo 60 dias após a inclusão da doença em seu prontuário no SUS. O prazo máximo vale para que o paciente passe por uma cirurgia ou inicie sessões de quimioterapia ou radioterapia, conforme prescrição médica. Mas o não cumprimento da lei e o diagnóstico tardio ainda permanecem como obstáculos concretos na vida dessas mulheres.

Rose Lourenço descobriu um pequeno caroço na mama durante o exame preventivo, em julho de 2014. Ao fazer a mamografia, precisou ser encaminhada com urgência para a mastologista. Mas a biópsia só seria realizada em outubro e o procedimento cirúrgico em que fez a mastectomia, em março do ano seguinte — ou seja, oito meses depois da primeira consulta. Na reunião do Clube, Rose estava usando a braçadeira compressiva, uma espécie de luva para aliviar os sintomas de um linfoedema [inchaço no braço]. A braçadeira foi prescrita na fisioterapia, que Rose vem tentando seguir como prescrita. Mulheres que passam pelo câncer de mama sofrem sequelas. Além do linfoedema por conta da retirada dos gânglios linfáticos da axila, muitas desenvolvem um bloqueio articular e não conseguem movimentar o braço. Outras têm alteração postural.

No Clube das Amigas da Mama, além das voluntárias e das meninas que sobreviveram ao câncer, há também mulheres que acabaram de receber o diagnóstico. Essas recebem toda a atenção por parte das demais integrantes. No dia em que Radis participou da reunião, três delas haviam passado por sessões de quimioterapia e não puderam comparecer ao encontro. As mulheres do Clube fazem questão de oferecer suporte, quando a família não está em condição emocionais ou mesmo materiais. Não medem esforços. Participam de campanhas para fortalecer a luta contra o câncer de mama. Falam de prevenção. E se for preciso, organizam protestos. Estavam prestes a sair em defesa do Hospital da Posse — um hospital da rede pública do Rio de Janeiro onde a maioria das mulheres do Clube garantiu sua cirurgia. “Vamos dizer que a gente não está satisfeita com o que vem acontecendo com a saúde em nosso município”, alertou uma delas.


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