19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Freiras são tratadas como escravas pela Igreja

Publicado em 16/05/2019 12:00 -

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Saí da periferia de São Paulo com meus 19 anos para me tornar frade franciscano. Fui para o interior de Santa Catarina onde comecei um longo caminho de formação que, devo dizer, foi muito bom. Onze anos e cinco cidades depois, fui ordenado padre.

Os franciscanos prezam pela formação crítica e humanística de seus quadros. Percebi isso desde o início com as pautas que me eram oferecidas. O tempo com os frades me fez ver o mundo de maneira mais ampla e complexa. Autocríticos, permitiam que nós, formandos, tomássemos parte nos rumos da instituição e não se incomodavam com o fato de que alguns de nós manifestássemos algum descontentamento ou crítica mais dura. Crescer e me formar nessa escola franciscana me fez ver o restante da Igreja com muito mais crítica.

Já era evidente para mim que nós éramos mais bem tratados do que membros de outras congregações. Mas as diferenças ficaram mais claras quando comecei a ter contato com congregações femininas mais distantes, aquelas que não tinham tanto contato com o ambiente dos franciscanos.

O tempo passou rápido e fui enviado a Roma para fazer o mestrado em teologia. Na cidade eterna, é possível ter uma amostra interessante do catolicismo mundial. Há os que ao chegar se envolvem nos trabalhos da Cáritas, os que se trancam nos estudos e aqueles que fazem da religião um negócio. E por toda parte e com todas as cores de roupas, freiras e mais freiras. Não há maior concentração de religiosas do que nas ruas de Roma. Mas essa concentração não se repete nos ambientes em que se concentra o poder ou o saber, como na cúria romana e universidades pontifícias.

As percepções que tive nesse tempo foram ganhando corpo à medida que conhecia essas estruturas diversificadas. Na época, ouvi e vi muito sobre o tratamento conferido às freiras e monjas, que agora compartilho nestas linhas. São situações incongruentes com o que prevê a própria hierarquia (sempre masculina) da Igreja e com aquilo que seria o Evangelho, mas toleradas no confortável silêncio de quem se beneficia disso.

Elenco apenas poucos âmbitos como o estudo e a exploração laboral e sexual, reveladores de um único problema que, sem denúncia e enfrentamento honesto, só crescerá. Mais do que machismo, trata-se de um clericalismo que se arraiga por toda parte e ganha cada vez mais força entre os neoconservadores. Ivone Gebara, uma teóloga que vale a pena ser lida, falava de um fundamento patriarcal que descreve bem a situação de Marta*, cujo nome foi trocado para preservar sua identidade.

Hoje com seus 50 anos, ela foi embora ainda jovem da casa dos pais, na periferia de uma cidade de médio porte no sudeste brasileiro, para o convento. Assumiu a função de irmã externa. É a responsável pelas compras que garantem a subsistência da comunidade religiosa e por vários trabalhos, inclusive por acolher e cuidar dos visitantes. Marta cursou só até 4.º ano do ensino fundamental. Confidenciou-me que sofre com textos de complexidade mediana, mas sempre quis estudar. Estimulada por uma amiga advogada, foi pedir à superiora permissão completar seus estudos. Não pôde. A resposta negativa escorregava entre os vários motivos que pudessem justificar que alguém não estudasse, desde os perigos de uma mulher sair à noite do convento até o cansaço.

Esse é só um exemplo, mas se você entrar hoje numa faculdade de teologia, perceberá que a proporção de freiras ou monjas é bastante reduzida (comigo na faculdade, por exemplo, havia umas seis, mas, na minha turma de aproximadamente 30 alunos no primeiro ano, nenhuma). De fato, é comum que a Santa Sé tenha de intervir em congregações mais novas, muitas vezes femininas, exigindo que seus membros estudem. Há casos de congregações inteiras que, por conta dos abusos de autoridade cometidos pelos superiores, acabaram passando por alguma intervenção que comportava a obrigatoriedade dos estudos para os membros – não me refiro necessariamente a abusos sexuais, mas a assédios de toda ordem como propor ou exigir uma cédula de escravidão assinada ou não com o próprio sangue de seus membros, um tipo de abuso que normalmente é combatido pela Santa Sé.

O problema, infelizmente, não é localizado. O próprio jornal L’Osservatore Romano, de 2 de janeiro, mantido pelo Vaticano, já chamou atenção para como é difícil que uma religiosa estude. Apesar das exceções como as congregações com um histórico sólido na formação de seus quadros – como as escalabrinianas, as irmãs catequistas franciscanas, as irmãs de São José de Chamberry, as franciscanas missionárias de Maria –, as mulheres na Igreja são relegadas a uma segunda categoria.

Mão de obra barata

Ainda em Roma, presenciei um episódio cujo final sintetiza a compreensão da mulher como um ser inferior. Na ocasião, foi eleita a primeira mulher para a reitoria de uma universidade pontifícia: Irmã Mary Melone, excelente professora da universidade Antonianum se tornou “reitor”. Isso, no masculino mesmo. Não sabiam como chamá-la: “Rettoressa ou rettrice?” Não havia precedente. “E para a missa inaugural? O reitor sempre foi padre… Como faremos? Onde ela se sentará? O que fará na cerimônia?”

Durante a missa, o superior geral dos franciscanos, o americano Michael Perry, se mostrou muito mais tranquilo e via positivamente aquele momento. Mas, no refeitório, um frade egípcio me dizia: “Que coisa, não? Uma mulher… Como devem ficar os professores? Que humilhação!” Eu e outro brasileiro perguntamos: “Qual o problema, ela não é capaz?” A resposta: “Pode até ser, mas é mulher”.

O mesmo convento de Marta é atendido por padres em sua maioria bem formados. Ao menos metade deles tem algum doutorado. Isso não os torna melhores, mas revela que há, sim, uma grave desigualdade de gênero nas estruturas eclesiásticas. Essa desigualdade pode ser sentida tanto nas conversas clericais quanto na distribuição do trabalho.

Conversas entre padres reproduzem os preconceitos sobre as mulheres. Mas as freiras são descritas num patamar ainda inferior. É comum, para desdenhar um trabalho, dizer que “é coisa de freira”, mas isso é pouco se comparado a algumas estruturas ligadas ao poder eclesiástico.

Palácios episcopais, residências de cardeais ou bispos são normalmente servidos por freiras. Em Roma, esse fenômeno atinge proporções bem maiores. São muitas as congregações religiosas que recrutam moças de países como Brasil, Filipinas, Índia para servirem os prelados.

Um exemplo: Dolores* cresceu no interior do Brasil e desde pequena estava muito próxima da Igreja. Lá conheceu uma congregação de irmãs que trabalhava numa escola da diocese. Com o tempo, depois de um acompanhamento vocacional – período em que a pessoa deve discernir se entra ou não para o convento –, começou seu caminho de formação. Depois de poucos anos, foi enviada para a Itália. Essa história foi contada num encontro de religiosos brasileiros em Roma, no momento do cafezinho em que cada um se apresentava, e ela narrou com entusiasmo o motivo de sua ida a Roma. Sua missão: cozinhar para o cardeal. Cozinhar é uma das coisas mais nobres que um ser humano pode fazer, uma arte que em quase todas as religiões tem a ver com o sagrado. Mas o motivo que leva muitos bispos a terem freiras cuidando de si é bem menos nobre: são baratas e não reclamam.

Uma outra religiosa se queixava do fato de nem mesmo poder se sentar à mesa em que servia a um cardeal. É normal que o protesto não tenha surtido efeito. Quando começam a se queixar das condições de trabalho, o que é raro, normalmente são trocadas por outras. As poucas que se revoltam podem tanto sofrer algum tipo de represália como ser transferidas para algum tipo de trabalho que ninguém quer assumir, ir para algum lugar remoto ou viver com alguma irmã de difícil convivência. O importante é notar que não importa se realmente há ou não um castigo a quem se revolta: a formação que muitas recebem faz com que nem mesmo cogitem desobedecer. Quando isso não acontece, contrata-se uma empresa de catering. Mas as situações de injustiça não são repensadas.

#Nunstoo se espalha

O ápice desse problema se verifica, a meu ver, naquilo que ultimamente povoa os jornais: são notícias de abusos sexuais contra religiosas que agora têm coragem de denunciar os abusadores. Na esteira do movimento feminista #metoo, tem surgido o #nunstoo, que contempla a situação de assédio e opressão das freiras pela Igreja.

Lembro da indignação de um frade enviado como missionário num país africano ao saber de abusos cometidos contra religiosas de um mosteiro naquele país. Revoltava-lhe saber que as mulheres abusadas não tinham nem mesmo a quem recorrer. O mosteiro em questão, fundado por espanholas bastante animadas com o ingresso sempre crescente de moças do lugar, dava sinais de longevidade com o ingresso de cada vez mais jovens do lugar. As coisas mudaram quando o mosteiro começou a receber visitas frequentes de um prelado: queria que alguma moça o acompanhasse no leito. Esses abusos são normalmente mascarados com alguma justificativa até mesmo religiosa (dizer que se trata de acompanhamento espiritual, por exemplo), mas persistem inclusive em lugares em que há mais facilidade em denunciá-los. Por que esse silêncio?

 Falar de qualquer coisa em relação à Igreja Católica pode beirar à injustiça, porque quase todas as críticas ou são triviais ou são feitas nos próprios quadros da instituição. Ou melhor, “instituições”.

Sob o termo “Igreja Católica” há inúmeras igrejas, ordens, associações, grupos, irmandades etc. que nem sempre compartilham tanta coisa quanto se pensa. Nem mesmo o papa, sobretudo quando se trata de Francisco, é ponto pacífico. É essa diversidade que torna possível entender como a mesma “instituição” que defende os direitos humanos pode ser aquela que, em vários pontos, os agride. Há muitos grupos que, por justiça, não podem ser incluídos nas descrições – não os enumero por brevidade e consciência de que entenderão a que me refiro.

O tema da injustiça de gênero nas estruturas da Igreja é muito antigo, como também é sua contestação inclusive por mulheres. Eu me atreveria a dizer que talvez a Idade Média tenha até algo a nos ensinar. Muitos movimentos desse período foram perseguidos justamente por igualarem o papel de homens e mulheres na atividade e na vivência da fé. Refiro-me principalmente aos movimentos mendicantes (cujos nomes mais famosos são Francisco e Clara de Assis) e as beguinas.

Protagonizado por mulheres, o movimento das beguinas representou tanto um avanço quanto o prenúncio da sorte daquelas que ousassem viver aquilo que a cultura dominante julgava direito somente homens: uma forma de vida religiosa ativa, envolvida com o século, isto é: o mundo fora do claustro, e o sofrimento das pessoas. A mais famosa delas, Marguerite Porete, acabou processada por heresia e queimada. A sua culpa? Ter escrito o “Miroir des simples âmes” [O espelho das almas simples. Petrópolis: Vozes, 2008], no qual explicava as etapas da aproximação das almas a Deus. Marguerite Porete era culta: traduziu parcialmente a Bíblia para o vernáculo e conhecia de cor as obras dos grandes teólogos e místicos da época. Seu livro foi às chamas em Valenciennes e impôs-se a Marguerite que não divulgasse nunca mais a sua obra. Mas ela desobedeceu: reescreveu todo o texto e o fez circular clandestinamente.

É bem verdade que houve e há movimentos que reivindicam alguma mudança. Já foram mais fortes em outros tempos, principalmente no período imediatamente posterior ao Concílio Vaticano II, série de conferências realizadas entre 1962 e 1965. Houve uma efervescência teológica que culminou nas comunidades eclesiais de base, as CEBs. Essas comunidades e a teologia que as sustentava, a da Libertação, gozavam de bastante prestígio no mundo teológico, mesmo sob a constante acusação, em parte verdadeira, de utilizar categorias marxistas na elaboração teológica.

Mas, desde a década de 1980, sob João Paulo II e Bento XVI, bispos mais progressistas caíram paulatinamente no ostracismo (alguns pela idade, outros por transferências para dioceses menos importantes), e as escolhas dos novos bispos geralmente foram pautadas por alinhamento mais à direita. Esses papas tiveram mão de ferro contra movimentos mais progressistas, mas foram extremamente generosos com grupos neoconservadores (principalmente Bento XI, que readmitiu grupos excomungados que rejeitavam o concílio e defendiam a volta da missa tridentina, em latim e versus deum [de frente para Deus, mas de costas para o povo] como era antes do Concílio.

Esse conservadorismo que ganhou força sob os dois últimos papas atingiu em cheio as iniciativas de descentralização do poder. Embora, segundo o Direito Canônico, o poder ainda estivesse concentrado em mãos masculinas, na prática, surgiam muitas experiências de valorização da presença e da atuação das mulheres, inclusive em instâncias decisórias. Tudo isso ruiu, e os poucos teólogos que ainda defendem essa forma de pensamento têm, em sua maioria, os cabelos brancos. Grupos conservadores e opositores do papa recrudesceram o conservadorismo que justifica o lugar subalterno da mulher: “Ser esposa e mãe” ou “ser virgem”, em ambos os casos a serviço do varão. Nessa lógica, é o uso do aparelho reprodutor que definirá a colocação da mulher na Igreja.

Agora, está surgindo uma resistência. Recentemente, Lucetta Scaraffìa e sua equipe responsável pela fundação e direção do encarte mensal do L’Osservatore Romano, Mulheres Igreja Mundo [Donne Chiesa Mondo] pediram demissão motivadas justamente pela mentalidade que ela tanto denunciou em seu trabalho. Lucetta relatou, em uma entrevista, que sua decisão é fruto de um grave contraste com a linha adotada por Andrea Monda, novo diretor do jornal. Desde dezembro do ano passado, ela percebeu que Monda tentava controlar cada vez mais o conteúdo das publicações, comprometendo a liberdade editorial.

Depois de o grupo ameaçar pedir demissão, a direção até que retrocedeu, mas, para desautorizar o trabalho da equipe, começou a publicar também textos de mulheres que representavam um contraponto às posições mais feministas do grupo de Lucetta. Essa nova situação foi uma agressão a um trabalho que, nas palavras de Lucetta, “nasceu de baixo” e foi aprovado pelo então Papa Bento XVI. Embora reconheça o apoio de Papa Francisco e da Secretaria de Estado do Vaticano, Lucetta percebe que na Igreja “a voz da mulher não é nem respeitada nem ouvida”. As poucas e cada vez mais raras vozes rebeldes se concentram em grupos ligados à Teologia da Libertação, em congregações mais escolarizadas e em algumas conferências de religiosas que, depois de João Paulo II, só perderam força.

Enquanto todos esses grupos diminuem, fora da Igreja cresce a conscientização e a luta das mulheres por justiça. Mais do que o fato de ainda ser tímida a discussão, surpreende a maneira como ela perde a pouca força que tem nos espaços eclesiais, um retrato de uma Igreja cada vez mais reacionária a despeito dos últimos anos sob Francisco.

Estruturalmente, as coisas não são muito boas. A Igreja não dispõe de uma espécie de corregedoria local para lidar com os abusos e denúncias. Em alguns lugares, o abusador é amigo de quem deveria ouvir a queixa. Nesta quinta, dia 9, Francisco deu um passo para mudar esse sistema – ele enfrenta uma oposição conservadora de grandes proporções. Anunciou um decreto, em forma de Motu proprio, que obriga bispos a denunciar casos de abuso sexual ao Vaticano – caso não reportem, poderão ser denunciados como corresponsáveis.  “Esta responsabilidade recai, em primeiro lugar, sobre os sucessores dos Apóstolos, colocados por Deus no governo pastoral do seu povo, e exige deles o empenho de seguir de perto os passos do Divino Mestre”, escreveu na introdução do decreto que anunciou as mudanças. A medida também permite que qualquer pessoa denuncie casos de abusos ao Vaticano. Se vai funcionar, não sabemos.

Como em muitos lugares o poder político caminha de mãos dadas com o eclesiástico, a saída tem de ser a denúncia pública, a publicização, a conscientização. Pois falar da situação dessas mulheres pode não chamar tanto a atenção quanto o pesado tema da pedofilia, mas ambos tocam na mesma caixa de pandora: a relação da Igreja oficial com temas como sexualidade, gênero e prazer.


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