19/04/2024 - Edição 540

Poder

Retrocesso no Código Florestal pode custar caro

Publicado em 31/05/2019 12:00 -

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Fala-se muito de leis que não pegam no Brasil. Mas há no país uma lei irrevogável: a Lei da Selva. Estabelece que o mais forte pode comer o mais fraco. Com a força das mais de duas centenas de votos de que dispõe no Legislativo, a bancada ruralista decidiu mastigar o Código Florestal. Trata-se de uma lei que mal saiu do berço. Foi aprovada em 2012. E já passa por um processo de desfiguração.

Por um placar elástico —243 a 19 votos— os deputados aprovaram o texto-base de uma medida provisória que estica prazos para a recomposição de áreas desmatadas e concede anistia a desmatadores. Adensada por jabutis enfiados dentro do texto, a MP enviou para o beleléu a perspectiva de recuperação da vegetação em uma área equivalente a duas vezes o Estado de Sergipe.

Aprovada na Câmara, a medida provisória vai ao Senado. A ex-senadora, ex-ministra e ex-presidenciável Marina Silva, hoje líder do partido Rede, divulgou em suas redes sociais um vídeo que resume o que está em jogo (assista abaixo).

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, decidiu não convocar sessão deliberativa para quinta-feira (30). Com isso, os senadores deixaram de apreciar a medida provisória que flexibiliza o Código. Como o prazo de validade da MP expira na próxima segunda-feira (3), ficarão sem efeito as decisões tomadas pelos deputados. Significa dizer que o Código original, aprovado em 2012, continuará em vigor.

Escorando-se num acordo firmado com as lideranças dos partidos com representação no Senado, Alcolumbre anunciou: "Informo aos senadores e senadoras que não convocarei amanhã [quinta, 30] sessão deliberativa para apreciarmos essa MP. Diante desse informe, eu agradeço o apoio e as manifestações de vários senadores no sentido da construção de um acordo e de um entendimento."

O presidente do Senado arrematou: "Portanto, independente da votação na Câmara se encerrar no dia de hoje, este presidente cumprirá o acordo construído com vários líderes partidários. Nós não faremos a votação da referida MP."

Pior que a encomenda

A medida provisória foi editada por Michel Temer. Mas seu conteúdo, piorado pelas emendas que os deputados adicionaram, combina com a política de terra arrasada que vigora no governo do sucessor Jair Bolsonaro. Tomado pelas posições que adota, o atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, parece tramar contra o ambiente inteiro.

O Brasil tornou-se uma potência agropecuária porque combinou o clima e o solo favoráveis com a incorporação de novas tecnologias ao processo produtivo. Bolsonaro e o pedaço troglodita do setor rural injetaram na agenda coisas como o afrouxamento da fiscalização do trabalho escravo no campo e a flexibilização dos controles ambientais.

Antes mesmo da investida contra o Código Florestal, 602 cientistas europeus assinaram uma carta sobre a encrenca ambiental no Brasil. Foi publicada em 26 de abril na conceituada revista Science. Recomenda-se no texto que os negócios com o Brasil sejam condicionados à redução do desmatamento e respeito aos direitos dos povos indígenas.

O ministro Salles deu de ombros: "Não somos os responsáveis pela mudança climática. Precisamos, sim, conter o desmatamento da Amazônia, que vem crescendo há mais de dois anos. Mas não vamos deixar que isso seja pretexto para que estrangeiros venham nos dizer onde e como devemos produzir alimentos."

A parceria firmada entre o ministro do Meio Ambiente e a banda retrógrada do ruralismo ainda vai custar caro aos exportadores de alimentos do Brasil. Hoje, já não basta produzir muito e bem. É preciso comprovar que o processo de produção é sustentável. Sob pena de arrostar a repulsa de consumidores ambientalmente conscientes.

Sem participação popular

Um decreto publicado na quarta-feira (29) reduz e altera a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), principal órgão consultivo do Ministério do Meio Ambiente e responsável por estabelecer critérios para licenciamento ambiental.

O colegiado, que contava com 96 conselheiros, entre membros de entidades públicas e de ONGs. A partir de agora terá 22 membros titulares, além do ministro Ricardo Salles na presidência – totalizando 23.

Alguns órgãos governamentais perderam representação no Conama, como a Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Agência Nacional de Águas (ANA). Os ministérios públicos federal (MPF) e estaduais também foram excluídos do órgão. Ta não tem mais representações as classes indígena, científica e sanitária.

As reações ao decreto foram quase imeadiatas. A Frente Nacional dos Prefeitos (FNP) e a Associação Nacional de Órgãos Municipais de Meio Ambiente (Anamma) demonstraram preocupação com a decisão do presidente Jair Bolsonaro. Segundo as entidades, a diminuição afetou a participação municipalista.

"A composição do colegiado foi resultado de construção democrática e do protagonismo das entidades que representam, com legitimidade e pluralidade, as cidades e os órgãos municipais de meio ambiente. Por isso, as instituições repudiam a alteração drástica, sem qualquer discussão prévia, o que confronta os princípios básicos da harmonia federativa", destacaram a FNP e a Anamma em nota conjunta.

O Proam (Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental) entrou com uma representação no Ministério Público, assinada por mais de 30 entidades, contra o decreto. "Essa medida é para destruir a representação da sociedade civil. Essa parece ser a intenção do governo", disse Carlos Bocuhy, presidente do instituto.

Deputados apresentaram projetos de decreto legislativo para sustar os efeitos do decreto presidencial. Um deles é do líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), e outro, do deputado Célio Studart (PV-CE).

Para Molon, a medida desrespeita a Constituição, uma vez que enfraquece o órgão responsável pela definição de políticas públicas para a preservação do meio ambiente. "Mais uma vez, o presidente da República tenta por meio de decreto presidencial avançar em sua cruzada contra o meio ambiente. Nós não vamos permitir".

Studart classifica a decisão do presidente como um "grande revés" para o conselho e leva a concluir que há um processo de diminuição da transparência e o tolhimento da participação nas decisões do Conama.

O Conama foi criado em 1984 e passou a definir normas como as de licenciamentos ambientais e controle da poluição.

Em nota, o Ministério do Meio Ambiente afirmou que, a partir de agora o processo decisório será "mai objetivo e com foco na eficência e qualidade". Segundo o texto, a redução de membros garante "o princípio da eficiência administrativa".


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