19/04/2024 - Edição 540

Poder

Câmara e Senado indicam que decreto das armas excede limites legais

Publicado em 10/05/2019 12:00 -

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Consultores da Câmara e do Senado elaboraram pareceres que indicam que o decreto que amplia o porte de armas editado pelo presidente Jair Bolsonaro nesta semana extrapola limites legais, distorcendo o Estatuto do Desarmamento.

Provocados pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Fabiano Contarato (Rede-ES), técnicos do Senado elaboraram uma nota informativa. Eles citam, por exemplo, que o decreto extrapola seu poder regulamentar ao estabelecer uma presunção absoluta de que todas as 20 categorias que lista cumprem requisito básico para andarem armadas.

A iniciativa assinada no último dia 7 amplia o acesso a armas de fogo no país para 19 milhões de pessoas, concedendo o direito a grupos como políticos com mandato, agentes penitenciários, repórteres policiais e conselheiros tutelares, entre outros.

O Estatuto do Desarmamento exige que o pretendente ao porte de arma de fogo demonstre, no caso concreto, a efetiva necessidade do porte em decorrência de exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física.

Ou seja, o Estatuto do Desarmamento exige um exame individualizado, pela Polícia Federal, de quem almeja uma autorização de arma de fogo de uso permitido.

Para os consultores, se não fosse assim, o decreto poderia contemplar qualquer pessoa, entidade ou categoria, presumindo, de forma absoluta, que ela necessitaria do porte de arma de fogo para o exercício da sua atividade profissional ou para a defesa da sua integridade física.

"Como vimos, esse não foi o escopo do Estatuto do Desarmamento. Como o próprio nome dado ao diploma diz, o objetivo do estatuto foi o de desarmar a população, vedando o porte de arma de fogo em todo o território nacional. Por exceção, foram elencadas, de forma estrita, algumas categorias, pessoas ou entidades que poderiam obter o porte da arma de fogo", diz a nota informativa.

O decreto também ultrapassa limites legais, segundo os consultores, ao ampliar os servidores da área de segurança com direito a porte de arma.

"Verifica-se que o decreto estende o porte de arma de fogo aos agentes públicos inativos. Em nenhum de seus dispositivos o Estatuto do Desarmamento confere o porte de arma de fogo a qualquer funcionário público inativo", ressalta a consultoria do Senado.

"Veja-se que não se critica aqui o mérito e a razão das escolhas administrativas presentes no decreto", afirmam os consultores.

"Com efeito, é possível vislumbrar a necessidade do porte de arma por aqueles agentes públicos, mesmo a inatividade, para sua defesa pessoal. Todavia, apenas alertamos que autorização não está prevista na lei."

No entendimento dos técnicos do Senado, o decreto também extrapolou o poder regulamentar ao conceder o porte de arma de fogo geral e irrestrito aos colecionadores e caçadores, presumindo, de forma absoluta, que tais categorias cumprem o requisito de “efetiva necessidade”.

Outro ponto criticado é o fato de o decreto não exigir do residente rural o requisito de idade superior a 25 anos, bem como a comprovação, na prática, de que realmente precisa de arma de fogo para garantir a subsistência alimentar familiar.

"O decreto passou a ser uma ameaça à sociedade e sua segurança", disse Randolfe.

O partido Rede Sustentabilidade ingressou nesta semana com uma ação de descumprimento de preceito fundamental no STF (Supremo Tribunal Federal). No Senado, foi apresentado um decreto legislativo para sustar os efeitos do decreto de Bolsonaro.

O parecer da Câmara é mais enxuto. A consultoria da Casa aponta que o decreto se excede ao estabelecer as categorias que têm, automaticamente, "efetiva necessidade".

Este parecer também diz que o decreto avança nos limites da lei ao querer avançar numa competência das Forças Armadas, responsáveis por disciplinar o porte de arma das praças.

O texto da Câmara também diz que o decreto é omisso em relação à autorização do porte de forma limitada no tempo e no espaço.

"Dessa forma, o decreto concede —de forma ilimitada no tempo e no espaço— o porte de arma de uso permitido a certas pessoas", diz o documento.

Sem entrar em detalhes, o parecer diz que outros dispositivos do decreto suscitam dúvidas que exigem análise mais aprofundada.

Na quinta-feira (9), o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que a medida tem inconstitucionalidades e que pode ser sustada pelo Congresso Nacional. Ele afirmou que tem dialogado com o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, para encontrar uma solução.

No mesmo dia, o porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, disse que o presidente Jair Bolsonaro considera que o decreto que amplia o acesso a armas de fogo no país é constitucional, mas que ele aceita analisar eventuais sugestões de mudanças feitas pelo Poder Legislativo.

Maia disse que, caso a iniciativa não seja adequada, ela teria amplo amplo apoio da Câmara dos Deputados para ser derrubada. O porta-voz ressaltou que não há, neste momento, "nenhuma intenção" do presidente de fazer qualquer alteração no decreto, mas que ele aceita avaliar eventuais alterações. 

STF

A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu dar um prazo de cinco dias para que o presidente Jair Bolsonaro explique o decreto assinado por ele que facilitou o porte de armas para mais categorias.

O prazo, porém, ainda não começou a contar, porque Bolsonaro ainda não foi notificado da decisão. Assim que o for, o prazo passará a valer.

O partido Rede Sustentabilidade acionou o Supremo pedindo a anulação do decreto. Para a sigla, o decreto é inconstitucional por ferir o princípio da separação de poderes porque, na avaliação do partido, as regras deveriam ter sido discutidas no Congresso Nacional.

Relatora do pedido da Rede, Rosa Weber requisitou informações de Bolsonaro antes de decidir sobre a suspensão ou não do decreto.

Além do presidente, a ministra também solicitou informações do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro. Também abriu espaço para que Advocacia-Geral da União (AGU), Câmara dos Deputados e Senado também se manifestem sobre o decreto.

Bolsonaro anunciou decreto de armas sem parecer do ministério de Moro

A consultoria jurídica do MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública) teve menos de 24 horas para avaliar o decreto que flexibilizou as regras para a posse e o porte de armas.

Os pareceres da equipe jurídica do ministério comandado por Sergio Moro mostram que a minuta do decreto só foi encaminhada ao órgão no final do dia 6 e que os pareceres foram assinados no dia 7. Bolsonaro, porém, já havia anunciado que iria assinar o decreto no dia 5, dois dias antes de o ministério de Moro dar o seu aval.

Apesar de ser um tema próximo à pasta de Sergio Moro, o ministro disse na quarta que o decreto não fazia parte de uma "política de segurança pública".

Quando o Poder Executivo prepara um projeto, o governo solicita pareceres técnicos e jurídicos aos ministérios diretamente afetados pelas propostas. No caso do decreto das armas, o governo solicitou pareceres sobre o assunto ao MJSP e ao Ministério da Defesa. Em geral, esses documentos fazem uma análise legal e de mérito sobre as medidas.

Os documentos mostram que a minuta final do decreto só chegou ao ministério no final do dia 6 e que os pareceres jurídicos só foram assinados pela consultoria jurídica na tarde do dia 7.

Dois dias antes e mesmo sem os pareceres jurídicos do MJSP, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) já havia anunciado que iria assinar o decreto.

O parecer 489/2019 foi elaborado pela consultoria jurídica junto ao Ministério da Justiça. Foi feito pela advogada da União Priscila Helena Soares Piau. Coube a ela avaliar apenas o aspecto legal do decreto.

No documento assinado por ela, Priscila fez questão de dizer que teve pouco tempo para avaliar o documento. Segundo ela, a minuta (uma espécie de rascunho) do decreto só chegou a ela às 15h do dia 7. "Com solicitação de extrema urgência, os autos foram remetidos a esta consultoria na data 07/05/2019, às 15h", diz um trecho do parecer.

O horário da chegada da minuta para a análise da advogada chama a atenção porque, de acordo com a agenda oficial do presidente Jair Bolsonaro, a cerimônia de assinatura do decreto começou às 16h10, ou seja, apenas uma hora e dez minutos depois de ela dar início à análise da constitucionalidade do decreto.

Em seu parecer, a advogada disse que o prazo curto afetaria o resultado da análise. "Diante do requerimento de urgência e considerando a complexidade do tema e o exíguo prazo concedido para a análise, este órgão consultivo fica impedido de proceder uma análise mais acurada no texto da proposta", diz o documento.

Ao final, a advogada deu parecer favorável à minuta do decreto, mas ressaltou que sua análise não avaliou se o decreto era oportuno ou conveniente.

"Ante o exposto, abstraídas quaisquer considerações atinentes à oportunidade e à conveniência da medida, esta consultoria manifesta-se favoravelmente à minuta do decreto tal como apresentado pela Casa Civil da Presidência da República", afirma o documento.

O parecer foi assinado eletronicamente pontualmente às 18h. A essa hora, Bolsonaro já havia feito o anúncio do decreto.

Outro parecer sobre a legalidade do decreto foi assinado pela coordenadora-geral de atos normativos em matéria penal, Fernanda Regina Vilares, e pelo assessor especial de assuntos legislativos do MJSP, Vladimir Passos de Freitas. Essa análise também foi relacionada a aspectos legais do decreto. Os dois deram aval para que a matéria prosseguisse.

Em outro documento, o chefe da consultoria jurídica do MJSP, João Bosco Teixeira, afirma que a minuta final do decreto só chegou ao ministério no final do dia 6, mas que, antes disso, houve três reuniões sobre o assunto entre integrantes da Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, representantes da consultoria jurídica do MJSP, da Polícia Federal e de outros órgãos.

Fontes ouvidas pela reportagem dizem que a pressa com que o governo submeteu o decreto à avaliação do MJSP é um dos indícios da distância entre Moro e Bolsonaro sobre o assunto.

Durante uma audiência pública na Câmara dos Deputados realizada na quarta, Moro disse que o decreto não era uma política de segurança pública. "Não tem a ver com segurança pública. Foi uma decisão tomada pelo presidente em atendimento ao resultado das eleições", afirmou.

Moro chegou a mencionar a existência de possíveis divergências entre ele e o presidente em relação ao assunto.

"Eventuais divergências são tratadas no âmbito do governo. Isso é normal […] Na formulação das políticas públicas, existe toda uma dinâmica dentro do governo. Tem debate, discussão, divergências, convergências. Isso é absolutamente natural", afirmou Moro, sem dizer a quais discordâncias ele estaria se referindo.

Fontes ouvidas pela reportagem afirmaram que a pressa em anunciar o decreto na terça-feira era tão grande que o documento nem sequer estava pronto para divulgação à imprensa ao final da cerimônia.

O UOL perguntou à Casa Civil sobre a necessidade do regime de urgência, sobre o momento da chegada da minuta do decreto para formação dos pareceres e sobre o motivo de anunciar o decreto mesmo sem o aval do ministério.

A assessoria do órgão respondeu apenas em nota que "a discussão sobre o tema tem longo histórico, desde antes da digitalização de processos". "Apenas a inclusão do tema no sistema de geração e transmissão de documentos foi ajustada para sua tramitação final."

Abertura do mercado de armas por Bolsonaro assusta indústrias de defesa

A liberação de licenças automáticas de importação não só de armas e munições, mas também de quaisquer produtos controlados pelo Exército, pegou o setor de defesa de surpresa, gerando críticas à iniciativa do governo.

Em nota, o Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa afirma que “recebeu com surpresa a edição e a publicação do decreto, uma vez que não foi consultado sobre o tema”.

“Se uma polícia quiser importar carros blindados, por exemplo, poderá comprar o produto lá fora diretamente. Como fica a questão da equalização tributária e o controle de qualidade do que é importado?”, afirma o presidente da Abimde (Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança), Roberto Gallo.

Ele irá consultar o Ministério da Defesa para esclarecer pontos do decreto. A entidade, assim como o sindicato da indústria, solicitou aos seus 220 associados um levantamento do impacto da abertura do mercado.

Em um estudo de 2014, o setor estimou movimentar o equivalente a 4% do PIB (Produto Interno Bruto), ou R$ 202 bilhões, e empregar diretamente 60 mil pessoas.

Embora o foco da discussão sobre o decreto, na questão comercial, tenha girado em torno do caso da quebra do virtual monopólio da Taurus no setor de armas leves, há outras áreas afetadas.

Balas de borracha, imobilizadores neuromotores, coletes balísticos, capacetes, tecnologias de defesa cibernética e drones são exemplos de produtos que poderão sofrer maior concorrência.

Bolsonaro tentou adiantar-se às críticas ao falar rapidamente sobre a questão tributária, dizendo que o Ministério da Economia iria evitar que as armas estrangeiras “não fossem tão mais baratas” e prometeu uma solução em até 60 dias.

Não está claro se isso se dará por renúncia fiscal ou por mais tributação dos importados. No caso de armas feitas aqui, 73% do valor de uma pistola é imposto.

As importações de produtos controlados de defesa precisam ser autorizadas pelo Exército. O regulamento prevê, contudo, favorecimento a produtos nacionais análogos ao importado em questão.

Na prática, isso criou um mercado exclusivo para empresas como a Taurus e a Condor, uma das dez fabricantes mundiais de armas não letais.

Com o decreto, a licença passa a ser automática. Para complicar a vida das fabricantes, a medida vem no momento em que o maior comprador, o governo federal, anunciou a retenção de 44% das verbas para investimento e custeio da Defesa neste ano.

A grita do setor soa a anticapitalismo, mas é assim em todo o mundo na área de defesa. Os maiores produtores mundiais de armas, os EUA, só compram produtos locais ou de estrangeiros associados a americanos. Na Rússia, toda exportação é gerenciada por uma estatal. Franceses são protecionistas notórios.

No caso específico das armas leves, a discussão tem forte componente político. Frequentadores de clube de tiro, os filhos do presidente são críticos do monopólio da Taurus —que é marginalmente dividido com a estatal Imbel. Na campanha eleitoral, o próprio Bolsonaro defendeu a abertura do mercado.

A Taurus se diz pronta. “Nós temos uma gama completa de armas e competimos no mercado internacional. Vendemos para mais de cem países, ontem mesmo ganhamos uma licitação”, afirma seu presidente, Salesio Nuhs.

“O decreto é bom. Antes só podíamos ofertar 5% dos nossos produtos para os cidadãos de bem brasileiros, agora serão muitos mais”, diz, diplomaticamente, Nuhs.

Com efeito, no dia do anúncio do decreto, as ações da Taurus subiram 24% —caíram 12% nesta quinta (9).

A empresa tem capacidade de fazer 4.000 armas por dia. Em 2018, 90% do R$ 1 bilhão que faturou foi com exportações —ainda amarga prejuízo líquido de R$ 60 milhões.

“Passamos por dificuldades. Tivemos três anos para nos preparar, fizemos adequações”, diz, acerca dos problemas com algumas armas, como uma submetralhadora cujos disparos acidentais causaram ao menos uma morte de policial.

A crise na empresa levou o Exército a autorizar mais compras no exterior —os próprios militares gastaram R$ 10,8 milhões em 2018 para rearmar a polícia do Rio, então sob sua intervenção, com 27 mil pistolas austríacas Glock.

A principal concorrência internacional aberta para compra de armas leves hoje, de R$ 108 milhões, está sendo tocada pelo governo paulista.

O estado quer 40 mil novas pistolas, 1.300 fuzis, 10 metralhadoras, 1.000 armas de imobilização, 500 escudos e 5.500 coletes à prova de bala.

Nuhs evita comentar as críticas dos Bolsonaros, mas ecoa ressalvas da indústria ao decreto. “Ele é bom, mas é omisso no ponto dos impostos. É preciso criar isonomia. Quem quiser vender aqui deve produzir aqui, pagar imposto. Não sendo assim é ruim não para a Taurus, mas para o Brasil”, afirmou o executivo, no cargo desde o começo de 2018.

Ele também questiona um ponto que preocupa Gallo: a qualidade dos produtos a serem vendidos aqui. “A homologação de um novo produto leva anos”, afirma Nuhs.

Os estrangeiros se preparam. Já em abril, durante a feira militar LAAD, no Rio de Janeiro, o tema segurança era frequente. “Temos soluções integradas de segurança, e dominamos como poucos a tecnologia para operar drones”, afirmou então Eli Alfassi, vice-presidente de marketing da Israel Aerospace Industries.

Israel, país cujo atual governo é um dos mais próximos da gestão Bolsonaro, produz ampla gama de produtos aplicados à segurança pública.


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