28/03/2024 - Edição 540

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Smartfone, um espião no seu bolso

Publicado em 31/05/2019 12:00 -

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Dentre as mega corporações que o vigiam, sua operadora de celular tem sido sempre a mais intensa no monitoramento, em contato constante com o pequeno dispositivo que você mantém na palma da mão quase o tempo todo. Um documento confidencial do Facebook analisado pelo Intercept mostra que a rede social atrai operadoras telefônicas e fabricantes de celulares – cerca de 100 empresas diferentes em 50 países – oferecendo o uso de ainda mais dados de vigilância retirados diretamente do seu smartphone pela rede social. Oferecidos para um grupo seleto de parceiros do Facebook, os dados incluem não apenas informações técnicas sobre os dispositivos dos usuários da rede social e o uso de redes wi-fi e de celular, mas também suas localizações anteriores, interesses e até mesmo seus grupos sociais. Esses dados são obtidos não apenas dos principais aplicativos iOS e Android da empresa, mas também do Instagram e do Messenger. Os dados têm sido usados por parceiros do Facebook para avaliar sua posição em relação a concorrentes, incluindo clientes perdidos e ganhos, mas também para usos mais controversos, como anúncios segmentados por raça.

Alguns especialistas estão particularmente alarmados com o fato de o Facebook ter comercializado o uso da informação – e parece ter ajudado a facilitar diretamente seu uso, juntamente com outros dados do Facebook – com o objetivo de rastrear os clientes com base em sua probabilidade de obter crédito financeiro. Tal uso poderia entrar em conflito com uma lei federal americana, que regula rigorosamente as avaliações de crédito.

O Facebook disse que não fornece serviços de análise de crédito e que os dados que oferece às operadoras e fabricantes de celulares não vão além dos que já estavam sendo coletados para outros usos.

As parcerias de telefonia celular do Facebook são particularmente preocupantes por conta dos amplos poderes de vigilância já desfrutados por operadoras como a AT&T e a T-Mobile: assim como o seu provedor de serviços de Internet é capaz de observar os dados utilizados entre sua casa e o resto do mundo, as empresas de telecomunicações têm um ponto privilegiado de onde podem coletar muitas informações sobre como, quando e onde você está usando seu telefone.

A AT&T, por exemplo, afirma claramente em sua política de privacidade que coleta e armazena informações “sobre os sites que você visita e os aplicativos móveis que você usa em nossas redes”. Junto com a supervisão de chamadas e mensagens de texto por parte das operadoras, isso representa praticamente tudo o que você faz em seu smartphone.

Por dentro do “Actionable Insights”

Você poderia pensar que esse grau de monitoramento contínuo seria mais do que suficiente para um gigante de comunicações operar seu negócio – e talvez, por algum tempo, realmente tenha sido. Mas a existência do “Actionable Insights” do Facebook, um programa corporativo de compartilhamento de dados, sugere que as empresas de comunicações não estão satisfeitas com o que já conseguem ver das nossas vidas.

O Actionable Insights foi anunciado no ano passado em um post inofensivo e fácil de ignorar no blog de engenharia do Facebook. O artigo, intitulado “Divulgação de ferramentas para ajudar os parceiros a melhorar a conectividade”, sugeria fortemente que o programa visava principalmente a solução de conexões fracas de dados celulares ao redor do mundo. “Para resolver esse problema”, começava o post, “estamos construindo um conjunto diversificado de tecnologias, produtos e parcerias projetados para expandir os limites da qualidade e desempenho de conectividade existentes, catalisar novos segmentos de mercado e proporcionar melhor acesso aos desconectados.” Que tipo de monstro estaria contra um melhor acesso para os desconectados?

O post do blog faz apenas uma breve menção do segundo propósito menos altruísta do Actionable Insights: “possibilitar melhores decisões de negócios” por meio de “ferramentas analíticas”. De acordo com materiais analisados pelo Intercept e uma fonte diretamente familiarizada com o programa, o benefício real do Actionable Insights não está na sua capacidade de consertar conexões instáveis, mas de ajudar corporações específicas a usar seus dados pessoais para comprar publicidade melhor direcionada.

A fonte, que discutiu sobre o Actionable Insights sob condição de anonimato porque não tinha permissão para falar com a imprensa, explicou que o Facebook ofereceu o serviço a operadoras e fabricantes de telefones aparentemente de graça, com acesso ao Actionable Insights concedido para adoçar relações publicitárias. De acordo com a fonte, o valor de conceder acesso gratuito ao Actionable Insights nesses casos não é simplesmente ajudar a atender melhor os clientes de telefonia celular com sinais fracos, mas também garantir que as operadoras de telefonia e os fabricantes continuem comprando mais e mais propagandas direcionadas do Facebook.

É exatamente esse tipo de acesso a dados quase transacionais que se tornou uma marca registrada dos negócios do Facebook, permitindo que a empresa negasse de forma plausível que alguma vez tenha vendido seus dados, enquanto seguia aproveitando-os para obter receita. O Facebook pode não estar “vendendo” dados através do Actionable Insights no sentido mais literal da palavra – não há uma maleta cheia de discos rígidos sendo trocada por outra contendo dinheiro –, mas o relacionamento baseado em gastos e monetização certamente se encaixa no espírito de uma venda. Um porta-voz do Facebook se recusou a responder se a empresa cobra pelo acesso do Actionable Insights.

O documento confidencial do Facebook fornece uma visão geral do Actionable Insights e defende seus benefícios para possíveis usuários corporativos. Ele mostra como o programa, supostamente criado para ajudar a melhorar a vida de clientes com serviço precário de celular, está pegando muito mais dados do que você está obtendo de sinal em seu aparelho.

De acordo com uma parte da apresentação, o aplicativo móvel do Facebook coleta e empacota oito categorias diferentes de informações para mais de 100 empresas diferentes de telecomunicações em mais de 50 países, incluindo dados de uso de telefones de crianças de até 13 anos. Essas categorias incluem o uso de vídeo, informações demográficas, localização, uso de redes wi-fi e de celular, interesses pessoais, informações sobre dispositivos e “homofilia de amigos”, um jargão acadêmico. Um artigo de 2017 sobre amizade em mídias sociais do Journal of the Society of Multivariate Experimental Psychology definiu “homofilia” neste contexto como “a tendência que os nós têm de formar relações com aqueles que são semelhantes a eles mesmos”. Em outras palavras, o Facebook está usando o seu telefone para fornecer não somente dados comportamentais sobre você às operadoras de celular, mas sobre seus amigos também.

A partir de somente essas oito categorias, um terceiro poderia aprender enormemente sobre os padrões de vida cotidiana dos usuários e, embora o documento alegue que os dados coletados pelo programa são “agregados e tornados anônimos”, os estudos acadêmicos descobriram em diversas ocasiões que os dados de usuários supostamente tornados anônimos podem ser facilmente revertidos em informações que deixam de ser anônimas. Hoje, tais alegações de anonimização e agregação são essencialmente um clichê das empresas que apostam que você se sentirá confortável com elas possuírem um enorme acervo de observações pessoais e previsões comportamentais sobre seu passado e futuro, desde que os dados sejam suficientemente esterilizados e agrupados com os do seu vizinho.

Um porta-voz do Facebook disse ao Intercept que o Actionable Insights não coleta dados de dispositivos de usuários que já não estivessem sendo coletados anteriormente. Em vez disso, segundo o porta-voz, o Actionable Insights reembala os dados de novas maneiras úteis para anunciantes nas indústrias de telecomunicações e smartphones.

O material analisado pelo Intercept mostra informações demográficas apresentadas em uma exibição no estilo de um painel de controle, com mapas mostrando as localizações dos clientes no nível do município e da cidade. Um porta-voz do Facebook disse que “não achava que ia além do código postal”. Mas, armado com dados de localização transmitidos diretamente de seu telefone, o Facebook poderia tecnicamente fornecer a localização do cliente com precisão de vários metros, dentro ou fora de casa.

Segmentação por raça e potencial de crédito

Apesar das repetidas garantias do Facebook de que as informações do usuário são completamente anônimas e agregadas, os materiais do Actionable Insights enfraquecem essa afirmação. Um estudo de caso do Actionable Insights a partir do documento geral promove como uma operadora de telefonia celular norte-americana anônima usou anteriormente seu acesso ao Actionable Insights para segmentar um grupo racial específico e sem nome. A segmentação do Facebook por “grupos de afinidade multicultural”, como a empresa anteriormente se referia à raça, foi descontinuada em 2017 depois que a prática de focalização foi amplamente criticada como potencialmente discriminatória.

Outro estudo de caso descreveu como o Actionable Insights pode ser usado para destacar clientes individuais com base na sua capacidade de obter linhas de crédito. Neste exemplo, o Facebook explicou como um de seus clientes de publicidade, com sede fora dos EUA, queria excluir indivíduos de futuras ofertas promocionais com base em seu crédito. Usando dados fornecidos por meio do Actionable Insights, um estrategista de ciência de dados, uma função para a qual o Facebook continua a contratar, conseguiu gerar perfis de clientes com posições de crédito desejáveis e indesejáveis. O cliente de publicidade usou esses perfis para segmentar ou excluir usuários do Facebook que se pareciam com esses perfis.

“O que eles estão fazendo é filtrar os usuários do Facebook em critérios de credibilidade e, potencialmente, escapar da aplicação do Fair Credit Reporting Act (FCRA) [lei que restringe as formas como as informações de crédito dos clientes podem ser coletadas, usadas e distribuídas]. … Não é diferente do Equifax fornecendo dados ao Chase Bank (como o Serasa fornecendo dados para uma fintech)”

O uso das chamadas “audiências semelhantes” é comum na publicidade digital, permitindo que os profissionais de marketing peguem uma lista de clientes já existente e permitam que o Facebook os combine com usuários que se assemelham à lista original com base em fatores como dados demográficos e interesses declarados na rede. Como o Facebook descreve em um guia on-line para os anunciantes, “um público similar é uma maneira de alcançar novas pessoas que possam estar interessadas em seu negócio, porque elas são semelhantes aos seus melhores clientes atuais”.

Mas esses públicos parecidos não são apenas novos clientes em potencial. Eles também podem ser usados para excluir clientes indesejados no futuro, criando uma espécie de lista negra demográfica de segmentação de anúncios.

Ao promover essa técnica em seu documento confidencial, o Facebook comercializa para futuros clientes corporativos e parece ter trabalhado com o cliente de publicidade para possibilitar o direcionamento de indivíduos elegíveis para crédito, baseado, pelo menos em parte, em dados comportamentais extraídos de seus telefones – em outras palavras, permitir que os anunciantes decidam quem merece ver um anúncio com base apenas em algum mecanismo invisível e totalmente inescrutável.

Não há qualquer indicação de como exatamente os dados do Facebook poderiam ser usados por terceiros para determinar quem é digno de crédito, nem nunca houve qualquer indicação da empresa de que o modo como você usa seus produtos influencia se você será destacado e excluído de certas ofertas no futuro. Talvez seja tão simples quanto o Facebook permitir às empresas dizer “Pessoas com crédito ruim se parecem e agem assim nas redes sociais”, um caso de perfil correlacional bem diferente das nossas noções de boa “higiene financeira” pessoal necessárias para manter uma boa pontuação de crédito. Como se espera que os consumidores naveguem nesse processo invisível e não oficial de pontuação de crédito, uma vez que nunca são informados de sua existência, isso permanece uma questão em aberto.

Esse mecanismo também lembra a chamada “linha vermelha”, a prática histórica (e agora ilegal) de negar hipotecas e outros empréstimos a grupos marginalizados com base em seus dados demográficos, de acordo com Ashkan Sultani, um pesquisador de privacidade e ex-tecnólogo chefe da Comissão Federal do Comércio (FTC, na sigla em inglês).

O pensamento de ver menos anúncios do Facebook pode parecer um bem puro – certamente soa melhor que a alternativa. Mas o relatório de crédito, por mais monótono que possa parecer, é uma prática extremamente sensível, com consequências econômicas profundas, que determina quem pode ou não pode, digamos, possuir ou alugar uma casa, ou obter acesso financeiro fácil a um novo celular. O Facebook parece estar permitindo que as empresas cheguem até você com base em uma espécie de pontuação de crédito extraoficial, uma determinação cinzenta do mercado de se você é um bom consumidor baseado em quanto você e seus hábitos se assemelham a um vasto conjunto de pessoas desconhecidas.

Em uma conversa inicial com um porta-voz do Facebook, ele afirmou que a empresa “não fornece serviços de crédito, nem é esta uma característica do Actionable Insights”. Quando perguntado se o Actionable Insights facilita o direcionamento de anúncios com base na qualidade de crédito, o porta-voz respondeu “Não, não há uma instância em que isso seja usado”. É difícil conciliar essa afirmação com o fato de os materiais promocionais do Facebook mostrarem como o Actionable Insights pode permitir que uma empresa faça exatamente isso.

Questionado sobre essa aparente inconsistência entre o que o Facebook diz aos parceiros publicitários e o que ele disse ao Intercept, a empresa se recusou a discutir o assunto de forma oficial, mas forneceu a seguinte declaração: “Nós não avaliamos – nem nunca avaliamos – a capacidade de crédito das pessoas para o Actionable Insights ou para anúncios, e o Facebook não usa as informações de crédito na forma como exibimos anúncios.”

Essa afirmação não contradiz a prática do Facebook, permitindo que outras pessoas realizem esse tipo de segmentação baseada em crédito usando os dados que ela fornece. O fato de o Facebook promover esse uso de seus dados como uma história de sucesso de marketing certamente enfraquece a ideia de que ele não veicula anúncios segmentados com base em informações de crédito.

Um porta-voz do Facebook se recusou a responder se a empresa aceita ou endossa parceiros de publicidade usando dados de usuários do Facebook para esse fim, ou se audita como o Actionable Insights é utilizado por terceiros, mas observou que seus parceiros só têm permissão para usar o Actionable Insights com propósitos “internos” e concorda em não compartilhar mais os dados. O porta-voz não respondeu se a empresa acredita que esta aplicação de dados do Actionable Insights está em conformidade com o Fair Credit Reporting Act.

De acordo com Joel Reidenberg, professor e diretor do Centro de Leis e Política de Informação da Universidade Fordham, o negócio de triagem de crédito do Facebook parece habitar uma zona nebulosa no que diz respeito à FCRA, sem corresponder à definição legal de uma agência de crédito, nem cair fora das atividades a lei deveria regular. “Com certeza isso cheira às disposições de pré-seleção da FCRA”, disse Reidenberg ao Intercept. “Do ponto de vista funcional, o que eles estão fazendo é filtrar os usuários do Facebook em critérios de credibilidade e potencialmente escapar da aplicação do FCRA.”

Reidenberg questionou o potencial do Facebook de incorporar dados sobre raça, sexo ou estado civil em seu processo de triagem, exatamente o tipo de prática que tornou a legislação como a FCRA necessária em primeiro lugar. Reidenberg explicou ainda que existem “todos os tipos de leis de discriminação em termos de concessão de crédito”, e que o Facebook “também pode estar em uma área cinzenta com relação a essas leis porque não estão oferecendo crédito, e sim oferecendo um espaço publicitário”, uma distinção que ele descreveu como algo que pode se tornar “uma bola de neve”. Um estudo acadêmico publicado em abril descobriu que os algoritmos de exibição de anúncios do Facebook eram inerentemente tendenciosos em relação a gênero e raça.

Reidenberg também duvida que o Facebook estaria isento de escrutínio regulatório se estivesse fornecendo dados a terceiros que depois seriam usados indiretamente para excluir pessoas com base em seu crédito, em vez de fazer a própria contagem de créditos, no estilo da Equifax ou da Experian.

“Se o Facebook está fornecendo dados de um consumidor para ser usado para fins de análise de crédito por terceiros, o Facebook seria uma agência de relatórios de crédito”, explicou Reidenberg. “A lei [FCRA] se aplica quando os dados ‘são usados ou se espera que sejam usados ou coletados no todo ou em parte com a finalidade de servir como um fator para estabelecer a elegibilidade do consumidor para […] receber crédito’”. Se o Facebook fornecer dados sobre você e seus amigos que eventualmente acabam em uma operação de triagem de crédito corporativo, “não é diferente da Equifax fornecer dados ao Banco Chase para determinar se este deve ou não emitir um cartão de crédito ao consumidor”, segundo Reidenberg.

Um porta-voz da FTC se recusou a comentar.

Chris Hoofnagle, especialista em privacidade da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, em Berkeley, disse que esse tipo de esquema de avaliação do consumidor tem implicações preocupantes para assuntos muito mais amplos do que se a T-Mobile ou outra operadora vai lhe vender um telefone com desconto. Para aqueles preocupados com a sua pontuação de crédito, o caminho para a virtude sempre foi uma questão de bom senso com as finanças pessoais.

O salto da sabedoria convencional como “pagar suas contas no prazo” para cálculos completamente inescrutáveis baseados na observação do Facebook sobre o uso de seu smartphone e “homofilia de amigos” não é exatamente intuitivo. “Vamos passar a viver em um mundo onde você não saberá como agir”, disse Hoofnagle. “Se pensarmos no mundo como consumidores racionais engajados na maximização da utilidade no mundo, o que estamos enfrentando é esse sistema de sombras. Como competir?”


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