19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

O nome é violência obstétrica

Publicado em 03/06/2019 12:00 -

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“Quer que seu filho morra?” “Na hora de fazer não gritou!” “No ano que vem você estará aqui de novo”. Ouvir frases deste tipo de um profissional de saúde durante o parto, pré-natal ou puerpério é violência obstétrica. Ser xingada, mandada que fique quieta quando está sentindo dor, ouvir gritos, chantagens e ameaças veladas, ser colocada em situações indignas e vexatórias, sofrer com dolorosos e diversos exames de toque intraparto com o objetivo de treinar residentes ou estudantes são exemplos frequentes mencionados por Melania Amorim, médica e professora de ginecologia e obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Ela lembra que essas práticas abusivas têm grande impacto físico e psicológico sobre a qualidade de vida, a saúde sexual e reprodutiva da mulher.

Em seu cotidiano profissional, Melania, que também leciona na Faculdade de Ciências Médicas de Campina Grande (FCM) e no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), no Recife, recebe registros, muitos deles extremos, das práticas violentas, como um vídeo que circulou recentemente pelas redes sociais. Nele, o médico que assistia ao parto agride as partes genitais de uma jovem de 17 anos. Em outro, uma mulher pede ao médico que não faça episiotomia. “Ele então rasga o períneo da paciente usando a mão”, relata a pesquisadora.

No dia 3 de maio, o governo decidiu abolir o uso do termo “violência obstétrica” em notas técnicas e textos oficiais que materializam as diretrizes das políticas públicas. O texto do Ministério da Saúde afirma que “estratégias têm sido fortalecidas” para que a expressão pare de ser usada pelo órgão, alegando que o termo seria inadequado porque “tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”. “É uma tentativa de silenciamento e um grande desapontamento, mas não vão nos impedir de falar sobre e de denunciar, muito menos de pesquisar e publicar”, disse Melania à Radis, que atribui a decisão a uma visão equivocada que só reforça um modelo de assistência à saúde sexual e reprodutiva da mulher que é misógino, patriarcal, medicalizado e hospitalocêntrico. “A raiz do problema está na violência de gênero, na apropriação dos corpos das mulheres e retirada da autonomia delas”, analisa

 

Como você encarou a decisão do governo em banir a expressão violência obstétrica das notas técnicas e documentos oficiais do Ministério da Saúde?

É uma tentativa de silenciamento e um grande desapontamento. É um tremendo retrocesso, mas eles não podem nos proibir de falar sobre e denunciar. Muito menos de pesquisar e publicar sobre o tema. O termo violência obstétrica foi cunhado e apropriado pelas ativistas e reflete nosso entendimento de que se trata de violência de gênero, com várias intersecções, como de classe e raça. Já dispomos até de jurisprudência a respeito no Brasil e de leis estaduais definindo o termo. Não iremos, portanto, abrir mão de utilizá-lo por conta de uma compreensão equivocada do governo. Não é com o uso de eufemismos que se combate essa prática. Abuso, maus-tratos e negligência também são muito graves e os profissionais deveriam ter vergonha de que esses fatos aconteçam. Em uma revisão sistemática e metanálise publicada este ano em periódico da Organização Panamericana da Saúde, a frequência de desrespeito e maus-tratos durante o parto foi de 43% dos casos, durante aborto foi 29%, em 12 estudos incluídos na pesquisa. Vamos agora dar nome aos bois e chamar como é devido, pois tudo isso é violência obstétrica.

Como se conceitua a violência obstétrica? Em quais atitudes ela se manifesta?

Violência obstétrica consiste na apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicalização abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em sua qualidade de vida. Essa é uma das definições, muito usada na literatura acadêmica atual, e já respaldada por lei em alguns países como a Argentina e a Venezuela. Vários estados do Brasil já têm legislação específica sobre o tema. Um dos mais frequentes exemplos é a prática da episiotomia de rotina e pressão fúndica uterina ou manobra de Kristeller, que é obsoleta, prejudicial e contraindicada, tanto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto pela normatização brasileira. A orientação da OMS é contrária às episiotomias de rotina e reconhece que, na atualidade, não há evidência científica corroborando qualquer indicação desse procedimento. Essas brutalidades são a ponta de um iceberg, porque qualquer tipo de apropriação do corpo da mulher e dos processos de saúde e assistência, reduzindo a autonomia da mulher, são caracterizados como violência obstétrica, uma das formas da violência de gênero. Ser xingada, mandada que fique quieta quando está sentindo dor, ouvir gritos, chantagens e ameaças veladas e ser deixada em situações indignas e vexatórias, sofrer dolorosos e diversos exames de toque intraparto com o objetivo de treinar residentes ou estudantes também são exemplos frequentes. Essas práticas abusivas têm grande impacto físico e psicológico sobre a qualidade de vida, a saúde sexual e reprodutiva da mulher.

A violência obstétrica acontece mais em partos normais ou cesarianas?

As mulheres são submetidas a desrespeitos, independente da via de nascimento. A cesariana pode ser uma forma de violência obstétrica, quando ela não tem indicação real. Apesar de muitos partos normais serem muito sofridos devido ao modelo de assistência que é um verdadeiro horror, elas ainda preferem em sua maioria o parto normal, como apontou a pesquisa “Nascer no Brasil”, da Fiocruz. No entanto, ainda há médicos que “enrolam” a mulher com justificativas que não têm embasamento nas evidências científicas, como a clássica circular de cordão umbilical, para impor uma cirurgia que no fundo acontece por exclusiva conveniência do médico. Não permitir a presença de um acompanhante de escolha da mulher, não permitir o acompanhamento de uma doula (e a presença do pai não deve excluir a da doula). As evidências científicas mostram que todos os índices que avaliam os resultados do parto para a mulher e para o bebê melhoram quando ela tem um apoio contínuo intraparto. Outras atitudes e omissões que negam o direito das mulheres, como não levar a sério o plano de parto, onde a parturiente deixa expressos por escrito os procedimentos e desejos que permite ou que gostaria de evitar na hora do parto, momento em que estará mais vulnerável para defender essas posições. É uma forma sutil de se apropriar do corpo dela. É um modelo de assistência todo enviesado.

Por que as entidades corporativas médicas como os Conselhos Regionais e o Conselho Federal de Medicina apoiam essa decisão?

Os conselhos conseguiram poder de pressão sobre o governo e isso está diretamente relacionado ao processo eleitoral. Houve um apoio declarado das entidades da categoria ao candidato vencedor. No entanto, violência obstétrica não quer dizer violência causada pelo profissional de obstetrícia. Ela pode acontecer no parto, aborto, puerpério, pré-natal. Qualquer profissional pode praticar. Temos um modelo de assistência hospitalocêntrico e medicalizado, centralizado na figura do médico, por isso nas denúncias e relatos os médicos aparecem mais. Eu reforço que é lamentável, no lugar de enfrentar o problema, tentar fazer impedir que o termo seja utilizado, para evitar ferir a susceptibilidade da classe médica. Abusos e maus-tratos são também graves e os médicos deveriam participar do enfrentamento a essa questão, que não vai ser feita com eufemismos. É difícil mudar essa mentalidade da classe médica porque a maioria veste a carapuça e percebe que em algum momento praticou violência obstétrica, como eu mesma admito. É preciso entender, saber que isso causa dor e se perdoar. É preciso repensar e reconhecer que hoje existe respaldo do uso internacional do termo. Em relação ao escopo de todo o problema, a gente tem o respaldo também da OMS, que fala em ações para prevenir e combater abusos e maus-tratos durante o parto.

Qual a raiz da violência obstétrica? Por que ela é tão frequente?

A violência obstétrica é violência de gênero. A obstetrícia é um ramo da medicina essencialmente misógino e machista. Há um viés de gênero na prática e na própria constituição do campo de conhecimento. O saber médico é constituído em um modelo patriarcal que vê o corpo feminino como essencialmente defectivo. E é um modelo que reproduz a desigualdade e a hierarquia da sociedade. As mais pobres, as negras, as lésbicas sofrem mais episódios desse tipo de violência. A pesquisa “Nascer no Brasil” mostrou que essa manobra de Kristeller acontece em 37% dos nascimentos, em 36% dos casos se usa ocitocina no soro para aumentar as contrações e “acelerar o parto” e a pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2010 mostrou que 25% das mulheres se percebem vítimas de maus-tratos durante o nascimento dos seus filhos. A violência obstétrica é caracterizada em legislações internacionais e temos discutido em diferentes audiências no Ministério Público que a taxa excessiva de procedimentos invasivos ou desnecessários é percebida como maus-tratos pelas mulheres. Por tudo isso, que eu mesma, quando sou entrevistada, faço um único pedido para os jornalistas. Não quero ser retratada usando jaleco e estetoscópio. Porque isso reforça na mídia a figura do médico em posição de autoridade.


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